O INCONSCIENTE SEGUNDO KARL ABRAHAM

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Renato Mezan
Instituto Sedes Sapientiae
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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MEZAN, R. The Unconscious According to Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.55-95, 1999.
Abstract: This paper presents the thought of Karl Abraham about the unconscious. It considers that many notions related to contemporary clinical psychoanalysis have been invented by Abraham. The study also evaluates the conceptual diferences between contemporary Psychoanalysis and the writings of Abraham.

Este artigo apresenta o pensamento de Karl Abraham sobre o inconsciente. Por um lado, considera que muitas das noções pertinentes à clínica psicanalitíca contemporânea foram inventadas por Abraham. Por outro, avalia as dimensões conceituais da distância existente entre a Psicanálise atual e os escritos de K. Abraham.

 

Ao receber o convite de João Frayze-Pereira para participar deste número da Revista dedicado ao tema do inconsciente, ocorreu-me que seria interessante retomar as idéias de um dos pioneiros da Psicanálise acerca do assunto. Os trabalhos de Karl Abraham não apresentam um interesse apenas histórico; introduzem-nos também a uma mente clara e precisa, que compreendeu de imediato o que era a nova ciência da alma e contribuiu de modo fundamental para o seu desenvolvimento. Muitas das noções que hoje consideramos como evidentes na clínica cotidiana foram inventadas ou aprofundadas por Abraham; por outro lado, é impossível apagar as sete ou oito décadas que nos separam do seu tempo, e uma das finalidades do presente artigo é justamente tentar avaliar as dimensões conceituais desta distância.

 

O homem e a obra

Primeiramente, alguns dados para localizar o personagem e seus escritos. Abraham nasceu em 1877, em Bremen, uma das cidades da Liga Hanseática, portanto comercial e majoritariamente protestante. Sua família era de judeus extremamente religiosos; o avô foi um rabino destacado, e desde menino ele apresenta um talento muito grande para línguas. Chegou a considerar a possibilidade de se dedicar à Filologia; aprendeu grego e latim na escola, e falava bem francês, espanhol, inglês e italiano. Sua cultura clássica é bastante grande, como se vê pelo que escreveu. Decide cursar medicina; como era o costume alemão na época, estuda em várias faculdades, um pouco em cada uma, e termina o seu curso na cidade de Freiburg, próxima à fronteira com a Suíça.

Decide então aperfeiçoar-se no hospital Burghölzli de Zurique, no qual se faziam então as pesquisas mais avançadas da psiquiatria européia. De fato, fica alguns anos nesta instituição, onde conhece Jung - ambos eram assistentes de Eugen Bleuler - e se familiariza com as idéias de Freud. No entanto, como alemão e como judeu, o futuro de Abraham na Suíça não seria dos mais brilhantes; percebe que não vai conseguir fazer carreira, e, depois de se aconselhar com Freud - a quem visita no final de 1907 - resolve voltar para Berlim, ali se instalando no ano seguinte. Abraham vai se tornar o principal personagem da Psicanálise alemã, posição que conservará até a sua morte prematura (aos 48 anos) no dia de Natal de 1925. Presidiu a Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft, tendo sido reeleito diversas vezes: isto lhe deu, evidentemente, uma posição de extremo destaque na política psicanalítica. Também foi presidente da IPA entre 1924 e 1925.

Muito sumariamente, esta é a trajetória de Abraham. Quanto à influência que exerceu sobre a psicanálise, basta dizer que foi o analista de muitos analistas que depois se tornaram importantes: Helen Deutsch, os irmãos James e Edward Glover, Melanie Klein Sándor Radó, Theodor Reik, a mulher de James Strachey - Alix Strachey - e muitos outros. Formou diretamente, portanto, boa parte da elite psicanalítica dos anos seguintes. Em 1920, a cidade de Berlim presencia a fundação do Instituto de Psicanálise, modelo de todos os outros que vieram depois: Abraham participa do Instituto com aulas e supervisões.

Durante a guerra, Abraham foi psiquiatra militar, e lá acumulou experiência sobre as neuroses traumáticas, tendo participado com um artigo no volume coletivo dedicado em 1919 às neuroses de guerra (Abraham, 1966, p.173-80). Neste artigo, como em outros, aparece um traço característico de Abraham: o de baluarte da ortodoxia. É um homem extremamente inteligente, como Ferenczi e os demais que se aproximam de Freud neste início da Psicanálise; mas, contrariamente a alguns dos seus colegas, jamais usou suas capacidades para organizar uma contestação. Tudo indica que ele encontrou, na pessoa de Freud e no movimento psicanalítico, um substituto paterno não-ameaçador. Há uma extensa correspondência de Abraham com Freud (Freud & Abraham, 1965), cobrindo os anos de 1907 até praticamente a sua morte, e ali ambos falam sobre tudo: assuntos políticos, brigas internas da Psicanálise, saúde da família, nascimento dos filhos – passa tudo pela correspondência.

Lendo essas cartas, se vê claramente que a postura de Abraham é sempre a de não contestar: nem os fundamentos teóricos da Psicanálise, como farão outros, nem a posição paterna, de liderança, que cabia a Freud. O que o torna, obviamente, o aliado ideal; e justamente por ser tão fiel, é um pouco desprezado por Freud. Este gastou muito mais tempo, tinta de caneta e energia tentando se entender com Jung e com Ferenczi do que com Abraham, para quem reservava palavras às vezes um pouco duras. Contudo, nas disputas que atravessaram o movimento psicanalítico enquanto viveu, Abraham sempre tomou o partido da instituição. Era membro do famoso comitê secreto em torno de Freud; opôs-se a Jung, depois se opôs a Rank, e escreveu várias críticas a textos dos colegas que lhe pareciam ser desvios perigosos para a integridade da Psicanálise.

Embora um tanto genéricas, estas informações nos bastam para localizar a obra deste autor. Se o leitor quiser mais detalhes, pode consultar um artigo-homenagem póstuma publicado por Ernest Jones (1926, p.155-81) no International Journal de 1926, que traz um bom um resumo da obra do colega falecido. Há também o necrológio escrito por Freud, no terceiro volume das Obras completas em espanhol, e o discurso fúnebre do seu ex-paciente Reik, proferido no dia do enterro, que está no livro Variações psicanalíticas sobre um tema de Gustav Mahler (Freud, 1953).

Para conhecer a obra de Abraham, além dos seus escritos – alguns dos quais serão discutidos mais adiante – dispomos de duas boas fontes. Uma é o artigo de Ernest Jones (1926), base de tudo o que se escreveu sobre o nosso autor desde então, e que também aqui será utilizado como referência. A outra tem uma história curiosa: na esteira do seu interesse pelo passado da Psicanálise, Lacan encomendou a dois alunos seus, então jovens e aplicados, que fizessem uma leitura da obra de Abraham e a apresentassem num seminário. O trabalho foi realizado por por Guy Rosolato e Daniel Widlöcher (1958); chama-se "Karl Abraham: leitura de sua obra", e saiu na revista La Psychanalyse, n.4, 1958.1

Segundo Jones (1926), os trabalhos de Abraham podem ser divididos em quatro grandes grupos. Ao primeiro ele chama "primeiros trabalhos pioneiros", e dois deles merecem reter nossa atenção. Seu texto de estréia na Psicanálise chama-se "Diferenças psicossexuais entre a histeria e a demência precoce", e logo é seguido por um outro, "Relações psicológicas entre sexualidade e alcoolismo": são as primeiras abordagens psicanalíticas sobre esses temas. O artigo sobre a histeria e a demência precoce, e sobre a diferença entre estas duas patologias, é uma intervenção na discussão que Freud mantém com Jung, para saber se a psicanálise serve para estudar as psicoses ou não. A opinião de Jung é que não, a opinião de Abraham é que sim; no entanto, ele é um psiquiatra e sabe que um demente precoce não é a mesma coisa que um histérico. Escreve então este artigo, utilizando uma idéia que Freud lançou e que ele aproveitou e desenvolveu: na verdade, é possível, sim, aplicar a teoria sexual às psicoses, desde que entendamos que nelas a libido reflui dos objetos para o ego. Ou seja, nesse artigo se antecipa a noção de narcisismo. Logo em seguida, publica um livro bem interessante, Sonho e Mito (1909), que explora alguns mitos bíblicos e gregos; traz uma análise extremamente interessante de Prometeu, assim como das histórias de Sansão, Adão e Eva, Caim e Abel, etc. Isso é interpretado à luz da psicanálise de 1909, ou seja, os mitos são realizações de desejo, e demonstram os mesmos mecanismos que os sonhos – deslocamento, condensação – no nível coletivo. É um livro de 1909; não deve ser lido como se tivesse sido escrito em 1998, mas tem idéias extremamente sugestivas.

Em seguida vem o grupo que Jones (1926) chama, no seu artigo, "neat and finished studies", ou seja, estudos bem feitos e bem acabados. Dois são de Psicanálise aplicada: "Giovanni Segantini", sobre um pintor suíço que então era bem conhecido, e "Amenhotep." Este discute a personalidade do faraó que tentou instalar, no Egito antigo, o culto monoteísta ao deus do Sol. A base para este trabalho é a descoberta das tábuas de Tel-el-Amarna, em 1880; por estes documentos, ficou-se conhecendo a história deste faraó, marido da famosa Nefertiti, cujo busto adorna hoje o Museu Egípcio de Berlim. O essencial desta história é o vínculo do jovem faraó com a mãe, e o fato de ele ter mandado apagar de todos os monumentos o nome do seu pai.2

Ainda neste grupo dos "estudos bem acabados", Jones (1926) enumera quatro trabalhos de Abraham obrigatórios para quem quiser estudar mais de perto este autor. O primeiro é um texto de 1913, "As transformações do voyeurismo nos neuróticos." É um trabalho muito curioso, onde Abraham estuda a pulsão visual; vai desde a fotofobia (indivíduos que têm dificuldade com a luz) até a significação sexual de certas imagens3.

Depois, em 1916, escreveu "Sobre a ejaculação precoce", também um trabalho pioneiro. O terceiro, de 1918, é o das neuroses de guerra. Por fim, em 1920 surge um trabalho dos mais originais, "Manifestações do complexo de castração na mulher". É o primeiro artigo psicanalítico a focalizar em detalhe a questão da sexualidade feminina, à luz das teorias vigentes na época. Quando fala em complexo de castração na mulher, Abraham não se refere apenas à sensação que as mulheres podem ter de terem sido castradas, mas ao desejo ativo de castrar o homem: ou seja, o complexo de castração na mulher na sua manifestação agressiva, sob a forma de fantasias cruas de arrancar o pênis do homem, ou na forma de imagens um pouco mais sublimadas, mas que vão no mesmo sentido.

