ESTRUTURA LACANIANA DAS PSICOSES

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Do primeiro posicionamento de Lacan frente à questão das psicoses, nos anos 30, como um psiquiatra, ainda longe da psicanálise - embora já ocupando uma posição bastante singular dentro de seu meio profissional, na medida em que buscara em sua tese sustentar a hipótese de que a loucura corresponde a um ciclo de comportamento, consequentemente sendo integrável em uma abordagem marcada pelo privilégio das relações de compreensão - vamos dar um salto que nos levará à década de 50, mais precisamente ao momento em que Lacan desenvolve seu ensino visando a formação de psicanalistas, no terceiro ano de seu seminário, quando o tema será as estruturas freudianas das psicoses. É fato que durante estes vinte e quatro anos que marcam a distância entre a defesa da tese e o proferimento do citado seminário houve alguns momentos em que a questão das psicoses voltou ao centro da cena. Em 1938, no texto "Complexos Familiares", este tema é tratado por um Lacan que busca articular a psicanálise freudiana com a "fenomenologia do ser" hegeliana. Neste contexto, a psicose será abordada como um fenômeno de exacerbação da captação e da fixação do sujeito a imagos que vêm impedir o prosseguimento da dialética de seu desenvolvimento subjetivo. Assim, identificações tão idealizantes quanto alienantes virão aprisionar o sujeito em uma dinâmica dual, afastando-o do seu caminho próprio , o que terá como consequência a generalização da psicose como loucura a dois, em que a psicose de um, em geral a mãe, vem provocar a psicotização do outro, o filho, por exemplo. Este texto é bastante influenciado pela conceituação lacaniana de 1936, acerca do estádio do espelho enquanto momento primordial de estruturação do sujeito humano, mais especificamente, do nascimento do eu. Essa reflexão fundamental dentro de sua doutrina nascente vai demarcar a ênfase inicial posta por Lacan sobre o registro do Imaginário, ênfase esta que irá perdurar por quase duas décadas, o que se pode entender como consequência de seu percurso em direção à psicanálise, pontuado pela tese sobre a paranóia, e o ensino de Kojève, o qual ele acompanhou nos anos 30. Aimée e Hegel lançaram Lacan no centro da dinâmica imaginária, marcada pelas identificações imagéticas, o narcisismo, as paixões alienantes e a constituição do eu como fenômeno essencialmente articulado à relação com o outro, o semelhante.

Em 1946, no texto "Formulações sobre a Causalidade Psíquica", a psicose volta a ser o tema essencial, desta vez a polêmica sendo dirigida à concepção organodinâmica de Henri Ey, o qual, embora desse uma certa importância à causalidade psíquica das psicoses, afirmava que a origem do fenômeno psicótico se situaria em uma lesão neurológica, responsável por uma ruptura no desenvolvimento psíquico do indivíduo. Lacan irá se opor radicalmente à concepção de Ey - a qual, diga-se de passagem, tornou-se hegemônica no discurso psiquiátrico desde então – sustentando ser a loucura inteiramente vivida dentro do campo do sentido. Neste texto, suas reflexões sobre o caso Aimée serão retomadas, visando mostrar como esta psicose não poderia ter sua lógica apreendida sem o acesso à história de sua vida, às vicissitudes de seu desenvolvimento subjetivo, etc. Boa parte do texto irá se dedicar a expor novamente o essencial da reflexão lacaniana acerca do estádio do espelho e suas incidências na paranóia; entretanto, a novidade deste artigo, que irá situá-lo já em um contexto teórico bastante próximo ao da elaboração do período do seminário 3, é que Lacan ali já não mais trabalha com a concepção psicogenética; ao contrário, mostra que na verdade é Ey, o qual, mesmo dizendo desconhecê-la, não deixa de a aplicar. Onde antes a psicogênese entrava para justificar a evolução compreensível da psicose, agora Lacan irá referir-se especificamente ao campo da fala e da linguagem para sustentar que "o fenômeno da loucura não é separável do problema da significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o homem" (1). Ou seja, não se trata mais de recorrer à inteligibilidade da evolução psicótica em função da unidade da personalidade; ao contrário, o que importa é reconhecer que a atitude de interrogação, ou mesmo de perplexidade do psicótico diante dos fenômenos que o acometem, dizem respeito, essencialmente, a um sujeito imerso em um campo semântico. Está dada portanto a direção da pesquisa lacaniana, a saber, a investigação acerca da relação do sujeito com o significante, entendendo as psicopatologias como perturbações nesta relação.

