IDENTIDADE: QUESTÕES CONCEITUAIS E CONTEXTUAIS

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Carolina Laurenti

Discente do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Londrina

Mari Nilza Ferrari de Barros

Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina

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© Direitos reservados à PSI -REVISTA DE PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL
ISSN: 1516-4888

VOLUME 2 - NÚMERO 1 - JUN./2000 

 

A discussão de processos identitários abordando aspectos conceituais e contextuais implica, primeiramente, na concepção da identidade, enquanto categoria de análise, como uma construção social, marcada por polissemias que devem ser entendidas circunscritas ao contexto que lhe conferem sentido. Neste artigo, procurou-se abordar a identidade associada à multiplicidade de sentidos e terminologias que atravessam a configuração do termo ao longo da história e num mesmo período histórico, expresso pela diversidade de áreas de conhecimento que se dedicam ao estudo do tema em questão. A partir disso, faz-se necessário um exercício de re-significação da identidade, sendo útil para tal empreendimento considerar os princípios da dialética, apresentados não segundo Marx em Para Crítica da Economia Política (1978b) em seu método de exposição, mas na forma de “leis”, como delineadas por Gadotti (1983), pois permite caracterizar a identidade enquanto uma processualidade histórica vinculada ao conjunto das relações que permeiam a vida cotidiana. As várias configurações de identidade habitam reflexões dos teóricos da modernidade, como Giddens (1991) ou da pós-modernidade como Santos (1999) e exigem a circunscrição deste homem ao momento atual do mundo globalizado, marcado por um capitalismo desorganizado, a fim de explicitar as novas bases sobre as quais se articula o pessoal e o social na contemporaneidade.

O termo identidade sempre desperta interesse, tanto das pessoas comuns, representantes do universo consensual, quanto de cientistas sociais.

 Inúmeras questões estão associadas à identidade. Historicamente, o termo empregado para significar o que hoje se entende por identidade foi personalidade, privilegiando não só a perspectiva individualista, mas também uma visão em que os princípios da ciência médica sustentavam toda proposta de compreensão. Nesse contexto, os debates versavam sobre o “normal” e o “patológico”, o “natural” e o “inerente”.

A priorização do ser biológico e individual sustentados por uma estrutura psíquica,  invariante enquanto processo normativo, institui uma dicotomia entre o indivíduo e o grupo, entre o homem e sociedade. O conceito de personalidade oferecia um conjunto de princípios que previamente classificavam os indivíduos em categorias, confirmando uma concepção de sujeito em que pese a diversidade dos ambientes sociais. Os comportamentos expressos pelos indivíduos invariavelmente serviam para justificar as interpretações denominadas “científicas”, restando pouco ou quase nada a fazer por parte daqueles que manifestavam tais condutas. Baseados no princípio de “normalidade” e estrutura psíquica invariante, aplicado a todos indistintamente, os psicólogos mostravam-se despreocupados em investigar o comportamento dos homens. O comportamento, em si, configurava-se como recurso para alimentar os princípios constitutivos da personalidade normal ou patológica. A história social e singular do indivíduo participava apenas como pano de fundo para a expressão dos comportamentos “sabidamente” conhecidos.

Dissonante dessa perspectiva, e preocupados em considerar o homem enquanto sujeito social, inserido num contexto sócio-histórico, os psicólogos sociais adotaram o termo identidade.

De acordo com Ciampa (1984), é comum, em nosso cotidiano, a  seguinte pergunta: quem é você ? Tal questionamento invariavelmente remete à identidade.

 O emprego popular de tal termo apresenta-se marcado por uma intensa diversidade conceptual, sugerindo que a ostentação de um nome tão definitivo, continua sujeito a inúmeras variações (Jacques, 1998, p.159).

Essa imprecisão conceptual não se restringe ao universo da vida cotidiana, mas reflete a dificuldade nos mais variados campos do conhecimento que têm se dedicado a essa temática, como a Antropologia, Filosofia, Sociologia e Psicologia.

“A importância conferida ao estudo da identidade foi variável ao longo da trajetória do conhecimento humano, acompanhando a relevância atribuída à individualidade e às expressões do eu nos diferentes períodos históricos” (Jacques, 1998, p.159). Há momentos na história em que se verifica um maior interesse sobre a questão da identidade, como registrado na antigüidade clássica, em que predominava uma valorização da vida individual e do mundo interno. Em contrapartida, constata-se um declínio acentuado no feudalismo devido à influência da concepção cristã de homem e do corporativismo feudal, fazendo com que historiadores  remetam  o aparecimento da individualidade aos séculos XI, XII e XIII. Foi na época do movimento romântico  que o egocentrismo e a introspecção atingiram o seu apogeu, fornecendo condições para que se propagassem as produções teóricas sobre a identidade, inclusive no âmbito psicológico.

Na visão psicológica, os estudos sobre identidade são tratados geralmente pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia Cognitiva (Jacques,1998), que em comum compartilham a noção de desenvolvimento, marcado por estágios crescentes de autonomia, entendendo a identidade como produto da socialização e garantida pela individualização. Ainda segundo aquele autor, a questão da identidade em Psicologia Social ocupou lugar central nos estudos de William James , enquanto que, na tradição do Interacionismo Simbólico, as referências concentram-se nos trabalhos de George Mead.

As dificuldades apontadas nesse percurso, que respondiam por uma excessiva ênfase, ora no individual, ora no social, são também encontradas na atualidade sob formas diferentes, embora na “essência” ainda carreguem o problema de origem, referente à demarcação do território limítrofe do social e do individual. Tal afirmação pode ser ilustrada pelo uso de predicativos diversos para qualificar os diferentes sistemas identificatórios que constituem a identidade:

Jurandir Freire Costa emprega a qualificação "identidade psicológica" para se referir a um predicado universal e genérico definidor por excelência do humano em contraposição a apenas um atributo do eu ou de algum eu como é a identidade social,  étnica ou religiosa, por exemplo. Habermas (1990) refere-se a “identidade do eu “ que se constitui com base na  "identidade natural" e na "identidade de papel" a partir da integração dessas através da igualdade com os outros e da diferença em relação aos outros. Com base no pressuposto inter-relacional entre as instâncias individual e social, a expressão "identidade social" vem sendo empregada. (Neto,1985) buscando dar conta dessa articulação. (Jacques, 1998, p.161).