O terceiro grupo contém os que Jones considera "the most original works" de Abraham, os seus trabalhos mais originais, dos quais faz parte História da libido, que vamos comentar logo mais. Jones enumera, além deste clássico, mais dois artigos. Um é de 1916, "Exame da etapa pré-genital mais precoce no desenvolvimento da libido": é a reação de Abraham à publicação da terceira edição dos Três Ensaios, em que Freud introduz a noção de fase oral. Nesse texto, a fase oral é examinada por Freud em três parágrafos; já o artigo de Abraham traz uma quantidade de dados clínicos e teóricos que aprofundam bastante a idéia de erotismo oral.

Além deste artigo de 1916 e do livro sobre a história da libido, faz parte deste grupo um outro, publicado em 1925, e que reúne três ensaios dos anos vinte: Estudo Psicanalítico da Formação do Caráter. Este é o ancestral direto do Análise do Caráter de Reich. Abraham discute aqui, em três trabalhos separados, o caráter oral, o caráter anal e o caráter fálico; e continua um tema que já abordara anteriormente, o da resistência narcísica em psicanálise. Sob o título "formação do caráter" ou "estudo do caráter", na verdade o que se faz é estudar o ego, suas defesas e suas patologias. Muito do que aparece nos escritos dessa época com o nome um pouco estranho de "caracterologia", quando de índole mais psicopatológica, é sobre o que chamamos hoje de borderline ou personalidades narcísicas; quando a perspectiva é mais genética, o assunto é a formação do ego e os problemas que ela pode apresentar.

O quarto grupo é o dos "shorter papers", dos quais Jones (1926) diz que são sobre assuntos muito variados: de fato é assim, de modo que não os mencionarei aqui; podem ser encontrados nos dois volumes das Obras completas.

 

O interesse pelo "precoce": o pré-genital

Com estas referências básicas, podemos agora abordar o pensamento de Abraham. Continuando na companhia de Jones, aprendemos que nosso autor se ocupa basicamente de cinco grande áreas dentro da psicanálise. O primeiro desses seus interesses foi a infância e a sexualidade infantil, tema no qual destaca o trauma e a reação dinâmica ao trauma. O erotismo oral, especialmente os seus efeitos na vida posterior do indivíduo, é também investigado por Abraham. O livro sobre a história da libido talvez seja o exemplo mais claro deste interesse, porque o que ele conta é exatamente a história da libido infantil. Sobre os estágios que Abraham introduz na história da libido, Jones tem o seguinte a dizer:

Nenhuma dessas subdivisões – fases oral, sádica, etc. – foi originalmente criada por Abraham; mas a forma detalhada e explícita pela qual ele as analisou, mostrando as relações precisas de cada uma com as demais, constitui um trabalho de mestre. (1926, p.164).

Em seguida vêm os trabalhos sobre a sexualidade: coerentemente, Abraham se interessa sobretudo pelas pulsões parciais e pelo funcionamento delas nas etapas ditas pré-genitais. Dois ou três desses trabalhos podem ainda hoje ser lidos com proveito. Um, de 1912, é extremamente interessante: trata-se de um estudo sobre o fetichismo do pé e do corsete. O corsete é aquele item da indumentária feminina que Coco Chanel aposentou: uma espécie de espartilho, que servia para realçar o busto. O artigo sobre o voyeurismo também traz exemplos de uma pulsão parcial, no caso a pulsão de ver. No texto sobre a ejaculação precoce, fala sobre o erotismo uretral; e, no artigo de 1920 sobre o complexo de castração na mulher, discute a questão do pré-genital na evolução feminina. Pré-genital, porque o desejo de castração se manifesta muitas vezes sob a forma do morder, ou seja, é uma castração oral realizada sobre o pênis do parceiro (Abraham, 1912, p.91-8). Além disso, escreveu sobre o sadismo, a analidade, a fixação incestuosa, etc.

Vê-se, mesmo por esta rápida enumeração, que toda essa temática do precoce, do arcaico, é extensamente trabalhada por Abraham. Não é de admirar que sua discípula Melanie Klein também tenha se interessado por isso. Que eu saiba, não existe nenhum depoimento sobre a forma como Abraham analisou a própria Melanie Klein, que freqüentou seu divã por dois anos. Será que esta parte da vida de Melanie Klein foi especialmente explorada, já que Abraham tinha interesse e competência para fazer isso com seus pacientes? É bastante possível que esta análise, feita nos últimos anos da vida de Abraham e interrompida por sua morte, tenha entrado fundo no "arcaico" da própria Melanie Klein. Isto eventualmente daria a ela instrumentos para perceber a mesma problemática nas crianças com quem trabalhava, e depois teorizar e criar instrumentos de abordagem disto em seus pacientes.

Em todo caso, é visível que – seja do lado de Abraham, seja do lado de Ferenczi – os dois principais discípulos de Freud tentam, já desde os anos dez e certamente nos anos vinte, ir além (ou aquém) daquilo que Freud havia explorado mais: o nível edipiano, com todos os seus correlatos. Isso não quer dizer que Freud não tenha se interessado pelo arcaico; as noções mesmas com as quais esses autores trabalham, fase oral, anal, etc., são inventadas por ele. Mas o ímpeto exploratório para este passado mais remoto de fato é dado pelos seus colaboradores.

O terceiro item da lista de Jones são os "estudos clínicos" sobre a demência precoce e histeria, e também os que se dedicam à psicose maníaco-depressiva, que é o terreno favorito de nosso autor. Um deles, de 1913, chama-se "Preliminares à investigação e ao tratamento psicanalítico da psicose maníaco-depressiva." Em todos esses trabalhos, inclusive os que estão coletados no livro da história da libido, Abraham segue insistentemente uma pista: a alternância melancolia/mania, ou fase depressiva/fase maníaca, naquilo a que se chamava na época de "doença circular", e que hoje é mais conhecida como "doença bipolar". Há um fato ao qual ele, como psiquiatra, era extremamente sensível: na maníaco-depressiva, o indivíduo se apresenta livre de sintomas durante intervalos mais ou menos longos. Quer dizer, a depressão não é seguida imediatamente pela mania, por sua vez seguida imediatamente por depressão, e assim por diante. Há fases maníacas, mas depois vem um "intervalo livre", como se diz; aparece a fase depressiva, depois outro intervalo livre. Esse tipo de organização psicopatológica, um pouco misterioso e que escapa à simples oposição paranóia/esquizofrenia, atrai o interesse de Abraham, especialmente porque durante a fase dita livre de sintomas o comportamento destes pacientes é muito parecido com o comportamento dos obsessivos. Essa é o gancho dos seus estudos, que vão bem longe tentando entender por que e como é assim.

Nesse exame da psicose maníaco/depressiva, o interesse de Abraham é também atraído pela relação específica que estes pacientes mantêm com a figura materna. No artigo de 1916 "Exame da etapa mais precoce", que é sobre a fase oral e a depressão, ele fala em algo que muitos acreditam ter sido inventado por Melanie Klein, mas é dele: a "depressão primária na infância". Utiliza a idéia de um analista holandês, Stärcke, que havia publicado um artigo no qual diz que a retirada do seio, no desmame, tem para o bebê o efeito de uma castração. Abraham se apóia na observação do colega holandês, e desenvolve, neste artigo de 1916, a idéia de uma depressão primária na infância ligada à perda dos primeiros objetos.

Ainda nessa linha psicopatológica, escreveu trabalhos sobre inúmeros outros temas: angústia, fobia, histeria, tiques, alcoolismo, drogas, etc. Também inaugurou a discussão clínica sobre análise com pacientes mais velhos: há um artigo de 1920, "Prognósticos sobre a psicanálise em pacientes com uma certa idade", no qual, lembra Jones (1926), Abraham diz que o prognóstico depende mais da idade da neurose do que da idade do paciente, o que não deixa de ser verdadeiro. Ou seja: ele cobriu um largo espectro de assuntos, escrevendo artigos sobre praticamente tudo o que interessa a um psicanalista do ponto de vista da psicopatologia. Aqui cabe uma observação marginal: Abraham tem um estilo muito diferente do de Ferenczi. Se lemos trabalhos escritos pelos dois sobre o mesmo assunto, por exemplo sobre as neuroses de guerra, ou sobre os tiques, isto é perfeitamente perceptível. Abraham é conciso e objetivo; já se disse, com razão, que nele falta poesia, e é exatamente o que sobra em Ferenczi. Tanto pelo estilo mais metafórico, às vezes mais alusivo, quanto pela pujança da imaginação; alguém capaz de escrever Thalassa (Ferenczi, 1990) é uma personalidade muito diferente de alguém que escreve a História da Libido.

Ainda segundo Jones (1926), outros temas de interesse de Abraham são a caracterologia e os símbolos, sobre os quais escreveu pequenos textos extremamente interessantes: neles aborda o simbolismo da aranha, o simbolismo da cobra, a encruzilhada na lenda de Édipo, o número três, a escuridão – enfim, diferentes coisas que os pacientes mencionavam nos seus sonhos e associações.

Por fim, os trabalhos sobre "psicanálise aplicada" Jones (1926, p.174) escreve que aqui Abraham abriu o caminho para as pesquisas posteriores sobre mitologia efetuadas por Otto Rank, Theodor Reik e outros. No livro sobre Sonhos e Mito, além das lendas que já citei, Abraham estuda as "bebidas divinas", como o néctar, interpretando-as como símbolo dos líquidos corporais, especialmente o sêmen. Hoje, talvez pudéssemos aproveitar suas idéias sobre as bebidas divinas para fazer uma análise da ideologia da saúde. Não temos mais néctar; mas temos Gatorade, ou o espinafre de Popeye, cuja eficácia é exatamente a mesma. Os traços orais de avidez, voracidade, insaciabilidade, aparecem na nossa cultura para quem quiser ver, engendrando inclusive a hipótese de que talvez a patologia por excelência desse final de século – assim como foi a histeria no século passado – pudesse ser a anorexia (Robell, 1997). Anorexia e fase oral: não é preciso muita inteligência analítica para fazer a ponte. Se for assim, temos aqui realmente um emblema do mundo contemporâneo, e nesse caso a obra de Abraham se revela de uma atualidade extrema.

Para concluir essa abordagem inicial, vale a pena citar um trecho de Jones:

Se tivéssemos que selecionar um único trabalho de Abraham como o mais importante, seria provavelmente o que realizou sobre o erotismo oral. Ele descreveu com riqueza de detalhes suas variadas manifestações, mapeou claramente o seu desenvolvimento interno e a sua evolução para (into) as fases posteriores; explicitou sua relação tanto com o amor quanto com o ódio, demonstrou sua importância clínica a respeito do alcoolismo, da drogadição e especialmente da psicose maníaco/depressiva, e – last but not least – nos deu uma visão reveladora do importante papel que o erotismo oral desempenha na formação do caráter. Talvez a lição mais relevante que devemos a Abraham seja a importância imensa do período de amamentação, e as portentosas (fateful) conseqüências que o antagonismo frente à mãe durante esse período pode ter para a vida posterior. (Jones, 1926, p.176-7).