 

O seminário sobre as estruturas freudianas das psicoses, enunciado em 1956, inicia com algumas considerações lacanianas que irão demarcar pontos essenciais para a abordagem da questão. Em primeiro lugar, Lacan chama a atenção para a estranheza do fato de que, em suas pesquisas, os pós-freudianos tenham passado a dar primazia à clínica da esquizofrenia, deixando em segundo plano o trabalho teórico e clínico sobre a paranóia, quando a atitude de Freud foi justamente a oposta, ou seja, Freud se interessava pela paranóia, e quase não abordava a esquizofrenia. Com efeito, Lacan destaca o fato de que, dentro da reflexão freudiana, em contraposição à multiplicidade das entidades clínicas psiquiátricas, há a localização da psicose entre dois pólos, que são justamente a paranóia e a esquizofrenia. Dentro desta polaridade, é frente à paranóia que os instrumentos conceituais freudianos irão possibilitar uma leitura psicopatológica fecunda. Nestes mesmos capítulos iniciais, Lacan irá apontar que Clérambault terá sido o seu mestre em clínica psiquiátrica. Como já pontuamos no capítulo anterior, esta declaração de uma dívida intelectual irá contrastar radicalmente com o silêncio absoluto, durante a tese de doutoramento, acerca da influência de Clérambault sobre suas conceituações. Toda a diferença reside no fato de que, durante a tese, a psicogênese desempenhava uma função essencial na argumentação lacaniana, visando contrapor-se às teses organicistas já muito influentes na época. Clérambault era bastante avesso à psicogênese, e sua célebre doutrina do automatismo mental se sustentava precisamente a partir da afirmação de que a raiz das psicoses consistiria em uma ruptura, por motivos orgânicos, no ciclo de vida do indivíduo, com o aparecimento de fenômenos estranhos ao seu modo de viver. A atividade delirante, para esse psiquiatra, viria como o esforço do sujeito mentalmente enfermo em explicar, em tornar compatível o fato psicótico primitivo com o restante de sua vida. Na época, como podemos apreender, essa argumentação era inaceitável para Lacan. Entretanto, no seminário que ora abordamos, logo de saída a atitude lacaniana será de crítica radical à hipótese psicogenética, e neste ponto a reflexão clerambauldiana voltará a ser interessante, embora com deslocamentos. O inaceitável na psicogênese, dentro da perspectiva lacaniana, reside na ênfase que esta abordagem psicopatológica atribui à compreensibilidade do fenômeno psicótico. O alerta de Lacan se dá no sentido de se perceber que a compreensão leva ao equívoco radical sobre as motivações dos atos psicóticos. Já dentro de sua concepção estruturalista, se o fenômeno psicótico deve ser situado no interior do campo semântico linguajeiro, para Lacan também vale aquilo que será nomeado como a lei do mal-entendido essencial. Sendo todo fato de linguagem marcado pelo mal-entendido, pela equivocidade, o fenômeno psicótico consequentemente também não poderia ser abordado através de uma concepção psicogeneticista, com sua ênfase na compreensão. É neste ponto que Clérambault entra, embora à serviço das teses de Lacan. Está correto então que o fenômeno psicótico primordial esteja marcado pela ruptura e a ausência de relações de compreensão, como aquele afirmava. Mas isso não porque se trate de uma mera fragilidade orgânica do indivíduo, como sustentava também Henri Ey, mas sim porque antes das relações significativas, temos que pensar a psicose como sendo o efeito de um acidente na própria estruturação da linguagem, isto é, na forma como o sujeito é inserido nesta estrutura, tendo a partir daí organizado ou não seu psiquismo.