Instala-se, então, uma dicotomia em que “a identidade passa a ser qualificada como identidade pessoal (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade social (atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias).” (Jacques,1998, p. 161).

Diante dessa diversidade de qualificações e predicativos atribuídos à identidade, destaca-se o termo identidade social, uma vez que os elementos que o compõem  parecem apontar, de forma mais evidente, as duas instâncias - individual e social - em jogo na discussão da problemática conceptual, que trata da origem individual ou coletiva da identidade. Com isso é possível fazer algumas reflexões sobre a concepção de homem subjacente à interpretação do termo, a fim de superar a falsa dicotomia (individual e social), bem como mostrar que é na articulação destas que é tecida a identidade.

Os termos identidade e social sugerem, respectivamente, um conceito que "explique por exemplo o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu..." (Brandão, 1990 p.37)  privilegiando, de um lado, o indivíduo, e de outro lado, a coletividade, resultando numa configuração na qual se capta o homem inserido na sociedade, bem como à dinâmica das relações sociais. A importância dessa relação pode ser melhor compreendida nessa citação de Marx (1978a, p.9) “ A sociedade é,  pois, a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza”.

A cisão encontrada nos textos de diferentes autores pode levar a um entendimento do homem como sendo dois; coexistindo independentemente e/ou  separadamente um "eu" e um homem que se relaciona com outros homens.

Pode-se dizer que a concepção de homem que norteia tal rompimento vincula-se à idéia de natureza humana, cujos pressupostos pregam que todas as potencialidades do indivíduo já nascem com ele, sendo  função do ambiente social  promover condições para a manifestação dessas habilidades já  pré-determinadas. O contexto social ocupa, assim, um papel secundário, configurando-se apenas como o contato com outros homens. Isso se reflete, de acordo com Bock (1997) nas perspectivas naturalista, essencialista e maturacionista que colocam no indivíduo a origem das funções psíquicas encontradas no substrato biológico.

É necessário compreender qual visão de homem orienta o estudo dessa categoria de análise - a identidade social, por constituir-se numa lente que regerá todo o processo de pensamento e construção do conhecimento desse fenômeno psicológico.

A identidade é considerada uma categoria de análise, ou seja, constitui-se em um elemento que é utilizado como referencial para submeter um objeto a uma análise; um recurso teórico que vai subsidiar a compreensão de um dado fenômeno; mediação para a compreensão de um determinado objeto.

Desprovidos da idéia de natureza humana, e assumindo uma concepção de homem como ser sócio-histórico, as condições biológicas recebem um outro enfoque. De acordo com Bock (1997) estas condições são a sustentação de um desenvolvimento sócio-histórico, o que é endossado nas palavras de Sève:

Assim o homem se constitui, a partir de um suporte biológico que lhe dá condições gerais de possibilidades (próprias da espécie Homo Sapiens Sapiens) e condições particulares de realidade (próprias de sua carga genética). No entanto, as características humanas historicamente desenvolvidas se encontram objetivadas na forma de relações sociais que cada indivíduo encontra como dado existente, como formas históricas de individualidade, e que são apropriadas no desenrolar de sua existência através da mediação do outro.(Sève, apud Jacques, 1998,  p. 162)

Logo, a identidade não é inata e pode ser entendida como uma forma sócio-histórica de individualidade. O contexto social fornece as condições para os mais variados modos e alternativas de identidade. O termo identidade pode, então, ser utilizado para expressar, de certa forma, uma singularidade construída na relação com outros homens.

Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de uma lenta imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói ao longo de experiências de trocas com outros: a mãe, os pais, a família, a parentela, os amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos de outros: outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas investidas de seus nomes, posições e regras sociais de atuação (Brandão, 1990, p. 37).

É importante, segundo Jacques (1998),  não limitar o conceito de identidade ao de autoconsciência ou auto-imagem. A identidade é o ponto de referência, a partir do qual surge o conceito de si e a imagem de si, de caráter mais restrito. Seria mais sensato dizer que essa singularidade, o reconhecimento pessoal dessa exclusividade, não é construída, mas vai sendo construída, a fim de abandonar a noção de imutabilidade. A identidade não se apresenta sob a forma de uma entidade que rege o comportamento das pessoas, mas é o próprio comportamento, é ação, é verbo.

A identidade constitui-se de uma multiplicidade de papéis. Na execução de um papel social, como o de pai, por exemplo, está "introjetado" neste pai a dimensão social em sua totalidade, desde a formação da palavra pai e sua suposta função, bem como a dimensão individual, que por sua vez se constitui no social.

Não há uma separação, mas sim uma articulação, em que os limites, se é que realmente existem, entre o social e o individual se confundem. Para existir um, são necessários dois, não apenas do ponto de vista da concepção, da genética, da sobrevivência, mas sobretudo em se tratando do homem ser reconhecido como tal; o homem só se vê como homem se os outros assim o reconhecerem. Sob essa perspectiva, é possível conceber a identidade pessoal como, e ao mesmo tempo, social, superando a falsa dicotomia entre essas duas instâncias.

Para que a questão da identidade seja melhor esclarecida, torna-se necessário partir da análise de algumas especificidades que a constituem. Ciampa (1984)  há muito tem se dedicado ao estudo da identidade, norteado por uma concepção sócio-histórica de homem. Para ele, a compreensão da identidade exige que se tome como ponto de partida a representação de identidade como um produto, para então analisar seu próprio processo de construção. Por exemplo, a resposta à pergunta “quem sou eu ?” seria insatisfatória para a configuração de uma concepção sobre identidade, uma vez que capta somente o aspecto representacional da noção de identidade (enquanto produto), deixando de lado seus aspectos constitutivos de produção.

Contrapondo-se à idéia de natureza humana, Marx (1978b) em “Para a Crítica da Economia Política” busca compreender os “indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida” (p.103). Todo esforço em compreender o homem, recorrendo à História, só tende a confirmar a dependência deste ao conjunto das relações nas quais está envolvido. Por isso, a afirmação de Marx (1978b) “O homem é no sentido mais literal, um zoon politikon, não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade”. (p.104).