 

A relação de objeto

Esse texto de Jones forma um pano de fundo para o tipo de comentário que fazem Rosolato e Widlöcher (1958), menos resenhístico e mais de conteúdo. Especialmente porque, quando Jones diz que Abraham explicitou a relação do erotismo oral com várias coisas, mapeando claramente seu desenvolvimento interno e sua evolução into succeeding libidinal phases, aquilo a que está aludindo, na minha maneira de entender, é à idéia de relação de objeto. O erotismo oral é apreendido por Abraham sob a forma de uma relação oral com um objeto predominantemente oral, mas que pode não ser oral no sentido concreto. A oralidade vai se deslocando cada vez mais da pulsão e da zona erógena da boca para uma forma de apreensão do objeto que se chama incorporação, e que é a metabolização da oralidade biológica.

Por que ver aqui a idéia de relação de objeto? Quando Jones lembra "suas várias manifestações, etc.", e também que Abraham mapeou o seu desenvolvimento interno e sua evolução rumo às fases posteriores, fica claro que o erotismo oral permanece nestas fases - anal, fálica, etc. - sob a forma de resíduos da relação de objeto oral. É sobre este ponto, especificamente, que se detém o trabalho de Rosolato e Widlöcher (1958, p.154-78).

Para tanto, analisam cuidadosamente a História da Libido (Abraham, s.d.), ressaltando neste livro o desejo de "estabelecer correspondências estreitas entre o esquema da organização libidinal e as diversas entidades clínicas", o que exige refinar e subdividir o dito esquema. O ponto de partida para isto, como já lembrei, é a identidade de sintomas entre a psicose maníaco/depressiva nos chamados "intervalos livres" e a neurose obsessiva: ordem, limpeza, desconfiança, obstinação, valorização da posse, etc. O que faz com que Abraham pense que eles devem provir de uma mesma fase libidinal: trabalha então com a idéia de fixação. Sabe-se que a neurose obsessiva tem a ver com resíduos da etapa sádico-anal; se a hipótese da semelhança de sintomas com a psicose maníaco/depressiva for bem fundamentada, então esta também teria algo a ver com o mesmo estágio. Dito de outro modo: como a idéia-chave é que cada entidade psicopatológica está vinculada a um momento do desenvolvimento psicossexual, a identidade de sintomas faz pensar em algum vínculo genético entre essas duas patologias. Isto está dito na primeira página de História da Libido.

Como ele sai da dificuldade? Dividindo a fase sádico/anal em duas sub-fases. O raciocínio é muito simples: a identidade de sintomas aponta para a identidade de origem, mas, se esta fosse total, não haveria por que existirem duas neuroses. Se são duas, é porque há alguma coisa de diferente dentro da própria fase em que se originam; daí a idéia de a subdividir. Abraham vai propor a distinção (que se tornou clássica) entre "fase anal expulsiva" e "fase anal retentiva", a primeira ligando-se à maníaco-depressiva e a segunda à neurose obsessiva. Na verdade, a melancolia tem a ver tanto com a primeira sub-fase anal quanto com a segunda sub-fase oral, a da incorporação. Por isto Abraham toma como fio condutor os impulsos de destruição do objeto, seja em suas manifestações orais, seja nas anais.

O desenvolvimento começa no estágio oral de sucção ou de indiferenciação auto-erótica, e vai caminhando através dos estágios oral canibal, os dois anais, o fálico e o genital. O quadro abaixo, construído por Rosolato e Widlöcher (1958), condensa várias versões do esquema dispersas em diferentes artigos e textos de Abraham:

 

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O que pensar do esquema proposto por Abraham? O princípio dele é, como dizem os dois franceses, uma "escalarização", a construção de uma escala. Isto tem vantagens e desvantagens. Por um lado, facilita perceber o vínculo entre as neuroses e as fixações e regressões; por outro, o próprio Abraham era sensível às desvantagens desse método, que são várias: rigidez, clichês óbvios, correspondências talvez inexatas, paralelismos abusivos que se fazem entre tal ou qual neurose e tal ou qual fase do desenvolvimento. Isso poderia ser eventualmente resolvido refinando o esquema; Margaret Mahler, por exemplo, tentou fazer isso. Ela toma o esquema de Abraham e o vai subdividindo, criando fases e sub-fases, abrindo janelas dentro de janelas, em termos mais modernos. No limite, seria possível vincular – um pouco como na tábua de Mendeleyev - cada patologia a um determinado tipo de conflito, que teria o seu lugar numa seqüência lógica e cronologicamente determinada.

Mas o grande problema desse tipo de esquema, dizem Rosolato e Widlöcher (1958)– a meu ver com razão – é que ele pressupõe, e isso está errado, que a regressão se dê na mesma ordem que a progressão. A progressão tem uma ordem fixa e imutável: fase oral 1 e 2; fase anal 1 e 2; fase fálica, fase genital; não dá para atravessá-las de outro jeito. Já a regressão não: o indivíduo pode estar na fase genital, e por razões A, B ou C experimentar uma regressão para a fase oral, sem passar pela anal. Especialmente se se pensar, como Abraham faz, cada vez menos em termos de etapas cronologicamente delimitadas, e cada vez mais como modos de apreensão de objeto ou, para usar o termo consagrado, como modos de relação de objeto. Por que? Porque, se tenho relações de objeto oral, anal, fálica e genital, em tese elas podem estar simultaneamente disponíveis.

Seja como for, com todas as cautelas que se devem tomar, o esquema de Abraham é útil, tanto porque coloca as coisas numa seqüência clara, quanto porque procura estabelecer, como diz Jones corretamente, vínculos entre vários aspectos do funcionamento e do desenvolvimento psíquico. É o que mostra o quadro montado por Rosolato e Widlöcher (1958). O que é, em suma, esse famoso esquema?

São seis etapas. O primeiro estágio é aquele a que Abraham chama "estágio da sucção": em termos de relação com o objeto, não há objeto externo, e em termos de vínculo pulsional é pré-ambivalente, não há ainda a distinção amor/ódio. O objeto é o próprio indivíduo e o prolongamento dele no seio materno, percebido como uma parte do corpo próprio; por isso é auto-erótico. Também não há nenhuma inibição da relação de objeto. Caso haja uma fixação a essa fase, a patologia resultante é o autismo, ou a catatonia; a melancolia, diz Abraham, tende para este ponto como seu fim. A este respeito, são analisadas as tendências suicidas dos melancólicos como sinal de que finalmente chegamos onde tínhamos que chegar, isto é, a um ponto sem inibição, mas também sem objeto, auto-erótico, pré-ambivalente e morto. É o "primeiro e mais precoce estágio do desenvolvimento libidinal".

O segundo estágio é o "sádico-oral ou canibal", na terminologia de Totem e Tabu. Aqui aparece o narcisismo com incorporação total do objeto: é um estágio ambivalente, porque no narcisismo existem amor e ódio. A característica patológica mais saliente dessa fase é aquilo que Abraham chama de "ansiedade mórbida", ou angústia. Laplanche dirá em seu livro sobre a angústia que esta é o afeto de base. Sendo o afeto de base, aquele no qual se transformam ou podem se transformar todos os outros, tem que aparecer muito cedo na vida psíquica. É por isso que Abraham o coloca aqui, logo no início: assim que surge a ambivalência, surge junto com ela a angústia, e esta vai ser a fase à qual regride, na etapa depressiva, o melancólico. Ele tende para a fase 1, mas na maior parte do tempo permanece na fase 2, de onde os seus sintomas propriamente depressivos.

Depois vem o primeiro estágio sádico-anal, que é o expulsivo. Abraham fala aqui em "amor parcial com incorporação": é um estágio ambivalente, vincula-se à homossexualidade, e a formação reativa correspondente é o nojo. A manifestação sintomática mais interessante dessa fase são os tiques, e, como patologia fixada nessa etapa, temos as psicoses, especialmente a paranóia e a melancolia nos ditos intervalos livres.

Em seguida vem a quarta etapa, ou segunda fase sádico-anal, dita retentiva, também parcial, também ambivalente; é o momento em que se instala o sado-masoquismo. Segundo Abraham, a formação reativa contra o sadismo é a compaixão ou a piedade, e este é o ponto de enraizamento preferencial da neurose obsessiva.

Depois vem a fase 5, fálica ou primeira genital, onde temos o amor objetal e o complexo de castração, visivelmente ambivalente. Aqui predominam as pulsões parciais mais "elevadas", a escoptofilia e o exibicionismo. Conseqüentemente, as formações reativas correspondentes serão o pudor ou a vergonha, ligados exatamente à exibição e à visão. Nesta fase se enraízam as histerias de angústia, ou fobias, e as histerias de conversão.

Por fim, no sexto estágio, ou fase genital, aparece o amor objetal dito pós-ambivalente, e as inibições das pulsões são de caráter sublimatório; o controle da inervação e a capacidade de assumir e administrar os estímulos psíquicos, como diz Abraham, são normais; é a fase da normalidade. A respeito dessa sexta etapa, vale observar que nos Seminários a ironia de Lacan se fez sentir sobre a noção de "amor genital". Mas Abraham está longe de ser um imbecil; sabe perfeitamente que o que chama de "etapa genital pós-ambivalente" não tem nada de samaritano, e, se tivesse, seria patológico. O critério da normalidade na fase objetal "completa" ou genital é, diz ele, "o grau em que o indivíduo consegue superar, sempre relativamente, o narcisismo e a agressividade nas suas relações com os objetos." (Abraham, s.d., p.278).4 É isso que segundo Abraham define a normalidade psíquica e o amor objetal; não quer dizer que o amor objetal esteja isento de ambivalência ou de narcisismo. A meu ver, esta é uma excelente definição de normalidade em Psicanálise; nada tem nada a ver com média estatística, mas admite um critério qualitativo-dinâmico, ligado à qualidade da relação com o objeto, determinada por uma certa proporção entre o interesse pelo outro e o interesse por si mesmo, assim como entre agressividade e amor.