 

Outro aspecto fundamental abordado logo de início no seminário, e que será um dos pontos de demarcação lacaniana das psicoses, diz respeito à ênfase que Lacan coloca na identificação, em toda psicose, dos fenômenos elementares. Como se sabe, é possível a ocorrência de alguns sintomas, frequentes nas psicoses, em sujeitos neuróticos. As histéricas, por exemplo, usualmente são internadas nas enfermarias psiquiátricas e classificadas como psicóticas devido a manifestação de sintomas como idéias delirantes, pseudo-alucinações, fenômenos de despersonalização, dissociação psíquica, etc. Os fenômenos elementares da psicose, por outro lado, sustenta Lacan, irão demarcar de maneira muito mais segura a existência em um paciente de uma estrutura psicótica. São eles, em linhas gerais: alucinações auditivas ou visuais, interpretações delirantes, afrouxamento dos elos associativos, e alterações diversas de linguagem. A importância que Lacan atribui à identificação dos fenômenos elementares, mesmo antes da eclosão da psicose propriamente dita, não vai na mesma direção que seus colegas psiquiatras, na medida em que aquele irá descartar a concepção evolutiva da psicose que atribui aos fenômenos elementares uma importância radical, na medida em que neste caso se trataria da psicose em sua manifestação essencial, o resto do quadro psicótico se caracterizando pela reação do indivíduo frente a esses fenômenos. A concepção lacaniana é de que de fato deve-se atribuir importância aos fenômenos elementares, principalmente no sentido de construir a hipótese diagnóstica; entretanto, não se trata no caso, em hipótese alguma, de uma manifestação diferente do resto da psicose. Lacan utiliza, para explicar sua concepção, a analogia com a folha, que já possui a arquitetura segundo a qual toda a planta irá se desenvolver, ou seja, trata-se, na folha, da manifestação localizada da mesma estrutura que responde pela organização da planta. Assim, os fenômenos elementares, por aparecerem primeiro, não seriam de natureza diferente do que vem depois, mas, antes, apresentariam em sua configuração as mesmas leis estruturais que comandam o desenvolvimento da psicose como um todo.

Dentro do debate sobre as relações estruturais e a dimensão especular, a tônica desse seminário será a sustentação da tese de que a psicose não pode ser abordada, não pode ser explicada de forma redutiva, recorrendo-se tão somente ao registro do Imaginário. O grande erro dos pós-freudianos terá sido o de enfrentar o fenômeno psicótico através do deslocamento da reflexão freudiana sobre a dinâmica pulsional para a investigação acerca dos conflitos em torno do eu. Convergindo para o contexto alienante da dimensão narcísica, posto que o eu é desconhecimento especular, os pós-freudianos não somente se afastaram do essencial da descoberta freudiana como ainda transformaram, sem querer, a psicanálise em uma arma desencadeadora da psicose, pois, como frisa Lacan, não há nada mais propício para fazer eclodir em surto um sujeito, se este tiver tal tendência, do que insistir na imaginarização do diálogo analítico, na medida em que tal procedimento tem como consequência a instauração de um regime de rivalidade narcísica mortífero entre analista e analisando, com todas as consequências desastrosas daí advindas. É neste contexto que Lacan irá proferir a célebre e mal compreendida sentença segundo a qual a análise com prépsicóticos desembocaria naquilo que deveríamos justamente evitar, ou seja, em psicose declarada. Obviamente, este alerta nunca representou uma condenação strictu sensu da clínica psicanalítica com psicóticos, mas apenas a afirmação de que não se pode cometer com estes sujeitos o erro de aprisioná-los em um regime narcísico. Ao contrário deste nocivo procedimento pós-freudiano, a ênfase lacaniana ao longo de todo o seminário dar-se-á no sentido de mostrar que, por se tratar na psicose de um distúrbio essencialmente ligado à natureza da linguagem, na investigação analítica há que se ultrapassar o registro da imagem a fim de poder interrogar adequadamente a dimensão da fala. Neste sentido, a crítica lacaniana à definição kraepeliniana da paranóia se esclarece precisamente pelo desconhecimento por parte da psiquiatria dos determinantes linguísticos das psicoses. Assim, Lacan irá discordar de cada trecho da clássica definição de Kraepelin sobre esta modalidade psicopatológica, concentrando-se a crítica principal sobre a não apreensão, por parte deste, da característica primeira do modo de discurso paranóico, a saber, a radical falta de dialética, a fixação virulenta que o paranóico apresenta às significações petrificadas de seu delírio. Como Kraepelin havia ressaltado, o pensamento do paranóico mantém-se bastante claro e ordenado de um ponto de vista lógico; entretanto, para além desta constatação há que se perceber que não há movência neste discurso; há, é claro, incorporação, pelo delírio, de novos elementos advindos do contexto; porém, uma inércia sem dúvida patológica vem fazer com que os enunciados delirantes apresentem para este sujeito uma dimensão de certeza que um neurótico jamais conseguiria alcançar, posto que este sujeito sabe muito bem que há uma relatividade essencial que corrói os fundamentos de todas as crenças.