A totalidade da realidade social é um princípio fundamental para captar o movimento do homem no mundo. Assim, quando se fala de produção humana deve-se situá-la como “[...] apropriação da natureza pelo indivíduo, no interior e por meio de uma determinada sociedade” (Marx, 1978b, p.106).Uma totalidade, portanto, que se materializa num tempo histórico social, totalidade concreta.Quando trata do processo de produção, Marx demonstra como o princípio da totalidade se expressa:

O consumo cria o impulso da produção; cria também o objeto que atua na produção como determinante da finalidade...o consumo põe idealmente o objeto da produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim. Sem necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade’ (Marx, 1978b, p. 110).

Momentos diferentes de um único processo, as etapas que configuram o modo de produção é que “não é que a produção, a distribuição, o intercâmbio, o consumo são idênticos, mas que todos são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (Marx, 1978b, p. 115).

O significado de uma totalidade concreta é buscado pelo método científico, em que “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (Marx,1978b, p. 116).

Essa diversidade para ser captada e compreendida necessita percorrer um trajeto, cujo início está na concepção de história.

A transformação é resultado da ação do homem e do mundo natural sobre os objetos. Ao produzir, o homem consome parte de suas forças vitais, bem como consome os meios empregados para a produção de um determinado produto.

O homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é , um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e conformar-se tanto em seu ser como em seu saber... nem objetiva nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo adequado. E como tudo o que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que se  supera. A história é a verdadeira história natural do homem . (Marx, 1978a, p.41 - grifos do autor)

Embora o método dialético, na concepção de Marx (1978b), não apresente leis, tais como as expostas por Gadotti (1983), e procure enfatizar a diferença entre método de exposição e método de pesquisa, é importante assinalar que sua exposição persegue a lei da transformação, buscando “[... o nascimento, a existência, o desenvolvimento, a morte de determinado organismo social, e sua substituição por outro de mais alto nível]”.(p.16).

Para melhor compreender a identidade enquanto processo, cujo movimento é o aspecto central, recorrer-se-á às “leis” da dialética apresentadas por Gadotti (1983). Isso consiste mais num esforço didático que auxilia na compreensão da subjetividade enquanto totalidade que expressa a diversidade, síntese de múltiplas determinações.

O processo de construção da identidade, bem como seus elementos constituintes, tem um caráter dialético, e dentro dessa perspectiva é interessante destacar os princípios ou “leis” da dialética, para um melhor entendimento da noção de identidade, não só em seu aspecto representacional mas também operativo.

De acordo com Gadotti (1983), as quatro "leis" da dialética compreendem:

1)   tudo se relaciona;

2)    tudo se transforma;

3)    mudança qualitativa;

4)    unidade e luta dos contrários.

 

1) Tudo se relaciona (princípio da totalidade)

Segundo a dialética,  a natureza é um todo coerente constituído por objetos e fenômenos,  que estão ligados entre si, relacionando-se de forma recíproca.

A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes. ”A parte materializa o todo mas o todo não é a soma das partes, nem é a parte o todo. Busca-se entender os fenômenos e os objetos dentro de uma totalidade concreta pois “Nada é isolado. Isolar um fato, fenômeno e depois conservá-lo pelo entendimento neste isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza – através do entendimento metafísico – num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos. (Henri Lefèbvre, apud Gadotti, 1983, p. 25) .

A identidade é totalidade, e uma de suas características é a multiplicidade. Os papéis sociais são impostos ao indivíduo, desde o seu nascimento e assumidos pelo mesmo na medida em que se comporta de acordo com a expectativa da sociedade. Por exemplo: na presença do filho, o homem se relaciona como pai; na presença de seu pai, comporta-se como filho. Se for também professor do filho, o pai será pai/professor e aquele será filho/aluno. O papel de pai, bem como o de filho, materializa a identidade como totalidade/parcialidade, pois sendo expressão de uma parte, não revela a identidade por inteiro. A cada personagem materializado, a identidade tem assegurada sua manifestação enquanto totalidade, mas uma totalidade que não se esgota nem tampouco se resume a concretização de personagens. As personagens são partes constitutivas da identidade e, ao mesmo tempo, configura-se como um todo que se cria a si mesmo, enquanto fenômeno de uma totalidade concreta. A identidade é ainda um universo de personagens  já existentes e de outros ainda possíveis.

Desta forma, na relação com outros homens, o indivíduo não comparece apenas como portador de um único papel, pois diversas combinações configuram uma identidade como totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una. Ao se apresentar frente a uma determinada pessoa,  comporta-se de uma dada maneira, neste momento as “outras identidades” pressupostas estão ocultadas.

A identidade é vista como totalidade não apenas no sentido da multiplicidade dos personagens, mas também no que se refere ao conjunto de elementos biológicos, psicológicos e sociais que a constitui .

Não podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos – biológicos, psicológicos, sociais, etc. – que podem caracterizar um indivíduo, identificando-o, e de outro lado a representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica, que expressaria a sua identidade. Isso porque há como uma interpenetração desses dois aspectos, de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de representação que faz parte da constituição do indivíduo representado. (Ciampa, 1984, p. 65).

 

 2) Tudo se transforma  (princípio do movimento)

Para a dialética o movimento é uma característica inerente a todas as coisas e estas necessitam ser consideradas em seu devir. A natureza e a sociedade não são vistas como algo pronto e acabado, mas como elementos que estão em constante transformação. E a causa dessa transformação é a luta interna, a luta entre os elementos contraditórios que coexistem numa totalidade estruturada. É a lei da negação da negação, como aponta  Konder (apud Gadotti, 1983, p. 25).  Essa “lei”

...dá conta do fato de que o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem sempre se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém, a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação.

Assim como foi dito que o movimento é uma característica inerente a todas as coisas, a identidade aí se inclui. “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto... é metamorfose.” (Ciampa, 1987 p. 74). Logo, ao invés de se perguntar como a identidade é construída, seria mais sensato questionar como vai sendo construída.  Seria mais correto abordá-la enquanto processo de identificação, e não apenas enquanto produto.