Dito isto, Rosolato e Widlöcher (1958) voltam à questão do protótipo da depressão, e insistem muito no fato de que o abandono pela mãe na infância mais precoce foi diagnosticado por Abraham como uma fonte de traumas. O indivíduo que passou por este tipo de experiência reagirá a cada ameaça como se fosse uma ameaça de abandono, e portanto, no maníaco-depressivo, a compulsão de repetição será especialmente intensa. Abraham acha que talvez o terreno ideal para verificar as hipóteses freudianas do Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920-1922) seja exatamente a psicose maníaco-depressiva, não só porque ela é cíclica, e portanto a repetição está obviamente instalada, mas ainda porque o modo de relação básica com o objeto (temer o abandono, agir preventivamente contra ele, e ao fazer isso provocar exatamente exatamente a rejeição pelo outro) é a realização mesma da repetição sem sair do lugar.

Os dois autores (Rosolato & Widlöcher, 1958) assinalam ainda uma característica importante da noção de relação de objeto: os operadores que a tornam manejável. Propõem uma pequena tabela a partir dos esquemas de Abraham, na qual aparecem "séries metabólicas" próprias a cada fase pré-genital:

 

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Na tabela, estão esquematizadas as relações objetais dos estágios entre o narcisismo originário e a fase fálica: a fase oral "canibal"; a fase sádico-anal expulsiva (1), e a fase sádico-anal retentiva (2). Temos na primeira linha os atos de receber, abandonar e guardar. O modo de relação no qual prevalece cada um desses atos chama-se apropriação, rejeição ou conservação (segunda linha). Conseqüentemente, o mecanismo psíquico através do qual se realiza a apropriação, a rejeição ou a conservação chama-se respectivamente incorporação, expulsão e retenção.

Fica bem claro que na relação de objeto consiste, no essencial, num determinado ato psíquico: por isso o verbo e o substantivo, indicando modalidades de captação e de "modelização" do objeto. Qual é a novidade das fases anais frente à oral? Aquilo que está na coluna 1 com o nome de incorporar é desdobrado, nas seguintes, em expulsar e reter. Incorporar significa pôr para dentro, isto é, de alguma maneira reter, mas também - e simultaneamente - expulsar o que não se pode ou não se quer ingerir. A incorporação é freqüentemente parcial; ela vai se tornando cada vez mais parcial, até se transformar em identificação. Lacan vai falar em identificação a um traço, Freud falava em identificação histérica a um sintoma: trata-se de um mecanismo apto a depurar algo que, no início da vida, ainda é extremamente maciço.

Nas fases seguintes, aquilo que estava indiferenciado na incorporação se desdobra em dois movimentos diferentes, o que possibilita falar em "incorporação anal". Nas discussões clínicas dos anos 30 e 40, é comum encontrarmos referências à "incorporação anal do pênis paterno". A incorporação é um modo oral de relação; mas pode-se perfeitamente imaginar uma incorporação (oral) que ocorresse pelo ânus: não é porque envolve o ânus que precisa ser anal. O que permite diferenciar uma coisa da outra não é a zona erógena envolvida, mas o que acontece com este objeto; pode haver uma incorporação oral pelo ouvido, por exemplo.

Aliás, um estudo interessante de Abraham é sobre o ouvido como zona erógena. Os amantes da música, ou os analistas que investem no ato de ouvir, encontram-se nesta situação. Todos nós que assistimos aulas e conferências realizamos constantemente uma incorporação fantasmático-oral pelo ouvido. Na mitologia cristã, é assim que são às vezes representadas as imagens do Espírito Santo. No século XIV, principalmente na escola de Siena, é comum ver a Anunciação representada deste modo: o anjo Gabriel, ou uma pomba (emblema do Espírito Santo) comunicam à Virgem que terá um filho, e as palavrinhas aparecem numa bandeirola entrando no ouvido da jovem: incorporação oral – aqui, fecundação propriamente dita - pelo ouvido.

 

A ambivalência e o problema do dualismo pulsional

Com as observações precedentes, entramos já no vivo da nossa questão: o que há no inconsciente é, entre outras coisas, algo a que se pode chamar relações de objeto. Estas representam modos de absorção e de configuração do objeto; cabe perguntar como se relacionam com as zonas erógenas ou com a pulsão parcial que as ativa. Este é o problema teórico que Abraham vai tentar resolver no seu livro; para isto, estuda a trajetória do desenvolvimento, e sobretudo trabalha com a idéia de um conflito interno à própria libido. Em outras palavras, trata-se de uma psicopatologia que não apela em instante algum para a noção de uma pulsão agressiva independente. Mas isto não o impede de falar várias vezes no "conflito de ambivalência". Como entender esta expressão? Para propor uma resposta, é preciso retornar um momento à tabela de Rosolato e Widlöcher (1958), assim como ao papel extremamente importante que nas diversas etapas psicossexuais desempenha a ambivalência. Das seis ali descritas, quatro – as centrais – são ditas ambivalentes, e as outras se definem em relação a este critério: a pré-ambivalente e a pós-ambivalente.

Em termos pulsionais, ao que se deveria esta onipresença da ambivalência? A primeira resposta que ocorreria a um psicanalista é: a uma mistura da pulsão sexual com alguma outra coisa que não fosse a pulsão sexual. Quando se fala em conflito de ambivalência, pensamos imediatamente na oposição entre amor e ódio ou hostilidade frente ao objeto. Esperaríamos então que Abraham fizesse considerações a respeito dessa "outra coisa", que não seria a pulsão sexual, e que, no tempo que ele escreveu este livro - isto é, em 1921 - apenas há poucos meses se intitulava na obra de Freud pulsão de morte, com a sua componente auto-destrutiva.

Por que estou fazendo tanto caso disto? Depois da idéia de inconsciente, a idéia de conflito psíquico talvez seja a noção mais fundamental de que dispõe a Psicanálise para tentar compreender o funcionamento do ser humano. Quem fala em conflito, fala em luta entre algo e outro algo, que por definição não pode ser o mesmo algo. Este não é de modo algum um problema metafísico ou especulativo, porque definir o que são esses "algos" que se combatem no conflito psíquico implica opiniões bastante precisas sobre como tal conflito pode eventualmente ser minorado, portanto sobre as possibilidades da terapia, e também sobre as modalidades concretas em que ele se apresenta, ou seja, as estruturas psicopatológicas.

Sabemos que, desde o início do seu trabalho, Freud vê na sexualidade uma força; não necessariamente uma pulsão, mas uma tendência, que impele para o objeto. Contra esta tendência age um repúdio, cuja natureza não é muito bem esclarecida nos seus primeiros trabalhos. Ele ora é figurado pela censura do sonho, ora pelos ideais morais, por exemplo no caso Elizabeth dos Estudos sobre a Histeria (Freud, 1893-1895), ou no caso da paciente que não podia vir à sua sessão porque na vez anterior tinha desejado que Freud a beijasse. Há um impulso; esse impulso é de alguma forma silenciado, com conseqüências mais ou menos graves, por algo que se opõe a ele, e cuja natureza não é muito bem esclarecida nos primeiros trabalhos de Freud. Ele chama isso por vários nomes - por exemplo Gegenwille, contra-vontade ou vontade oposta – até vir a falar nas duas "tendências psíquicas" que se opõem no trabalho do sonho.

Com a entrada em cena da teoria das pulsões propriamente dita, nos Três Ensaios, Freud é levado - um pouco pela tendência à simetria - a dizer que às pulsões sexuais se opõe o que ele chama de Ichtriebe, as pulsões do ego, que também não é lá muito claro no que consistem. Também por uma razão de simetria, à libido – que seria o nome dado à energia dessa pulsão sexual – ele opõe o interesse, que seria a energia das pulsões do ego. Chamar o "interesse" de energia já complicado em meros termos psicológicos, quanto mais em termos metapsicológicos! O fato é que essa oposição é misteriosa; não se sabe exatamente ao que a sexualidade se opõe, em termos de força equivalente, embora se saiba desde sempre em Psicanálise que a sexualidade se opõe ao ego. Mas este é um pouco como o combate entre o urso polar e a baleia: o ego é uma instância psíquica, ou uma formação coerente relativamente estruturada, traço que o caracteriza desde o Projeto. Freud menciona a coesão quando, ainda no Projeto, define o ego como "conjunto de neurônios investidos". O que garante que esses neurônios formem um ego? É que eles estão amarrados entre si por conexões mais fortes do que as que existem com o ambiente ao redor. É uma estrutura coesa se opondo a uma força. Convenhamos que isto não é muito coerente do ponto de vista lógico, mas enfim é deste modo que as coisas se organizam: ego de um lado, sexualidade do outro, o ego sendo o agente das defesas ou do recalque, e a sexualidade impelindo à realização de desejos, à produção de fantasias, etc.

Freud (1910) tenta aplicar o esquema da dualidade pulsões sexuais/pulsões do ego, que eu saiba, uma única vez, num trabalho muito interessante: "Contribuição Psicanalítica à Teoria das Perturbações Psicogênicas da Visão." É um estudo escrito em 1910, com poucas páginas, onde ele procura explicar o fenômeno da "cegueira histérica". Nesse trabalho, diz Freud, o órgão da visão se apresenta como palco do conflito entre as duas pulsões. Uma o impele a ver coisas sexuais, a espiar pelo buraco da fechadura, e a outra se opõe a esse desígnio; como resultado disso, o olho fica incapacitado para ver qualquer coisa, sexual ou não.

Este artigo é mais conhecido pelo fato de que nele, pela primeira vez, Freud emprega o termo "complexo de Édipo" para designar o que sempre havia chamado de Vaterkomplex, o complexo paterno. Mas é um trabalho relativamente menor, e sem muita continuidade; penso que isso mostra um considerável embaraço por parte de Freud para saber ao que se opõe à pulsão sexual.

Mais ou menos na mesma época entra em cena a idéia de narcisismo, que é extremamente rica. Junto com a noção de inconsciente, talvez seja a idéia mais inteligente inventada pela Psicanálise desde 1895; inteligente no sentido de potencial para a compreensão de muitos fenômenos, e ao mesmo tempo com grande plasticidade de valência teórica, digamos assim, para entrar em combinação com muitas outras, e produzir conceitos derivados de grande alcance. A essência da idéia de narcisismo é que o ego pode ser investido como um objeto sexual. Disso se segue todo o restante.

Se o ego se revela objeto de um investimento libidinal, sob a forma narcísica, como fazer para que ele continue a ser o oponente da pulsão libidinal? Esse é um grande problema teórico e clínico, e vai levar a um dos pontos de discussão entre Freud e Jung. Se tudo é libido, então a libido é o élan vital de Bergson, e não há nenhuma especificidade sexual nela. Mas Freud insiste que sim, que há uma especificidade sexual, e faz uma série de malabarismos para tentar encontrar um oponente à altura da libido.