 

Uma vez percebida esta questão fundamental, Lacan conclui que, a fim de apreender os determinantes essenciais das psicoses, antes de tudo o investigador deve se interrogar acerca do modo pelo qual o psicótico usa a fala. A esta altura, trás à cena o então já conhecido recurso do esquema L da comunicação, o qual mostra que o sujeito se fala com seu eu. A interação entre os eus, ligados ao muro da linguagem, permite a comunicação entre os sujeitos, embora sempre obstaculizada pelo registro imaginário, o da fala vazia. A fala plena, por outro lado, implica a comunicação do sujeito ao Outro, o que vai exigir o ultrapassamento deste muro narcísico através do acesso à ordem simbólica. Neste contexto, Lacan dirá que a fala plena – conceito que posteriormente irá abandonar, na medida em que nunca há, falando propriamente, fala plena, todas os dizeres sendo sempre marcados pela barra do recalque e da castração – implica o retorno, para o sujeito, de sua própria mensagem, vinda do Outro, sob forma invertida. O exemplo utilizado é o do "Você é minha mulher", o qual, se consentido pelo Outro, irá fazer retornar para o sujeito o "Você é o meu homem", ficando então a cargo do Outro a confirmação da mensagem do sujeito acerca de sua masculinidade. Essa fala plena, portanto, trás embutida a marca de um pacto simbólico entre sujeitos, e é justamente aquilo que irá marcar em Lacan sua diferença essencial com relação ao hegelianismo, em que o reconhecimento só pode advir dentro da dinâmica dual, na qual a luta de morte por prestígio irá definir quem dominará, quem será o Senhor e quem será o escravo. A palavra, enquanto símbolo, distribui as posições e confere um lugar tanto a um quanto a outro, como vimos no exemplo da fala plena. Este esquema L servirá a Lacan sobretudo para sustentar que a especificidade da psicose consiste em que nela o Outro está excluído - o Outro no caso definido como tesouro dos significantes, como lugar da fala - isto é, falta o pacto simbólico, de forma que o sujeito neste caso irá identificar-se radicalmente com seu eu, assumindo uma forma de alienação irredutível, ocorrendo inclusive em muitos casos a autonomização do eu ideal enquanto duplo do sujeito, como vemos muito bem na sintomatologia da psicose, em que o eu ideal se põe a falar diante do sujeito que escuta vozes. Neste ponto é trazido o exemplo da jovem paranóica, que vivia praticamente reclusa com a mãe, encerrada em um universo feminino avesso a intrusão do masculino. Esta paciente, ao passar pelo corredor de onde morava cruza com o desagradável amante da vizinha, e ouve este proferir o termo "Porca", certamente dirigido a ela. Logo antes, a moça havia proferido "Eu venho do salsicheiro", de forma que a injúria do homem consistiu em uma reação ao enunciado da moça. Este tipo de alucinação auditiva, enunciada pelo outro imaginário, dentro do circuito dos eus, é típico da psicose. Nesse ilustrativo exemplo, vemos a inversão do processo normal da fala, aquele que envolve os dois registros, imaginário e simbólico. Aqui, o sujeito não recebe, como seria de se esperar, sua mensagem do Outro, sob forma invertida; antes, é sua própria mensagem, diretamente, que ela recebe através do outro especular, como se este viesse nomear aquilo que a fala do sujeito apenas cercou. Eis a característica do discurso psicótico, a saber, se é impossível ao sujeito referir-se ao Outro a fim de localizar seu posicionamento no simbólico, resta cercar a área, como faz o psicótico, apresentando sua fala uma estrutura de alusão, modo indireto de falar do sujeito. A resposta "Porca" é a própria consequência do enunciado anterior da paranóica, como mostra Lacan, na medida em que, afinal de contas, quem viria do salsicheiro senão um suíno, partido em rodelas, corpo despadaçado, disperso por um mundo que se vai em pedaços, imagem bastante adequada para descrever o drama de uma loucura que se aprofunda cada vez mais, uma vez dissolvido seu ponto de orientação na ordem simbólica?