O autor citado parte do princípio de que o ser humano é matéria, e como matéria está em constante transformação. É essa materialidade que permite ao homem expressar a condição da plasticidade, entendida como capacidade de projetar mundos, ou seja, o devir da identidade na forma de personagens possíveis (sonhos, projetos, esperanças). Em função dessa plasticidade, o homem pode negar o seu passado no futuro mediante condições objetivamente dadas. O indivíduo pode negar aquilo que lhe negam (lei da negação da negação), criando condições objetivas para  se transformar. Isso se dá mediante exercício de reflexão, é como diz  Lane:

Apenas quando confrontamos as nossas representações sociais com as nossas experiências e ações, e com as de outros do nosso grupo social, é que seremos capazes de perceber o que é ideológico em nossas representações e ações conseqüentes, ou seja, pensar a realidade e os significados atribuídos a ela, questionando-os de forma a desenvolver ações diferenciadas, isto é, novas formas de agir, que por sua vez serão objeto do nosso pensar, é que nos permitirá desenvolver a consciência de nós mesmos, de nosso grupo social e de nossa classe como produtos históricos de nossa sociedade, e também cabendo a nós – agentes de nossa história pessoal e social – decidir se mantemos ou transformamos a nossa sociedade (Lane, 1983, p. 36-37).

É no nascimento que a plasticidade, ou possibilidades, apresentam-se em sua plenitude, pois ao nascer, a criança encontra um mundo já constituído e sobre ela lançam-se as expectativas da sociedade. O homem, enquanto ser ativo, apropria-se da realidade social, atribuindo um sentido pessoal às significações sociais. Dadas as condições objetivas, as expectativas da sociedade, bem como as expectativas internalizadas pelo próprio homem, a identidade vai sendo construída num constante processo de vir a ser. Um pequeno trecho da obra de Ciampa (1987), em que o autor utiliza-se da história de Severino - personagem ficcional do poema de João Cabral de Mello Neto – “Morte e Vida Severina” é destacada a cena de um nascimento:

Será este recém-nascido tão diferente dos Severinos homogêneos e homônimos que vimos encerrados na sua mesmice? Na verdade, é um ser do mesmo gênero que, inclusive, também pode vir a ser mais um Severino, como possibilidade – não como necessidade. O que caracteriza é a plasticidade; define-se pelo vir-a-ser”. Isso revela a vida ... “ o humano é vir-a-ser humano – identidade humana é vida! (Ciampa, 1987, p.36).

Neste fragmento fica caracterizado o mundo simbólico, marca do homem. É essa subjetividade constituída por um universo de significados que transforma o "ser" em humano. O homem não cria apenas o mundo; cria sentido para o mundo em que vive. Traça caminhos,  muda sua rota, altera sua "pré-destinação" pelas ações que realiza junto com outros homens. Por isso, deve ser visto como "se fazendo" e não "feito" e "acabado".

 

3) Mudança qualitativa (princípio da mudança qualitativa)

Esse princípio revela que a “transformação das coisas não se realiza num processo circular de eterna repetição, uma repetição do velho. Como é gerado o novo ? Esta mudança qualitativa se dá pelo acúmulo de elementos quantitativos que num dado momento produzem qualitativamente o novo.” (Gadotti, 1983 p. 26).

Como já salientado anteriormente, não basta apenas o aspecto representacional, mas  deve-se considerar também o aspecto operativo da identidade. “O nascituro, uma vez nascido, constituir-se-á como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante” (Ciampa, 1984, p. 66). Logo, não é suficiente  uma representação prévia, essa identidade pressuposta, para ser mantida tem que ser "re-posta" a cada momento, mostrando seu caráter dinâmico. Contudo, a identidade sendo metamorfose aparece como não metamorfose, pelo trabalho de "re-posição".

Esse processo de re-posição muitas vezes confunde a questão do “movimento” da identidade. A re-posição é vista como algo dado e não como um se dando, num contínuo processo de identificação, devido ao fato de que as diferenças, a cada re-posição muitas vezes são pouco perceptíveis. A personagem pode ser a mesma: aluno, mas não o mesmo aluno. Como a sucessão é rápida, às vezes as mudanças não são reconhecidas. Mudanças pequenas dão a impressão de não-movimento, necessitam de um acúmulo de quantidade para que a percepção capte as transformações ocorridas. A cada dia, novos acontecimentos e significados são acrescidos à vida cotidiana, tornando o homem e o mundo "qualitativamente" diferentes. Quando a mudança é mais visível, diz-se que esta ocorreu “de repente”, mas na verdade não existe “de repente”,  e sim um acúmulo de elementos até o momento em que algo se torna  distinto na forma como era percebido. A identidade é uma sucessão temporal com mudanças muito pequenas. Na relação do indivíduo com outros homens “as identidades” vão sendo re-postas e cada re-posição não é a mesma, as condições objetivas são outras, outros significados vão sendo dados e internalizados mesmo que imperceptíveis, pois como matéria estamos em constante transformação. Esta plasticidade permite ao homem a construção da sua singularidade, da sua identidade e de seu vir-a-ser.

 

4) Unidade e luta dos contrários  (princípio da contradição)

Essa “lei” propõe que o movimento das coisas e suas transformações se dão porque no interior destas coexistem forças opostas  que tendem simultaneamente à unidade e à oposição. Essa contradição,  de caráter universal, é inerente a todas as coisas materiais e espirituais.

A identidade é construída por elementos opostos, ela é diferença e igualdade; objetividade e subjetividade, ocultação e revelação, humanização e desumanização, mesmice e mesmidade, e, para compreendê-la, é necessário articular essas dimensões aparentemente contraditórias a fim de superar a dicotomia individual/social que constitui a problemática da identidade desde a origem do termo.