Por que ele precisa encontrar este oponente? Para poder preservar a idéia de um conflito como sendo aquilo que move o psiquismo. Este é um postulado da Psicanálise do qual não é possível abrir mão, ao contrário de outras abordagens psicológicas, nas quais a alma humana não é essencialmente, por definição, movida pelo conflito. Ele precisa de dois elementos, pelo menos, para poder falar a sério em conflito. De vez em quando, diz que esse problema não é tão importante: na História do Movimento Psicanalítico, (Freud, 1914) lemos que saber se existem uma ou duas pulsões é uma coisa que interessa tanto para a vida prática quanto saber, para a adjudicação de uma herança, se todos os homens são filhos de Adão e Eva. Mas esta saída é ligeiramente desonesta do ponto de vista intelectual; mais freqüentemente, vemos Freud confessar que há uma dificuldade séria neste ponto.

Com a idéia de pulsão de morte, que é o que precede imediatamente o texto de Abraham, o conflito pulsional passa a ser visto entre essas duas pulsões: Eros e ela. A introdução do conceito de pulsão de morte, como se sabe também pelos estudos de Laplanche, acarreta uma mudança de foco no estatuto da sexualidade. O que diz Laplanche, em suma, é o seguinte: até a introdução da pulsão de morte, a sexualidade é bad for you. Não é lá essas coisas alguém ser dominado pela sexualidade; isso produz neurose, perversão, psicose. A sexualidade é indispensável, mas tem um potencial destrutivo e perturbador inerente à sua própria vitalidade, que precisa ser contido pelo recalque ou pela sublimação, se não o resultado é a impossibilidade de se viver em sociedade. É a não-evolução psíquica – seja do lado de realização instantânea imediata de todos os desejos, a criança feroz, seja porque a sexualidade adere ao objeto - e uma vez tendo aderido a esse objeto não o larga mais, passando a funcionar pelo princípio do prazer.

Com a idéia de pulsão de morte, no entanto, a sexualidade se desloca para o lado do que é intrinsecamente bom, no sentido de ser o elemento vitalizador, criador e mantenedor das uniões, desde o plano celular-molecular (força de atração e de repulsão) até o plano cósmico. No Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920-1922), talvez numa parte redigida na noite em que Freud fumou vinte e dois charutos ao invés dos vinte habituais, ele se lança às especulações que todos conhecem: Eros vai fornecer desde a força química que mantém as moléculas juntas até a atração dos planetas entre si. Ou seja, é alguma coisa que varre o universo; de maneira alguma é somente psicológica, ou biológica-corporal.

E a esta força se opõe uma outra entidade, a pulsão de morte, que para Freud (1930) é um oponente igualmente temível, como ele diz no final do Mal-Estar da Civilização (1930[1929]), e certamente não é o criador de coisa alguma. Hoje há uma certa tendência a considerar a pulsão de morte como very good for you; pode até ser que seja, mas não é assim que Freud a concebe. Pulsão de morte é aquilo que arrasta o indivíduo para a desorganização e para o silêncio; é aquilo que é auto-agressivo, destruidor, mas primariamente auto-destruidor; e novamente as análises de Laplanche (1970) são bastante esclarecedoras a esse respeito, quando fala em hetero-agressão e auto-agressão.5

Por que isso é importante? Porque, voltando-se contra o indivíduo, o Todestrieb encontra a tendência à união e à multiplicação, que é Eros; e a agressividade, ou mais precisamente a hetero-agressividade, já é uma combinação das duas. Em O Ego e o Id (Freud, 1923) e no Além do Princípio do Prazer, Freud se pergunta se existe um exemplo puro de pulsão de morte, sem que ela esteja amalgamada com a pulsão de vida. E postula então dois mecanismos: a Vermischung, o amálgama, e a Entmischung, que seria o contrário, a separação dessas duas pulsões. Supõe que esse mecanismo opere desde muito cedo, porque caso contrário a pulsão de morte atacaria o próprio indivíduo no momento seguinte ao seu nascimento, e ele morreria.

Assim, a pulsão de morte opera num plano muito próximo da biologia. Quando Freud diz que ela opera "em silêncio", que o rumor da vida vem de Eros, isso a meu ver significa que ela não pode ser facilmente ligada a representações. Se não for totalmente desprovida de representações, a pulsão de morte é pelo menos inapta a acolher representações, ao contrário da pulsão de vida, em cujo campo as representações são inúmeras: fantasias, objetos, desejos. A própria idéia de morte não é uma representação da pulsão de morte. A idéia de morte é um conceito da razão humana, não uma representação inconsciente – a meu ver, é isso que Freud quer dizer, quando diz que no inconsciente não há tal idéia. Representações inconscientes são fantasias, agenciamentos de imagens, como a mãe má, o seio bom, o objeto desejável, o objeto fóbico, etc. O conceito de morte - como o conceito de vida, o conceito de bem, o conceito de martelo ou o conceito de cabelo - não são representações inconscientes. Para dar um exemplo chulo, na minha infância se cantava: "cu da mãe tem dente, morde o pau da gente": isso é uma representação inconsciente. Em linguagem mais elegante, a fantasia de que os orifícios maternos são castradores é uma representação inconsciente: mas o conceito de castração não faz parte desta categoria.

Pode ser que eu esteja enganado, mas é assim que leio: quando Freud diz que a pulsão de morte trabalha em silêncio, a meu ver isso significa que ela é inapta a acolher representações. Conseqüentemente, não sendo apta a acolher representações, é difícil poder flagrá-la individualmente, separada da pulsão de vida.

Estas considerações sobre o dualismo das pulsões em Freud constituem uma introdução ao problema de Abraham, que é o que nos interessa discutir com mais detalhe. Por que? Porque é impossível deixar de lado o papel do ódio como elemento independente na vida psíquica – quer o chamemos agressividade, interesse do ego, ódio pelo objeto, tendência a fugir da intrusão. Afinal de contas, não é possível fazer uma teoria da alma humana sem levar em conta que as pessoas sentem hostilidade umas pelas as outras e em relação a si mesmas. E Freud não esperou os anos 20 para falar no masoquismo, nas diferentes manifestações do auto-ódio, na recriminação do melancólico, ou mesmo na agressividade em relação aos objetos edipanos. A hostilidade, os desejos de morte, são coisas que acompanham a Psicanálise desde de sempre.

O que faltava – e de certa maneira continua faltando no tempo de Abraham, antes do Além do Princípio do Prazer (1920-1922) – é um suporte pulsional para essa hostilidade: a cada vez que Freud tenta explicar um movimento hostil ou agressivo, acaba dizendo: "finalmente, estamos diante de uma combinação das duas pulsões". A fúria destrutiva, para nos limitarmos a ela, é claramente infiltrada por elementos pulsionais eróticos. Então, de fato a questão teórica é complicada. Como fazer para isolar o ódio em estado puro? No início dos anos vinte, várias vezes vemos Freud às voltas com esta dificuldade, por exemplo no Problema Econômico do Masoquismo (Freud, 1924), no Ego e o Id (Freud, 1923), ou no artigo sobre a perda da realidade na psicose e na neurose. Num certo momento, ele diz: uma "pura cultura da pulsão de morte" talvez pudesse ser ilustrada pelo superego do melancólico: este o ataca e recrimina com tal virulência, aparentemente sem nenhum traço de amor ou de interesse objetal, que talvez se pudesse ter uma idéia do que seria a pulsão de morte em estado puro pensando nesse exemplo.

Mas a idéia de procurar uma representação ou uma imagem pura do que seja uma pulsão pode muito bem ser uma formulação equivocada. Por que? Porque a idéia de pulsão, pela sua natureza, é um conceito extremamente abstrato, uma configuração teórica muito distante da experiência imediata. Conseqüentemente, parece ingênuo buscar na experiência imediata uma ilustração de algo como a pulsão, que teoricamente está "lá em baixo": é uma das raízes de toda a árvore. Do ponto de vista da abstração, isto é, da distância em relação à experiência, este conceito apresenta um elevado grau de abstração. Do ponto de vista real, supondo que existam pulsões, elas estão no fundo da alma de cada um de nós, e não na superfície dela. A idéia de procurar uma ilustração empírica de um conceito transcendental é um erro denunciado, desde 1781, pela Crítica da Razão Pura de Kant (1994). Qual é o erro? É tomar alguma coisa da ordem conceitual, condição de possibilidade de fenômenos, como se fosse do mesmo nível que os fenômenos que se está querendo fundar ou ilustrar.

Em todo caso, a questão do antagonista da libido começa a ser colocada por Freud em termos um pouco diferentes no Além do Princípio do Prazer (1920-1922). Ora, quando Abraham deseja elucidar a psicopatologia e a teoria do desenvolvimento, ele escreve uma história da libido; essa palavra libido deve ser tomada a sério. É uma tentativa de explorar até os confins últimos as potencialidades dessa noção para dar conta do funcionamento psíquico, inclusive no seu aspecto de ambivalência. Esse é o ponto interessante: lembremo-nos que "ambivalência" significa amor mais ódio. O amor obviamente está ligado à libido; mas a origem e o funcionamento do ódio são menos claros que os da libido. De forma geral, se levamos a sério o que Freud diz sobre a pulsão de morte como sendo fundamentalmente auto-agressão, ela não é a mesma coisa que o ódio; é bem diferente.

A sugestão de Freud de que a pulsão de morte em estado puro poderia ser ilustrada pelo superego do melancólico pede certa cautela. No sentido de crueldade e rigidez, sim: que a agressividade implique hostilidade, eis algo bastante claro. Mas dizer que o superego do melancólico é desprovido de objeto é muito complicado, na medida que esse mesmo melancólico incorporou no ego o seu objeto de amor, e o próprio superego nasce da introjeção dos objetos edipianos. Parece que o ódio se define mais facilmente a partir da relação com o objeto do que em relação às pulsões. Esta é uma idéia que vale a pena explorar, porque é uma boa pista.

Durante os primeiros anos deste século, Freud fez diversas tentativas para explicar de onde vem o ódio, sem no entanto o definir como antagonista da pulsão sexual. Como o ponto de partida das equações metapsicológicas é sempre o jogo pulsional, era preciso "deduzir", no sentido geométrico, a origem do ódio. Isto porque precisamos dele como um valor nas nossas equações: x + y2 produz histeria, x - y + n produz melancolia, etc. O ódio é um elemento, um valor – no sentido matemático – sem o qual não é possível montar as equações psicanalíticas; então, temos que encontrar uma maneira, continuando na linguagem matemática, de compreender a sua derivação.