Aprofundando a questão da demarcação linguística do fenômeno psicótico, Lacan tomará como ponto decisivo a incidência de distúrbios da linguagem nas psicoses. Se se fala de psicose, ele diz, então há que se demonstrar neste caso a existência no sujeito de uma relação diferenciada com a linguagem. Dois serão os exemplos quanto a esta questão. O primeiro trata de uma paciente com quem ele permaneceu mais de uma hora e meia em entrevista sem encontrar nada que diferenciasse de forma clara seu discurso daquele próprio a um sujeito em dificuldades com o seu meio. Após todo o relato sobre as circunstâncias em que ela se encontrava, a certa altura a moça faz saltar de seu discurso o termo "galopiner", um neologismo cuja incidência, nota Lacan, assume um lugar de grande importância na trama das elaborações da doente. Essa descoberta foi como deparar-se com uma outra língua dentro da língua usada pela paciente, e isso foi decisivo para assegurar a correção do diagnóstico de psicose paranóica neste caso. No segundo exemplo trata-se do caso Schreber, que será tema de grande parte deste seminário, em uma releitura do texto freudiano acerca do juiz psicótico. Schreber demarca desde o início de seu livro a importância que toma para ele a língua falada pelos nervos de Deus, que se lhe apresenta através das vozes que escuta o dia inteiro. É a "língua fundamental" já citada no primeiro capítulo desta tese, uma espécie mirabolante de dialeto do alemão antigo. Essa outra língua, com características gramaticais bem diferenciadas se torna a língua do delírio schreberiano, embora ele fosse capaz de continuar a comunicar-se normalmente com seus semelhantes em alemão tradicional, o que nem sempre ocorre dentro da fenomenologia da psicose. Dois aspectos que atraem a atenção de Lacan neste fenômeno são as intuições delirantes e as frases vazias que surgem a todo momento na mente de Schreber, e cuja insistência parece contribuir para uma certa inércia significativa na fala delirante, as quais Lacan diz serem como "chumbo na malha" do discurso, o qual bem poderia ser, de outra forma, desenfreado, como costuma se dar no caso dos estados maníacos. São exemplos deste tipo de termo em Schreber a "Nervenanhang" adjunção de nervos, e a "Seelenmord" assassinato de alma.

 