Identidade é ao mesmo tempo diferença e igualdade . De acordo com Jacques (1998), a palavra identidade evoca tanto a qualidade do que é idêntico, igual, como a noção de um conjunto de caracteres que fazem reconhecer um indivíduo como diferente dos demais. Assim, a identidade implica tanto no reconhecimento de que um indivíduo é o próprio de quem se trata, como também pertence a um todo, confundindo-se com outros, seus iguais. Para subsidiar tal afirmação, é interessante retomar a história de Severino, este personagem que na busca de sua singularidade (diferença), acentuava cada vez mais sua igualdade. Severino, tentando dizer quem é, recorre a um substantivo (palavra que nomeia o ser) para indicar sua identidade, porém não é suficiente para que a sua identidade seja reconhecida. Em uma segunda tentativa, recorre a outros substantivos próprios como nome da mãe, do pai, definindo com isso a sua posição social – família determinada; procura então uma região geográfica, depois, acrescenta a descrição de seu corpo físico, mas nada o singularizava, até a morte e a vida eram iguais... na busca da diferença encontrava igualdade.

Para muitos, a identidade se confunde com o nome e, nele estão a diferença (pré-nome) e igualdade (sobrenome). O processo de identificação começa no grupo social. O primeiro grupo social é a família na qual as duas dimensões da identidade começam a se constituir – igualdade (sobrenome) e diferença (pré-nome).

O nome não é a identidade; enquanto substantivo não revela a identidade, mas apenas parte dela. O substantivo é algo que nomeia o ser, e para isso é necessário uma atividade: o nomear. Logo, a identidade não é substantivo, é verbo;  identidade é atividade (Ciampa, 1984).

A igualdade é expressa na história social compartilhada pela família, grupo social, localização geográfica, condições econômicas, culturais.... A diferença pode ser entendida como a constituição da singularidade, a transformação da significação social em sentido pessoal; e isso se dá pela atividade, através da concretização de personagens. É nesse processo de externalização (atividade humana) que a sociedade chega a se constituir como produto humano.

A singularidade (diferença) está na negação da negação, ou a negação de algo que nos é negado. A identidade singular é tecida na identidade social. Um momento da negação se expressa quando um indivíduo conquista seu reconhecimento, passando do indefinido e genérico, para o definido e singular. Distingue-se dos demais com quem compartilha o mundo social. As  características peculiares, que dizem respeito à maneira de cada um se relacionar com os outros, foram aprendidas nas relações grupais. A história de vida do indivíduo é determinada pelas condições históricas do grupo social no qual está inserido. Os papéis sociais que o homem  aprende a desempenhar foram definidos pela sociedade, e de acordo com Lane (1983), foram engendrados visando garantir a manutenção das relações sociais, para que as relações de produção da vida se reproduzam sem grandes alterações na sociedade em que o homem vive. Há casos em que a identidade singular está tão colada à identidade social que se confunde com aquela. Há uma reprodução da ideologia dominante do  conjunto de seus significados ao nível individual. Porém, ao refletir sobre as contradições entre as representações e suas atividades desempenhadas na produção da vida material, o homem faz com que as ações subsequentes resultem num avanço no processo de conscientização. Para Lane (1983), apenas quando o ser humano for capaz de encontrar as razões históricas da sociedade e do grupo social, que explicam porque o homem age desta forma e como o faz, é que ele estará desenvolvendo a consciência de si mesmo. A diferença é essencial para a tomada de consciência de si e é inerente à própria condição da vida social, pois a diferença só aparece tomando como referência o outro. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas o contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx & Engels ,1979 p.37).

Lane (1983) ressalta ainda que a consciência de si poderá alterar a identidade social, na medida em que dentro dos grupos que definem o homem, este questione os papéis quanto as suas  funções históricas, ao mesmo tempo em que os membros se identifiquem entre si quanto a esta determinação e constatem as relações de dominação que reproduzem uns sobre os outros. Somente desta maneira é que o grupo poderá se tornar agente de mudanças sociais. Segundo Berger (1971), enquanto esse questionamento, por assim dizer, se limitar à consciência individual e não for admitido por outros, ao menos como possibilidade empírica, terá apenas uma existência “fantasmagórica”.

O fenômeno da consciência é, ao mesmo tempo, extremamente subjetivo, porque está muito carregado pela presença efetiva do eu individual, e extremamente objetivo, porque se esforça por considerar objetivamente não só o ambiente exterior (o mundo), mas também o eu subjectivo.(...) o eu  considera-se simultaneamente como sujeito e como objecto de conhecimento e considera o ambiente objectivo implicando neste a sua própria existência subjectiva”. (Morin, 1973, p.132).

Neste processo de externalização, o homem constrói seu mundo e ao mesmo tempo constrói a si mesmo e essa atividade construtora de mundos dos homens é o trabalho, trabalho enquanto atividade consciente do homem.

A atividade sempre está vinculada à consciência. E é mediante esse exercício de reflexão que o homem pode criar condições objetivas e superar as situações do cotidiano, concretizando outras personagens. Nessa concretização, a atividade é que configura a singularidade. O homem na sua atividade se distingue das outras espécies animais, já que sua atividade é consciente e sua produção não é determinada unicamente por suas necessidades imediatas.

(...) É certo afirmar que também o animal produz (...) Porém produz unicamente o que necessita de imediato para si ou para sua prole; produz unilateralmente, enquanto que o homem produz universalmente. O animal produz unicamente por mandato da necessidade física imediata, enquanto que o homem produz inclusive livre da  necessidade física e só produz realmente liberado dela; o animal produz apenas a si mesmo, enquanto que o homem reproduz a natureza inteira; o produto do animal pertence imediatamente com seu corpo físico, enquanto que o homem se defronta livremente com seu produto. O animal produz unicamente segundo a necessidade e a medida da espécie a que pertence, enquanto que o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espécie e sempre sabe impor ao objeto a medida que lhe é inerente, por isso o homem cria segundo as leis da beleza . (Marx, 1983, p.112).

De acordo com Marx (1978a), a base da sociedade, assim como a característica fundamental do homem está no trabalho, atividade pela qual o homem domina as forças naturais, humaniza a natureza, e ao mesmo tempo cria a si mesmo. A respeito da relação homem-natureza, Marx afirma que o homem faz parte da natureza mas não se confunde com ela. O homem é um ser natural, no sentido de que foi criado pela própria natureza, submete-se às leis que são naturais e depende desta natureza para sobreviver. Mas ao mesmo tempo, o homem não se confunde com a natureza, pois a transforma de modo consciente segundo suas necessidades e, nesse processo, se faz homem. É nesta relação que o homem se constrói e transforma a si mesmo e a própria natureza. Marx ressalta ainda que o homem só é capaz de transformar a natureza e a si mesmo porque se reconhece e reconhece o outro nesse processo. A natureza humanizada não é, portanto, construída através de idéias ou resultado de uma abstração, mas atividade prática e consciente: a natureza humanizada é trabalho.