Ocorre que, para fazer isto, começar com a pulsão talvez não seja o melhor caminho: é difícil derivar diretamente o ódio da libido, e o oposto da libido é uma tendência ao zero e a aniquilação, que não é ódio. A pulsão de morte é silenciosa; o ódio é ruidoso, alimenta a cólera, a raiva, a indignação, a vingança, etc. Por outro lado, todas estas emoções têm um componente erótico, embora não se reduzam a vínculos eróticos. Alguém que estupra, para dar o exemplo clássico, está evidentemente ligado de modo erótico ao objeto: mas também está ligado a ele de uma maneira que não é possível reduzir apenas ao erótico. Então, vamos dando a essa incógnita um valor provisório, sob o nome de ódio.

Como Freud, na sua teorização, resolve o problema? Através do vínculo com o objeto. O ódio é um tipo de vínculo que, no seu estado puro, procura o afastamento do objeto. Estou me referindo ao final de Pulsões e Destinos de Pulsão, quando Freud diz que "o objeto nasce no ódio". Nossa primeira tendência, diante do mundo exterior, é evitá-lo e nos refugiar nos domínios deliciosos do narcisismo. O primeiro contato com o externo, com o não-eu, faz surgir o elemento do ódio, elemento este que vai levar a um refluxo narcísico muito parecido com aquele que é efeito da pulsão de morte. Mas não se trata primariamente de uma pulsão, ao menos não no sentido em que empregamos este conceito ao falar de pulsão sexual, e a prova disso é que na sua economia o objeto jamais pode ser dito contingente, característica essencial do objeto da pulsão sexual. Tampouco se pode falar aqui de investimento, ao menos não no sentido de investimento do objeto pela pulsão sexual. Por outro lado, a pulsão de morte é o movimento do psiquismo para se afastar do "de fora" e mergulhar no "de dentro", e com isso se auto-dissolver; esse refluxo narcísico anti-objeto é muito parecido com o que ocorre no caso do vínculo odioso com o objeto.

Como resolver o problema? O efeito dos dois movimentos é o mesmo, mas a economia conceitual que permite compreendê-lo é completamente diferente num caso e no outro. No primeiro, parte-se do jogo pulsional, e o objeto é encontrado no meio do caminho; no segundo, a função do objeto é indispensável, e o movimento é conseqüência do encontro com o objeto, não causa deste encontro. É por aí que vejo uma possibilidade de solução. Na verdade, talvez seja esta a encruzilhada teórica de que vão partir as duas concepções predominantes na Psicanálise contemporânea, a que chamo pulsional e objetal. Mas este é um outro problema, do qual não podemos nos ocupar neste momento. Basta dizer que por esta via se estabelece um vínculo entre narcisismo e pulsão de morte, de importância absolutamente central para toda a psicopatologia: pense-se na gama das patologias anti-objeto, ou nas que fazem do objeto narcísico um instrumento de morte, por exemplo as patologias aditivas.

Tudo isto talvez tenha a aparência de uma discussão sobre o sexo dos anjos, pouco ligada à realidade prática. Mas na verdade, como disse há pouco, depende bastante de como entendemos os ingredientes do conflito a idéia que vamos ter do que está em conflito e de como é possível intervir nele. O vínculo entre narcisismo e pulsão de morte, e não mais apenas entre narcisismo e sexualidade, como era o caso em 1910/1912, é uma novidade dos anos vinte. Mas ao mesmo tempo, há um certo elo com o objeto determinado pelo desejo de se afastar dele, como se vê por todas as fantasias de intrusão, bem como pelo desejo de independência, de autarcia, para usar o termo correto (autarcia quer dizer auto-suficiência, eu me basto). Os elementos ligados ao ódio vão aparecer nesta constelação, e esta é uma das razões para que a temática do objeto vá ganhando cada vez mais importância: ela permite, além de outras coisas, uma plasticidade maior na representação metapsicológica dos sentimentos. O ódio é um sentimento, não uma pulsão. Assim, partindo do objeto, temos a atração e a repulsão como base da química emocional, e podemos formar as equações do que costumo chamar "paralelograma das forças", que definem o vínculo de cada um com os seus objetos

A temática do amor e ódio vai então começar a se desenvolver, especialmente quando Freud (1915) afirma, em Pulsões e destinos de pulsão, que amor e ódio não devem ser predicados das pulsões parciais frente aos seus objetos igualmente parciais. Não se pode falar de "amor" da boca pelo sorvete: isso não tem sentido. Esses termos devem ser preservados, diz ele, para se referir às relações do ego com os seus objetos totais. Quem ama e quem odeia é o ego; quem atrai e quem repele é o objeto, e quem investe e desinveste são as pulsões; convém não fazer confusão nessas coisas.

O que é muito interessante nisto tudo é que o ódio, sozinho, não é "quente". O ódio pelo objeto não me leva a me aproximar dele; ao contrário, leva a me afastar dele. Se me aproximo do objeto, ainda que seja para destruí-lo, controlá-lo, agredi-lo, xingá-lo ou feri-lo, já está presente nessas equações uma certa dose de libido. É por isso que Freud diz, de maneira extremamente interessante, que o amor admite três opostos: ser amado, que seria o inverso apenas; a indiferença, tanto faz como tanto fez, e o ódio; são as três polaridades da vida psíquica. (Estou me referindo ao texto de 1915, Pulsões e destinos de pulsão).

 

Etapas do desenvolvimento, melancolia e mania

É contra este pano de fundo que Abraham ataca os problemas da psicopatologia e do desenvolvimento. Como não pode deixar de levar em conta o conflito de ambivalência, é levado a atribuir as tendências destrutivas e hostis a uma parte da libido; a esta parte da libido, ele chama sádica. É por isso que várias das fases libidinais chamam-se sádico-oral, sádico-anal, e assim por diante. Ora, o que são essas tendências da libido sádica? Se é libido, funciona de acordo com o princípio do prazer; o prazer envolvido nestes atos é o da destruição ou o do controle, segundo ocorra antes ou depois da passagem pela fronteira da psicose. Alguns trechos, no início da História da Libido, esclarecem a maneira como ele entende a destruição e a hostilidade: são expressões da tendência libidinal. Vejamos:

A pulsão parcial sádica da libido infantil nos mostra assim a oposição entre duas tendências ao prazer. Uma aspira à destruição, a outra à dominação do objeto. Veremos em seguida que a tendência conservadora que poupa o objeto é constituída pelo recalque da direção, originalmente destrutiva, da pulsão. O afastamento ou a perda de um objeto podem ser considerados pelo inconsciente tanto como um comportamento sádico de destruição quanto como um comportamento de expulsão anal. (Abraham, s.d., p.262).

E aí vem uma parte muito interessante do texto, que compara em várias línguas as palavras perder e defecar, mostrando como elas se aproximam nas suas raízes. A idéia é que a perda de um objeto pode ser ocasionada pela destruição dele – caso em que estamos próximos da oralidade – ou como algo que no inconsciente equivale a uma expulsão anal.

O texto continua:

Para esclarecer o desenvolvimento que preside à entrada na neurose obsessiva e na melancolia (como sempre, Abraham compara as duas patologias, RM), voltemos ainda uma vez a falar dos períodos relativamente assintomáticos da vida do paciente. A "remissão" do obcecado ou "intervalo" do maníaco-depressivo mostram-se como momentos de sublimação bem-sucedida das pulsões anais e sádicas. Quando uma ocasião particular desperta o perigo da perda objetal, os pacientes dos dois grupos têm reações violentas. Toda a força da libido com fixação positiva se eleva contra a supremacia ameaçadora da corrente hostil ao objeto.

Ou seja, é uma briga interior à libido; a libido com fixação positiva se eleva contra a corrente (libidinal) hostil ao objeto. "Ali onde predominam as tendências conservadoras, conservar e submeter, o conflito com o objeto de amor dá lugar às manifestações obsessivas". Isso é conhecido. "Quando ao contrário vencem as tendências sádico-anais que visam a destruir e rejeitar o objeto, o sujeito chega a um estado de depressão melancólica." (Abraham, s.d., p.264).

Ou, mais adiante:

O processo regressivo do melancólico não pára na etapa sádico-anal precoce, mas tende às organizações libidinais ainda mais primitivas. Tudo se passa como se o ultrapassamento da fronteira entre as duas sub-fases anais fosse particularmente grávido de conseqüências nefastas. A dissolução das relações objetais parece precipitar a libido numa queda de etapa em etapa. (Abraham, s.d., p.265).

Creio que está claro o ponto: o conflito se dá entre tendências opostas que permanecem dentro da libido. Qual é o interesse disto, além da curiosidade epistemológica de saber que Abraham pensa assim, e vai muito longe na idéia de trabalhar com as tendências destrutivas inerentes à própria libido? É mostrar que a idéia de relação de objeto envolve, entre outras coisas, uma hipótese sobre os diferentes modos de satisfação possíveis para a pulsão. Se conservar e dominar - assim como expulsar e rejeitar - são fins libidinais, são também por definição modos de gozo libidinal. E esses modos de gozo libidinal podem envolver, neles mesmos, elementos de destruição. Ou seja, destruir, dominar, etc., são vistos como finalidades libidinais, inerentes a um certo tipo de pulsão libidinal que se chama sádica, e que admite modos de expressão orais e anais. Modos de expulsão sádico-orais: morder, despedaçar, triturar. Modos anais de satisfação da pulsão sádica: o controle e a expulsão/evacuação. Isso tudo é escrito dez anos antes da Psicanálise da Criança: não estou citando Melanie Klein! Estes modos anais operam através da expulsão e da rejeição, ou através de uma modalidade muito mais sutil, que é o domínio, o controle do objeto – Abraham fala, pelo menos nessa edição francesa, no "triunfo" sobre o objeto; serão depois temas clássicos do pensamento kleiniano.

Nesses elementos está presente uma satisfação sexual; e nisso Abraham, que é o guardião da ortodoxia, está um pouco atrás do seu mestre Freud, para quem a libido sozinha nunca pôde dar conta da totalidade do funcionamento psíquico. Abraham chega a ser mais realista do que o rei, embora de modo muito inteligente e sutil. Na verdade, ele leva a teoria da libido até um extremo tal, que esta bate contra os seus próprios limites.

Paralelamente, Freud está elaborando sua nova concepção da oposição entre as pulsões. Na posteridade da psicanálise, vai diminuir muito a importância do tema "conflito entre pulsões", e será introduzida uma outra modalidade de conflito intra-psíquico, o conflito entre instâncias. Como se Freud, depois de dez ou quinze anos tentando resolver das maneiras mais elaboradas o problema do conflito psíquico em termos essencialmente pulsionais, um belo dia virasse a mesa e dissesse: "chega! Este problema está mal colocado, vamos começar tudo de novo. O conflito que interessa não é apenas entre amor e ódio, pulsão destrutiva e pulsão construtiva, pulsão de vida e pulsão de morte; também interessa o conflito entre o ego, o superego e o id". E com isso o livro chamado O Ego e o Id (1923) introduz uma mudança radical nos termos do problema.