Se tivéssemos que dizer em poucas palavras a principal diferença entre o modo freudiano e o modo lacaniano de abordar a psicose, poderíamos sustentar que, enquanto para Freud os fenômenos psicóticos devem ser aprendidos como efeitos de uma dinâmica libidinal conflitiva, com Lacan diríamos que a psicose mostra ser o efeito de um certo fracasso na constituição do sujeito a partir de sua relação com a ordem simbólica. Podemos dizer, então, que a perspectiva lacaniana, embora seja em muitos pontos compatível com a freudiana, é mais abrangente, na medida em que, diferentemente do que muitos supuseram, a primazia da cadeia significante na estruturação do sujeito não implica uma desvalorização do dinamismo pulsional; antes, este dinamismo se vê incorporado às leis do significante que lhe preexistem. Podemos assim entender quando Lacan retoma a conclusão freudiana acerca da causação da psicose paranóica - ocasião em que Freud sustenta ser tal patologia o resultado de um conflito deflagrado entre o eu e a pulsão homossexual inconsciente - considerando-a não exatamente equivocada, porém bastante parcial, uma vez que a tendência homossexual na paranóia é apenas um sintoma dentro da estrutura, e não o determinante geral da psicose. Com relação à determinação estrutural, pode-se apreender que o psicótico, para além do "dialeto" que o distancia do discurso comum, nos apresenta também uma outra manifestação de sua forma bastante diferenciada de relação com a instância da letra. Lacan se refere a este ponto no capítulo do seminário intitulado "De um Deus que engana e de um Deus que não engana". Ora, se já havíamos frisado que a linguagem comporta como característica um mal-entendido fundamental, há que se atentar para a contrapartida disso, ou seja, a existência, necessária, em algum ponto do discurso, de algo que não engana. Não é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um mínimo de estabilidade que corresponde, precisamente, à instituição da noção de verdade. Lacan frisa diversas vezes que nós estamos diante de um sujeito, e não de uma máquina de fala, quando sabemos que aquele pode mentir, pode enganar, o que quer dizer que o que ele diz pode significar qualquer coisa a princípio, inclusive a verdade. O animal pode fingir, pode camuflar suas ações, mas somente o ser humano finge fingir, somente ao ser humano, enquanto ser falante, é dado esse grau avançado de plasticidade no manuseio da ordem simbólica. O reverso desta flexibilidade é a necessidade de se instituir o regime da verdade nas relações humanas. Este lugar de fiador da verdade, é claro, pode ser ocupado de muitas formas diferentes, mas é atributo justamente do Outro, enquanto tesouro de significantes, o estatuto de lugar de reconhecimento de uma palavra verdadeira, enquanto o Outro responde precisamente por um grau mínimo de ordem na linguagem, a fim de que o caos não se afirme de forma absoluta. Ora, na Antiguidade, nos diz Lacan, mais precisamente, para Aristóteles, eram as esferas celestes - enquanto seus movimentos eram supostamente dotados de harmonia, sendo portanto marca destas esferas as trajetórias regulares e estáveis responsáveis por que tudo neste âmbito celeste voltasse sempre ao mesmo lugar - que asseguram consequentemente este lugar daquilo que não engana, e essa estabilidade garantida permitia que o homem antigo suportasse razoavelmente bem a idéia de que a esfera da natureza, em que vivia, fosse bastante caótica e irregular. A partir de Descartes, entretanto, com o nascimento da era moderna, científica, que é a nossa, o lugar de garantia da verdade passará a ser o de Deus, ou seja, aquele que é suposto não nos enganar, ou, dizendo de outro modo, como Einstein, "Deus é malicioso, mas não joga dados". Chama a atenção, como característica do discurso psicótico, a ausência deste Outro que não engana. Se atentarmos para o comportamento do Outro de Schreber, seu Deus, veremos sem muita dificuldade que se trata, antes de tudo, de um ser que não é confiável: de primeira não se pode saber sua intenção, depois se descobre que quer o pior para o presidente; ora está tão próximo que surge mesmo a ameaça de ser dissolvido nos nervos de Schreber, em outro momento pode se afastar a uma distância incomensurável, deixando o doente "largado". Enfim, se o universo delirante de Schreber se caracteriza pela subversão total dos parâmetros e até mesmo pela ameaça constante de uma dissolução radical, isso se deve à ausência em seu campo de um ponto de apoio orientador, a partir do qual a verdade se veja garantida, mesmo que seja possível mentir. Essa característica decisiva do universo delirante corresponde portanto a uma função linguística que se mostra ausente no discurso psicótico. Retomando, mais uma vez, em Freud as raízes desta conceituação, Lacan irá destacar a reflexão freudiana acerca da Unglauben paranóica, isto é, a descrença no Outro pré-histórico que é marca da paranóia. Ali onde o neurótico procede à Bejahung, afirmação primordial, no juízo de atribuição que reconhece no mundo a existência de um Outro da castração que se faz presentificar na vida do sujeito, o psicótico responde com uma expulsão primordial, a Verwerfung, em que a representação do Outro será definitivamente rechaçada do universo simbólico do sujeito, restando em seu campo a presença estranha de um Outro errante, evanescente mesmo, como se pode depreender do caso Schreber. A sintomatologia paranóica, como vimos no primeiro capítulo desta tese, é esclarecedora deste modo de funcionamento. Lembremo-nos que, se o neurótico obsessivo apresenta como sintoma primário a auto-recriminação, a qual pode surgir, por exemplo, após a primeira experiência sexual, o paranóico, diante da mesma experiência, sofre a eclosão da sintomatologia psicótica, em que aquilo que deveria surgir como auto-recriminação retorna entretanto como perseguição a partir de um outro externo ao sujeito. Na paranóia, o sujeito recusa o reconhecimento de sua participação na desordem do mundo, e será sempre o outro quem responderá pelo Kakon do próprio ser do paranóico. Essa é a inexistência da Bejahung, a afirmação primordial, o reconhecimento do Outro que implicará para o sujeito a assunção da castração.