O que o indivíduo concretiza, vive, aquilo que tem sido e vivido corresponde à objetividade da identidade. A subjetividade da identidade está no "vir-a-ser" na forma de personagens possíveis, está na plasticidade. O homem pode projetar um "vir-a-ser" baseado nas experiências passadas, se de alguma forma, o sentido dessas pretende preservar,  e nesse processo procura criar condições objetivas que garantam a possibilidade de recriar no futuro, essas experiências; caso contrário pode criar novas condições para sua negação, conquistando assim, a superação. A superação pressupõe a concretização, isto é, só se pode superar aquilo que já foi concretizado, externalizado e, como foi dito, isso se dá pela atividade mediante  o exercício de reflexão.

A identidade também é ocultação e revelação. A revelação é condição para a ocultação. Perante determinadas condições objetivas é revelada a uma dada pessoa uma personagem e ocultadas outras.

A identidade é também desumanização no sentido da impossibilidade de novas concretizações. O indivíduo desenvolve atividades que o negam como ser humano ou é forçado a repor personagens reproduzindo as condições que o desumaniza. Nesse movimento, o homem não se reconhece no produto de sua atividade, e isto se dá, segundo Marx (1983), pois o homem se relaciona com o produto de seu trabalho como um objeto alienado, “[...] a apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital” (Marx, 1983, p. 91). O homem ao transformar a natureza transforma a si mesmo e nesta relação, produz-se como homem alienado, produzindo as condições de sua própria escravização:

Quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem pra consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza. (Marx, 1983, p. 92).

Neste sentido, o indivíduo reproduz a ideologia dominante, mantendo as condições sociais, ou seja, não transforma nem as relações sociais, nem a ele mesmo. Enquanto humanização, o homem  insere-se e define-se no conjunto de suas relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas relações, o trabalho apresenta-se como “[...] atividade vital, vida produtiva” (Marx,1983  p. 95) e não “...apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter sua existência física” (Marx,1983, p. 95).

Nessa articulação entre atividade e consciência define-se a mesmidade (Ciampa, 1987). Este elemento caracteriza também a identidade enquanto movimento e  plasticidade, pois  se dá pelo ato de refletir o que temos sido e podemos ser. Trata-se de uma postura do homem em dispor-se a saber mais, de refletir o conhecimento, recusando-se a reconhecê-lo como realidade absoluta. Em contrapartida, se dá a mesmice  que pode ser descrita como simples re-posição de papéis, sem a mediação da reflexão.

Dentro dessa perspectiva é conveniente ressaltar que a identidade é um fenômeno social, logo não é possível dissociar o estudo da identidade singular, do estudo da sociedade. É do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade.

“Somos personagens de uma história que nós mesmos criamos, fazendo-nos autores e personagens ao mesmo tempo”. Esta frase de Ciampa (1987) pode ser comparada a citada por Berger (1971): o homem é produto da sociedade, a sociedade é produto do homem.

A personagem se refere à identidade empírica que é a forma pela qual a identidade se expressa no mundo. Implica sempre na presença de um ator desempenhando um papel social. A personagem ao mesmo tempo se confunde e se diferencia do papel, isto porque o homem não ‘absorve’ passivamente o mundo social (com suas instituições, papéis, e identidades apropriadas), mas apropria-se dele de maneira ativa – somos também autores da nossa história ; a sociedade é produto do homem. O mundo objetivo é apreendido com plena significação subjetiva, atribuindo-lhes sentidos à realidade objetiva. É no desenvolvimento de atividades que o homem vai construindo sua história. A personagem está sempre relacionada a um papel social, e este representa uma identidade coletiva, abstrata e genérica; associada, construída e mediada pelas relações sociais. Nesse sentido, os homens são ao mesmo tempo  autores e co-autores, pois precisam do outro para  se concretizar. A reposição de personagens só é possível porque o outro oferece condições para isso. O outro é condição fundamental de expressão da  identidade enquanto singularidade. É diante do outro que o homem pode negar aquilo que lhe negam. O homem tem que reconhecer a si mesmo e o outro no processo de construção da identidade, “[...] quando o homem se defronta consigo mesmo, também está se defrontando com outros homens” (Marx, 1983,  p. 97 – grifo do autor).

A questão da identidade é complexa, uma vez que é múltipla, dinâmica, num constante devir. É uma intrincada rede de representações, em que cada personagem  reflete tantos outros, todos constitutivos da identidade, ou melhor dizendo, instituintes de um processo identitário, desaparecendo, assim,  qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas. O mesmo ocorre com a questão da relação homem-sociedade cuja complexidade é expressa por Allport (apud Ciampa, 1993, p.3) no seguinte questionamento:

Como pode sua natureza (do indivíduo) depender indubitavelmente da prévia existência de padrões culturais e de seus papéis numa estrutura social pré-determinada, enquanto que ao mesmo tempo ele é claramente uma pessoa única, selecionando e rejeitando influências de seu meio cultural e, por outro lado, criando novas formas culturais para orientar as futuras gerações ? E ainda mesmo enquanto essa interação entre o individual e o social está em evolução, o homem também é, certamente, um ser biológico, sujeito às leis de sua espécie .

A exposição feita até aqui pretendeu demarcar o espaço e as múltiplas facetas que envolvem a temática de identidade, além de explicitar a importância do adjetivo social que segue o substantivo identidade.