Agora Freud vai ter um outro mistério para resolver: como as pulsões se combinam com as instâncias? O xadrez fica um pouco mais complicado: o superego contém elementos da pulsão destrutiva, mas também elementos da pulsão de vida, na medida em que introjetou objetos edipianos; o ego tem os seus vários senhores, o id é o caldeirão das pulsões, etc., etc. As coisas vão se complicando no campo da metapsicologia; mas, para todos os fins práticos, o conflito que interessa descrever – posição que rapidamente foi adotada pela maioria dos analistas – é o conflito entre as instâncias. Quem está falando na sessão: o superego, o ego ou o id? Como o ego administra as exigências dos seus três senhores, a realidade, o superego e o id? Deste modo, o conflito intra-psíquico deixa de ser formulado exclusivamente em termos de combate entre as pulsões, e tende a ser cada vez mais formulado em termos de oposição entre as instâncias. Mas nosso autor não viveu para ver este desenvolvimento, porque morreu em 1925, quando ele apenas estava se iniciando.

Voltando à História da Libido: Abraham vai descrever agora as várias modalidades da evolução e da psicopatologia através de combinações dentro do jogo libidinal. O segundo capítulo chama-se "Perda Objetal e Introjeção no Luto Normal e nos Estados Psicológicos Anormais". Nele, Abraham descreve coisas muito interessantes, por exemplo um fato que aconteceu com ele próprio: seu pai faleceu no começo da Primeira Guerra Mundial. Abraham ficou alguns meses de luto, e um belo dia se deu conta de que seu cabelo havia ficado inteiramente branco. Meses depois, o dito cabelo voltou a ter a sua tonalidade original, e ele dá como explicação disso que se tratava de um sinal visível da introjeção da figura paterna – um homem de cabelo e barba brancos: o embranquecimento capilar representava portanto uma expressão da introjeção dessa figura paterna, e isto de uma forma bastante espetacular.

E aí Abraham faz uma de suas observações preciosas, distinguindo o que é introjeção normal e introjeção melancólica:

No sujeito normal, a introjeção se segue a uma perda real (falecimento) e está sobretudo a serviço da conservação da relação com o defunto. É uma maneira de manter o defunto vivo dentro de mim (...). A introjeção melancólica, ao contrário, ocorre a partir de uma perturbação fundamental da relação libidinal com o objeto, e é a expressão de um conflito de ambivalência do qual o ego só consegue se separar retomando por sua própria conta a hostilidade contra o objeto. (Abraham, s.d., p.269).

Essa é uma passagem interessante, porque oferece um critério diagnóstico. Quando uma introjeção é normal e quando é patológica? A introjeção normal tem como condição a perda real, seja por falecimento ou por abandono, e antes de tudo está a serviço da conservação com a relação com o defunto. Aqui se pode ver com clareza como a relação de objeto orienta o pensamento de Abraham. A serviço do que está este mecanismo? É para conservar ou para anular o vínculo com o objeto? Se é para conservar o laço com o objeto e elaborá-lo na situação de perda, o luto é um momento necessário, e vai ser superado, como o foi quando a cor dos seus cabelos retornou ao normal. Se ao contrário surge primeiro uma perturbação fundamental na relação libidinal com o objeto – perturbação que significa aumento da hostilidade - ocorre uma introjeção melancólica, que é a expressão de um conflito de ambivalência do qual o ego só conseguiu se proteger assumindo para si, por sua conta, a hostilidade contra o objeto. Ou seja, aconteceu um processo cujas etapas convém discriminar:

1) existe um conflito com o objeto, no qual as tendências amorosas e hostis em relação a ele sofrem uma perturbação "fundamental";

2) esse conflito com o objeto se torna extremamente doloroso, e quem tem que administrá-lo é o ego;

3) como o ego faz isso? Retoma dentro de si tanto o objeto (introjeção) quanto as tendências hostis contra o objeto, que já eram dele mesmo. Agora não temos só um conflito intra-libidinal, mas ainda um conflito intra-egóico: o ego ocupou todo o espaço, engoliu o objeto; porém um objeto envenenado, e envenenado por ele mesmo, dirá Melanie Klein, graças à projeção das pulsões agressivas. Abraham não vai tão longe, mas está no mesmo caminho.

No capítulo 3, Abraham fala na introjeção melancólica, distinguindo duas etapas da fase oral. Estuda um exemplo muito interessante, o de um paciente que tinha como impulso predominante comer excrementos: à primeira vista, isto pareceria relacionar-se com uma analidade mal resolvida. Também aparece outro personagem famoso na galeria dos tipos abrahamianos, o paciente que saía pelas ruas olhando o chão em busca de botões de madrepérola. Abraham faz uma análise brilhante desses botões, mostrando que na verdade representam – por ser o complemento deles – o oposto dos excrementos. O excremento é escuro e mole, o botão de madrepérola é branco, brilhante e duro, e por aí vai. O paciente saía atrás destes botões como uma forma de recuperar, pela via da introjeção, os seus objetos perdidos.

É uma clínica psicanalítica extremamente interessante. No primeiro caso, a respeito da introjeção na melancolia, Abraham diz o seguinte:

... o paciente já tinha feito diversos episódios melancólicos, ligados basicamente à relação com sua noiva; havia desenvolvido uma certa raiva da noiva, mas esta continuava gostando dele, enquanto ele recusava o vínculo com ela.

Este homem procura Abraham e conta que tinha uma idéia obsedante: comer os dejetos espalhados pela rua.

Essa obsessão mostrou ser expressão da sua tendência a reincorporar, sob a forma de dejetos, o objeto expulsado como se fossem fezes. (...) Temos aqui a confirmação literal da nossa suposição de que o inconsciente apreende e valoriza a perda objetal como um processo anal, e a introjeção como um processo oral.

Não é Piera Aulagnier, é Abraham!

O impulso coprófago me parece conter ou ocultar um simbolismo típico da melancolia. Segundo minha experiência, o objeto de amor é o alvo de certos impulsos que correspondem à etapa sádico-anal precoce, às tendências a expulsar e a destruir. O produto do assassinato, o cadáver, é identificado com o produto da exoneração, isto é, as fezes. Isto nos permite entender o impulso a comer excrementos como um impulso canibal para devorar o objeto de amor assassinado oralmente. (Abraham, s.d., p.272-3).

Com isso, pode-se mostrar que a melancolia se exprime não só no dialeto sádico-anal, mas ainda sob a forma de um vínculo oral com o sadismo. Ele compara, como depois foi feito muitas vezes, a paranóia e a melancolia do ponto de vista das suas estratégias para recuperar, ou para restituir, o objeto depois da perda. O paranóico faz isso através da projeção; projeta um objeto que inicialmente perdeu ou destruiu, e ele lhe volta de fora. A melancolia, diz Abraham, utiliza para o mesmo fim o procedimento inverso: a introjeção. A melancolia não apenas está próxima da neurose obsessiva, pela sua fase libidinal de origem, mas ainda está próxima da paranóia, pela estratégia complementar de recuperação de um objeto originalmente atacado, e portanto perdido ou eventualmente destruído.

Vai-se estabelecendo dessa forma uma trança entre vários elementos da psicopatologia, que não tem mais nada a ver com os sintomas. É isso que torna psicanalítica a tentativa de elaborar um quadro da psicopatologia: o que interessa é a dinâmica. Os sintomas podem ser concordantes ou discordantes com aqueles identificados pela psiquiatria ou pela psicologia experimental, mas a forma de raciocínio não é a mesma. É por isso que a mesma afecção aparece em casas diferentes nas tabelas de classificação de tipo psiquiátrico e nas classificações que a psicanálise oferece.

Continuando a respeito da melancolia, Abraham escreve: "As tendências sádico-orais são a fonte essencial de sofrimento psíquico na melancolia, principalmente quando se voltam contra o ego do paciente sob a forma de tendências à autopunição". Sem querer enfatizar mais uma vez o que já disse em todo este artigo, vale notar que a tendência à autopunição é apresentada como conseqüência das tendências libidinais sádico-orais. Continua:

Os dados psicanalíticos nos permitem pensar que o melancólico procura escapar aos seus impulsos sádico-orais; este se exprimem clinicamente, mas são sustentados pelo desejo de uma atividade de sucção que pudesse dar plena satisfação. (Abraham, s.d., p.275).

Há duas coisas a ressaltar nessa passagem. Primeiramente, a patologia não é uma expressão direta das tendências predominantes: é uma tentativa de escapar à tendência predominante Abraham é um psicanalista, portanto pensa em termos de conflito. O sintoma, o sofrimento psíquico, resultam do impulso e da defesa contra o impulso; de tal maneira que aquilo que no quadro clínico é mais evidente resulta do esforço para contrabalançar o predomínio das tendências libidinais destrutivas.

O segundo ponto é que essas tendências libidinais destrutivas são sustentadas por um "desejo de sucção que proporcionaria plena satisfação." (Abraham, s.d., p.275). Este desejo é um remanescente da fase oral pré-ambivalente. É isso que permite dizer que o melancólico tende para esta fase pré-ambivalente; se a regressão chegar até lá, ele se mata. A queda da libido de etapa em etapa pode conduzir até uma fase zero, que seria a pré-ambivalente. E aqui aparecem coisas bem conhecidas sobre a sucção e o morder, bem como sobre o elemento de ambivalência presente na oralidade: descrito em termos biológicos, é o fato de que ao comer alguma coisa nós automaticamente a destruímos, no mesmo movimento pelo qual a ingerimos. O sujeito introduz em si, destrutivamente, o objeto, mas para usufruir dele e para de certo modo o conservar.

A partir desse momento, a ambivalência reina sobre a relação do ego com o objeto. Aqui uma observação lateral: esse texto de Abraham lembra muito a descrição que faz Hegel (1992) da relação com o objeto na Fenomenologia do Espírito. Antes de encontrar a outra consciência, a consciência-herói encontra o mundo exterior, e dentro desse mundo exterior, realiza o ato de pegar algo e o consumir; e é assim que ela vai se encontrar com a outra consciência, que não pode ser tomada e consumida como um objeto, isto é, como não-consciência, como não-eu.

Em virtude disso, não é difícil a alguém que conhece bem a psiquiatria, como é o caso do jovem Lacan, e que como vários outros freqüentou o famosíssimo seminário de Kojève, fazer o vínculo entre a descrição abrahamiana da libido oral e a descrição hegeliana do conflito das duas consciências, e mostrar que é o mesmo tipo de relação com o objeto que está sendo descrito filosoficamente por Hegel (1992) na Fenomenologia do Espírito e psicanaliticamente por Abraham na História da Libido. Esta aproximação está na gênese da teoria lacaniana do imaginário.

Os dois capítulos seguintes do livro de Abraham falam sobre a psicogênese da melancolia e sobre o modelo infantil da depressão melancólica, que é o ancestral da fase depressiva teorizada por Melanie Klein. Ele compara agora a melancolia com a esquizofrenia: na esquizofrenia também existe um refluxo libidinal, mas aqui a perda dos interesses vitais é vivida na "obtusidade." Provavelmente, isto se refere aos aspectos catatônicos, à pasmaceira, para falar em português mais simples, do esquizofrênico. Já na melancolia houve a perda objetal, mas o paciente se queixa de ter perdido o que amava, e liga a este fato os seus sentimentos de inferioridade. "Este objeto, melancolicamente introjetado no ego, fica exposto sem defesa a todos os impulsos libidinais ambivalentes dentro daquele: o que contém a possibilidade das viradas maníacas." (Abraham, s.d., p.279).

Em seguida vem um capítulo especial sobre a mania, no qual o autor cita Freud na Psicologia Coletiva: esta afecção é uma festa do ego. A expressão "festa do ego" é de Freud: o ego sacode o jugo do superego e entra num delírio maníaco. Abraham trabalha esta idéia, mostrando que na verdade a pré-condição para a mania é a introjeção do objeto, porque, bem à moda de Ferenczi, este movimento aumenta os limites do ego. Posso conceber a introjeção de duas formas: abrir a boca e colocar dentro dela uma bala – neste caso, quem se movimenta é a bala – ou deixar a bala onde está, e espichar a boca até chegar à bala. Neste caso, o diâmetro da boca aumenta, e portanto a sua circunferência também. É deste modo que Ferenczi (1975, p.93-125) descreve a introjeção, no seu artigo de 1909 intitulado "Transferência e Introjeção".6 o ego aumenta porque passa a abarcar objetos que antes estavam fora dele. Não é difícil perceber como esta concepção da introjeção permite pensar um auto-engrandecimento "festivo" do ego na mania.

No capítulo final, "Contribuição à Psicogênese da Melancolia", Abraham junta todos estes elementos e procura traçar a "equação química" desta afecção, isto é, determinar o conjunto de fatores cuja operação conjunta produz esta e nenhuma outra patologia. Enumera então cinco fatores:

a) predisposição constitucional: não tanto a retomada hereditária da depressão presente em algum membro da geração anterior, mas um reforço do erotismo oral. Esta predisposição específica permite:

b) a fixação privilegiada da libido à fase oral; tal fixação produz um prazer muito intenso associado a esta zona erógena e um desprazer desmesurado diante de qualquer renúncia neste plano;

c) uma grave ferida narcísica é imposta à criança por uma decepção amorosa enquanto ela está nessa etapa. Este elemento é novo, e se deve a Abraham. É uma adaptação da idéia do trauma, que priva por assim dizer a criança dos seus objetos orais, e também dos seus objetos de amor. Ele chega a dizer aqui que essa decepção freqüentemente é bilateral, isto é, concerne ao pai e à mãe. Não é só o abandono pela mãe, mas um tipo de trauma no qual o pai não é capaz de reparar a ausência materna, ou o contrário; a criança se vê então presa de um sentimento de abandono extremamente doloroso e intenso. Se isso ocorrer na fase oral, ela reagirá a isso no modo oral, ou seja, com extrema avidez e tentando abarcar o que lhe passa pela frente, desenvolvendo os mecanismos de introjeção patológica: isto porque a maneira de não perder, nesse momento, é comer, como se isto fosse uma defesa. A isso Abraham chama a decepção primária da infância;

d) o fato dessa decepção ocorrer antes do recalque do complexo de Édipo, portanto em presença das pulsões parciais, é o quarto elemento. A este Abraham atribui uma grande importância:

... se o transcurso desse primeiro grande amor objetal for surpreendido pelo traumatismo psíquico da decepção, as conseqüências são severas. Devido ao fato que as pulsões sádico-orais ainda não se extinguiram, estabelece-se uma associação durável entre o complexo de Édipo e a etapa canibal do desenvolvimento da libido. Assim se operará a introjeção dos dois objetos de amor, isto é, da mãe e depois do pai. (Abraham. s.d., p.283).

Ou seja, a identificação que geraria o superego se degrada numa identificação canibal com os traços agressivos-orais dos objetos chamados pai e mãe. Conseqüentemente, o superego dessa pessoa apresentará traços de crueldade oral na sua vida adulta. É isso que quer dizer "relação de objeto": uma certa forma de apreensão do objeto é por assim dizer impressa na psique, e predominará a cada vez houver na experiência algo que exija acionar aquela configuração - um pouco como a galeria de estilos do Windows, que configura o seu texto sempre da forma pré-programada;

e) a repetição da decepção primária na vida ulterior ocasiona a instalação de uma melancolia. Ou seja, se as pré-condições infantis são dadas, forma-se a potencialidade melancólica, para citar Violante (1995), que desenvolveu esse conceito na PUC. A potencialidade melancólica é formada por esses quatro primeiros fatores. Se a melancolia manifesta vai ou não se instalar dependerá dos acasos da vida, e de haver algo que repita essas condições na idade apropriada.

Com isso, Abraham passa à mania, sobre a qual também tem a dizer coisas muito interessantes. Por exemplo, vincula a velocidade do pensamento – ou do que arremeda o pensamento na mania – a uma digestão acelerada e à necessidade de expulsar aquilo que foi avidamente introduzido; e isso ele liga com a logorréia tão característica da mania, a fuite d'idées. A fuga das idéias é um sintoma característico da mania, como sabe quem já viu no hospital psiquiátrico um paciente deste tipo. Abraham traduz isso em termos de oralidade: esta predomina de tal maneira, que tudo o que é retentivo desaparece, inclusive a possibilidade de contenção e elaboração desse objeto oral, ou oralmente apreendido, que é o pensamento ou a linguagem. O sujeito tem então uma relação "vomitória" com as idéias, determinada pela oralidade. E termina dizendo que o maníaco sofre de um "metabolismo psicossexual acelerado." (Abraham, s.d., p.292) Piera Aulagnier (1979) vai retomar este tema com grande brilho, utilizando-o na Violência da Interpretação.

 

Abraham e nós

Disse no início deste artigo que, além de apresentar brevemente o pensamento de Abraham sobre o inconsciente, desejava avaliar a distância conceitual que nos separa dos seus escritos. Não quero dizer com isto que estes ficaram caducos; se assim fosse, não haveria interesse algum em os exumar. O que tenho em mente é que atualmente já não interpretamos nem teorizamos exatamente do modo como se fazia em 1920; no entanto, Abraham é parte da Psicanálise e nos reconhecemos em boa parte dos seus raciocínios. Como pode ser isto?

A resposta é simples: muitos dos problemas que ele se coloca são perfeitamente atuais, embora algumas das soluções que propõe já não o sejam. O inconsciente segundo Abraham é uma região psíquica na qual a libido luta consigo mesma, investindo e preservando objetos, ou os desinvestindo e destruindo. Sua teoria das pulsões envelheceu, portanto, e hoje trabalhamos com uma pulsão a que ele não podia conferir grande importância: a pulsão de morte, cuja função "desobjetalizante" foi bem estudada por André Green. Mas sua teoria das relações de objeto permanece atualíssima, estando na origem tanto do pensamento kleiniano quanto, de modo mais distante, na da escola dita das object relations – Winnicott, Bálint – cujo outro padrinho é sem dúvida Ferenczi.

Certos elementos do seu arcabouço teórico continuam úteis para a prática atual, e ao mesmo tempo, em alguns detalhes, ficaram um pouco "enrugados". O principal destes elementos é o vínculo entre as organizações psicopatológicas e as etapas do desenvolvimento, que continua a ser a base do diagnóstico psicanalítico; contudo, este vínculo já não é estabelecido do mesmo modo que Abraham sugeriu. Em outras palavras, o princípio continua valendo, mas sua aplicação produz resultados um pouco diferentes.7

Além disso, a precisão das suas descrições e a finesse do raciocínio clínico tornam a leitura de Abraham extremamente proveitosa. Com freqüência, temos a impressão de que já sabíamos algo parecido com aquilo que ele nos diz: é que, assim como M. Jourdain falava em prosa sem saber disso, nós também falamos "abrahamês" sem nos darmos conta, a tal ponto muitas de suas idéias vieram a impregnar o discurso e o pensamento característicos da Psicanálise. Este talvez seja o sinal mais claro – e também o mais sutil – de que as idéias de Karl Abraham permanecem atuais, e podem por isto nos inspirar novos desenvolvimentos na disciplina em que ele foi um mestre incontestável.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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 1 Esta revista, na qual escreviam os jovens analistas próximos de Lacan – Laplanche, Granoff, André Green, Piera Aulagnier, Conrad Stein, Rosolato, Widlöcher, etc. – é um tesouro para quem se interessa pela história da Psicanálise na França. Foram publicados seis números, um por ano, entre 1955 e 1960.

2 Por falar "apagar o nome", Freud (1937-1939) não cita este estudo de Abraham no Moisés e o monoteísmo, embora o tema seja bem próximo: tudo indica que Moisés esteve ligado a este culto monoteísta no Egito, e, quando foi restaurada a antiga religião – após a morte de Amenhotep IV – saiu do país com o que seriam as tribos hebraicas. Assim, Freud se envolve num jogo complicado de identificações cruzadas, cujos meandros podemos suspeitar ....

3 Este texto é uma das referências do artigo A Medusa e o Telescópio, com o qual contribuí para o volume coletivo O Olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. p. 443-77.

4 Abraham, K. Esquisse d'une histoire du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux. (História da Libido), In: Oeuvres complétes, s.d. v.2. Cf. Jones (1926, p.173). "Abraham notou que o meio mais severo de testar a normalidade genital é avaliar a extensão na qual o sujeito superou o narcisismo e a atitude de ambivalência que percorrem os estágios anteriores."

5 Especialmente o capítulo 6. A meu ver, esta análise é mais exata do que a apresentada em Laplanche, 1988, quando Laplanche muda de opinião e passa a falar em "pulsão sexual de morte".

6 O leitor desejoso de saber mais sobre este conceito central no pensamento de Ferenczi – e em toda a teoria psicanalítica – pode consultar com proveito o número 10 da revista Percurso (2° semestre de 1993), dedicado à obra do psicanalista húngaro.

7 Para uma idéia do que é psicopatologia psicanalítica contemporânea, cf. Wolf (1998). 

ISSN 0103-6564 versión impresa

Psicol. USP v.10 n.1  São Paulo  1999

doi: 10.1590/S0103-65641999000100004

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