 

QUESTÕES CONTEXTUAIS

A complexidade desse tema tem sido responsável por discussões extensas e muitas vezes estéreis em razão de princípios e conceitos divergentes envolvidos. A fase denominada de capitalismo desorganizado (Santos, 1999), para circunscrever o momento atual do mundo globalizado, responde por novas configurações do homem, expondo perspectivas que devem ser objeto de investigação dos cientistas sociais. Inúmeras são as questões que se colocam hoje. Marcado por pressões de um mundo cada vez mais complexo e desorganizado, a natureza dos problemas humanos se redimensiona, obrigando  todos a um investimento pessoal, por vezes demasiado pesado. Perdido e premido por exigências do mundo, onde a divisão entre público e privado manifesta-se com doses generosas de ambigüidade, a identidade do homem transforma-se rapidamente, sem que a ciência e o universo consensual possam dar conta dessas mudanças. O conhecimento científico retrata uma provisoriedade sem precedentes, em que pese todas as revoluções científicas e tecnológicas desse final de milênio.

A pergunta que se coloca agora é: Quem é o homem da contemporaneidade? O que faz esse homem? Como dar conta desse fenômeno psicológico? Qualquer tentativa de esgotar esses temas seria pretensiosa e frágil, posto que teria que lidar com uma plasticidade ainda não totalmente conhecida. A impessoalidade tal como discute Sennett (1988), transformou-se num risco que poucos estão dispostos a correr. A apologia da intimidade cristaliza os mundos público e privado, tornando-os impermeáveis.

Identificar-se com pessoas que não se conhece, pessoas estranhas, mas que podemos compartilhar dos interesses étnicos, dos problemas familiares, ou da religião, tornou-se algo penoso... Quanto mais local a imaginação, maior se torna o número de interesses e problemas sociais, para os quais a lógica psicológica é: não nos deixaremos envolver; não permitiremos que isso nos violente. Não se trata de indiferença: é uma recusa, uma constrição voluntária de experiências que o eu comum pode se permitir. (Sennett, 1988, p. 378).

Sennett (1988) denuncia uma realidade ao revelar a preocupação com situações que circunscrevem a vida cotidiana. Censura o comportamento dos homens preocupados em investir em si mesmos, estabelecendo vínculos transitórios e frágeis com aqueles com quem compartilham a vida social.

Da mesma maneira, Santos (1999) entende que no mundo globalizado observa-se um capitalismo desorganizado, no qual o homem está obcecado pela diferença procurando por distinção. Na modernidade, entende que há duas linhas de construção da subjetividade que merecem destaque especial: a tensão entre subjetividade individual e coletiva de um lado, e a subjetividade contextual e universal de outro. “Na tensão entre subjetividade individual e subjetividade coletiva, a prioridade é dada à subjetividade individual, na tensão entre subjetividade contextual e subjetividade abstrata, a prioridade é dada à subjetividade abstrata” (Santos, 1999, p.137).

A complexidade originária do mundo capitalista trouxe, como conseqüência, problemas para a identidade. A busca por uma hegemonia proposta e controlada pelo Estado, estimula uma identidade reduzida porquanto genérica e abstrata. É de Santos a afirmação: “concluo assim que, sob a igualdade do capitalismo, a modernidade deixou que as múltiplas identidades e os respectivos contextos intersubjetivos que a habitavam fossem reduzidos à lealdade terminal ao Estado, uma lealdade omnívora das possíveis lealdades alternativas” (Santos, 1999, p. 142). Essas amarras assinaladas por Santos configuram a subjetividade do homem moderno.

Santos propõe uma análise crítica em que estejam relacionados três marcos da história da modernidade, a saber: subjetividade, cidadania e emancipação. Para isso, percorre um trajeto em que, de um lado, está a regulação e, de outro, a emancipação e analisa como esses limites  relacionam-se com a subjetividade.

O projeto de modernidade, para Santos, é caracterizado por um equilíbrio entre regulação e emancipação, sendo o primeiro sustentado pelos princípios de Estado (Hobbes), de mercado (Locke) e comunidade (Rousseau), enquanto o pilar do segundo - emancipação - se dá pela articulação entre três dimensões de racionalização e secularização da vida coletiva: a racionalidade cognitivo-experimental da ciência e técnicas modernas, a racionalidade estético-expressiva e a racionalidade moral-prática do direito moderno. Na verdade, o autor entende que o equilíbrio pretendido nunca foi alcançado, oscilando ora a favor de um (regulação), ora a favor de outro (emancipação).

Para demonstrar melhor estas oscilações, Santos propõe uma relação entre subjetividade e cidadania, entendendo que esta última é mais restrita e, exemplifica essa distinção por meio da teoria liberal, na qual a sociedade - enquanto sociedade civil - não exerce a cidadania pela impossibilidade de participação política. Introduz, assim, uma nova questão: a relação entre democracia e participação.

A sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre a subjectividade dos agentes na sociedade civil e a subjectividade monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é o princípio de cidadania que, por um lado, limita os poderes do Estado e, por outro, universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos, de modo a facilitar o controle social de suas atividades e, consequentemente, a regulação social. (Santos, 1999, p.240).

O resultado dessas tensões parece estar sempre a favor do Estado e/ou sociedade, reduzindo as possibilidades de expressão da subjetividade naquilo que, em essência, é sua característica: a singularidade. Outra relação de tensão e, ainda mais complexa, é a relação entre cidadania e subjetividade. Poder-se-ia argumentar que a subjetividade se amplia e se enriquece quando a ela se lhe acrescenta o princípio de cidadania, onde direitos e deveres são elementos constitutivos. Mas, a crítica de Santos é a de que essa mesma subjetividade fica reduzida porque os deveres e direitos se apresentam de forma abstrata e universal, tornando impossível articular igualdade (cidadania) e diferença (subjetividade).“A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da subjectividade”. (Santos, 1999, p.240). Esse dilema está presente em todo o percurso da modernidade. A superação dessa tensão só ocorrerá, se a relação entre cidadania e subjetividade for sustentada pela emancipação (Santos), representando uma conquista do indivíduo e de sua subjetividade.

 A aspiração de autonomia,criatividade e reflexividade é transmutada em privatismo, dessocialização e narcisismo, os quais, acoplados à vertigem produtivista, servem para integrar, como nunca, os indivíduos na compulsão consumista.  ...(fazendo com que a) (...) personalização dos objetos transforme estes em características de personalidade de quem os usa e, nessa medida, os objetos transitam da esfera do ter a esfera do ser. (Santos, 1999, p.255-256)

Nesse processo, o cotidiano, meio no qual a intersubjetividade se desenvolve e tem expressão, configura-se numa nova relação entre subjetividade e cidadania, instituindo uma luta por um mundo e vida melhor, onde os excessos de regulação e as opressões vivenciadas são os motivos das ações e reações do homem.

A conquista por novos espaços de expressão e reconhecimento social, em que a relação entre cidadania e subjetividade esteja assente na idéia de emancipação, deve tomar como fundamento o princípio de comunidade de Rousseau que, segundo Santos, articulava as idéias de obrigação política horizontal entre cidadãos e a idéia de participação e solidariedade concreta, emergindo daí uma nova cultura política e, “[...] em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva assentes na autonomia e no auto-governo..”. (Santos, 1999, p.263).

Para ampliar o debate, far-se-á  uma incursão nos textos de Giddens (1991) e Morin (1973). Para Giddens (1991), a comunidade sofreu uma destruição, no que se refere às marcas deixadas pelo homem na constituição da vida social. Embora os “lugares”, enquanto espaços apareçam cada vez mais integrados, revelam-se  territorialmente fragmentados, genéricos e iguais. Há como que um “estranhamento”, onde o homem não se reconhece como constituinte desse processo.

Na modernidade, outras transformações são observadas no âmbito das relações interpessoais: “as rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm um caráter vazio, amoralizado – isto vale também para a idéia de que o impessoal submerge cada vez mais o pessoal”. (Giddens, 1991 p. 122). A preocupação de Giddens é a de mostrar não uma ruptura entre o pessoal e o social institucionalizado, mas explicitar novas bases sobre as quais se desenvolve essa relação, onde situações tão diferentes e localizadas estão diretamente interligadas. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a intimidade e a impessoalidade adquirem um lugar de expressão comum, e espaço único, indiferenciando-se enquanto especificidades.

Surge daí um questionamento: a busca da auto-identificação  seria uma forma de narcisismo ou uma maneira do homem resistir às pressões das instituições modernas ?

Talvez, esse dilema possa ser melhor compreendido por meio da exposição de Giddens sobre a fenomenologia da modernidade, que caracteriza em

... quatro estruturas de vivência dialeticamente relacionadas: deslocamento e reencaixe: intersecção de estranhamento e familiaridade. Intimidade e impessoalidade: intersecção de confiança pessoal e laços impessoais. Perícia e reapropriação: a intersecção de sintomas abstratos e cognoscibilidade cotidiana. Privatismo e engajamento: a intersecção entre aceitação pragmática e ativismo. (Giddens, 1991, p. 140).

Esse é o movimento que caracteriza a vida cotidiana., onde as oscilações  e o direcionamento e redirecionamento respondem  pela apreensão dos fenômenos psicossociais, ao mesmo tempo em que a ambigüidade se mostra como elemento constante.

[...] – o mundo que se transforma gradativamente da familiaridade do lar e da vizinhança local para um tempo – espaço indefinido – não é de modo algum um mundo puramente impessoal... Vivemos num mundo povoado, não meramente um mundo de rostos anônimos, vazios, e a interpolação de sistemas abstratos em nossas atividades é intrínseco à sua realização. (Giddens, 1991 p.144)

Buscando diferenciar sua posição da de outros estudiosos, Giddens denomina de modernidade radicalizada (MR) sua concepção, em oposição à pós-modernidade (PM) e, sintetiza suas idéias afirmando sua convicção no poder do homem em se apropriar da vida cotidiana, apesar das perdas que sofre. Acredita, ainda, em processos ativos de auto-identificação, onde a  ambigüidade é uma constante, expressa nas relações de integração e dispersão, engajamento e pragmatismo, estranhamento e familiaridade. Sugere também que a solidão e distanciamento do homem, como apontado por outros estudiosos é resultado de uma percepção fatalista e desesperançosa do mundo moderno, onde não se percebe que as transformações ocorridas oferecem novas oportunidades combinadas, é claro, com limites e imposições.

Do ponto de vista psicológico, é melhor compartilhar da visão de Giddens, pois vislumbra possibilidades no horizonte do mundo humano.

Neste momento, vale lembrar a percepção de Morin (1973 p.108) acerca do homem: O homem histórico

 “é” um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjectivo cujas relações com o mundo objectivo são sempre incertas, um ser sujeito ao êrro e à vagabundagem , um ser úbrico que produz desordem. (Morin, 1973, p.108).

Esse homem multifacetado e ambíguo, cuja flexibilidade é responsável pela capacidade de reorganização da vida cotidiana, é dono de uma plasticidade que sugere sempre novas expectativas, novos domínios, novos “vir-a-ser”.

O ceticismo de Santos (1999), deve ser visto como uma preocupação do homem moderno e não como constatação de imposição e amarras apenas. Desconsiderar as questões que apresenta do mundo globalizado seria assumir uma ignorância intencional, uma recusa prévia em perceber a realidade como complexa e contraditória. Quando afirma a prevalência da subjetividade individual e abstrata, o faz fundamentado nas situações da realidade social que configuram o homem na pós-modernidade. Mas, faz também uma proposição, denunciando os dilemas que deve ser objeto de preocupação de todos. A superação desse dilema, exige:

[...]  uma nova teoria da democracia que permita reconstruir o conceito de cidadania, uma nova teoria da subjectividade que permita reconstruir o conceito de sujeito e uma nova teoria da emancipação que não seja mais que o efeito teórico das duas primeiras teorias na transformação da prática social levada a cabo pelo campo social da emancipação. (Santos, 1999, p. 270).

Assim, ao se tratar da subjetividade, deve-se ter em conta que a expressão do homem na vida em sociedade requer uma análise e um projeto político, de forma que a pessoa alcance projeção, garantindo seu espaço e reconhecimento social, entendendo essa projeção como direito e privilégio de todos os seres humanos. Não é possível compreender a subjetividade a não ser pela articulação entre sistema político (participação e representação), autonomia (conhecimento e reflexão crítica) e cidadania (igualdade de direitos e solidariedade).

 

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