Essa ausência que constatamos na psicose, de um Outro capaz de produzir reconhecimento simbólico, isto é, de garantir a existência da verdade e assim regular minimamente as relações no interior da ordem simbólica, faz com que o psicótico seja submetido, em muitos momentos – especificamente quando suas defesas falham – à experiência de uma falta radical de referência em seu discurso, isto é, em sua vida mesma. Essa constatação surge precisamente no momento seguinte em que todo o saber que aquele sujeito até então detinha e utilizava para se sustentar dentro da ordem simbólica desaba após sofrer algum tipo de ataque, o qual pode se manifestar de muitos modos diferentes, como uma cena de violência vivenciada, uma experiência estressante, ou, muitas vezes, a emergência simplesmente de uma questão até então silenciada, questionamento que torna explícita a falta de consistência em seu saber, na medida em que tal interrogação surge como impossível de ser respondida pelo sujeito. Lacan se refere a este momento, que é o de desencadeamento da psicose, como o ponto em que se abre para o sujeito psicótico um buraco no simbólico, um vazio no centro da cadeia significante, e que tem como consequência a instauração, para o sujeito, de um estado por vezes duradouro de perplexidade. Os desdobramentos destas ocorrências são principalmente dois: por um lado, como iremos estudar mais a frente, há um intenso remanejamento na cadeia significante, que se explicita sobremaneira pelas produções neológicas e as alterações sintáticas que os enunciados delirantes apresentam; por outro lado – e neste caso temos aquilo que é mais exuberante na fenomenologia da psicose, conferindo-lhe sua forma, embora, como Lacan sempre frise, se trata de um fenômeno derivado, e não constituinte da patologia – constata-se a proliferação ou dissolução imaginária, quando a cena do mundo parece explodir em mil fragmentos, perdendo sua coerência e desdobrando a identidade formal do sujeito e de seus semelhantes em diversas identidades autônomas entre si. O caso Schreber nos mostra claramente este fenômeno, na medida em que nele nenhum ser escapa à subdivisão das almas, nem Deus que se fragmenta em Ariman e Ormuzd, nem o Dr. Flechsig, que apresenta um aspecto anterior e posterior, nem o próprio paciente, que se percebe acompanhado de um segundo Schreber, cujas características ele chega a descrever. A dissolução imaginária faz parte do quadro geral que Lacan nomeia como regressão tópica ao estádio do espelho, traço marcante da psicose, que aprisiona o sujeito em uma dinâmica de alienação mortífera, como as passagens ao ato psicóticas costumam mostrar. A afirmação schereberiana, segundo a qual ele é um cadáver conduzindo um outro cadáver atrás de si, ilustra de forma magistral essa relação de dependência do sujeito com relação a sua imagem especular, agravada pelo fato de que o aprisionamento de sua libido dentro unicamente desta dinâmica dual, isto é, sem mediação pelo simbólico, leva à imagem esse caráter de putrefação que Schreber testemunha. Estes fenômenos da ordem do imaginário serão melhor esclarecidos mais à frente, na medida em que, no ser humano, como conceitua Lacan, esse registro especular é fundamentalmente dependente da estrutura da linguagem; consequentemente, será somente após a articulação das relações constituintes da ordem simbólica que poderemos apreender adequadamente os fatores que produzem todos estes fenômenos imaginários tão pregnantes nas psicoses.

 

Retomando o primeiro aspecto resultante da queda do psicótico em um abismo que se abre em seu campo simbólico, a saber, o remanejamento da cadeia significante, duas alterações fundamentais no discurso de Schreber expõe a questão, se nos referirmos agora ao texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" de 1958, onde Lacan faz uma espécie de sumário do seminário 3, acrescentando entretanto algumas pontuações novas. Neste texto ele se refere às seguintes alterações na fala schreberiana: 1- as mensagens sobre o código, e 2- as mensagens interrompidas. O primeiro aspecto diz respeito aos neologismos de seu delírio, e aos significados neológicos de alguns ternos da língua comum. Como já frisamos, esses neologismos, que são muito frequentes nos delírios, assumem uma importância especial para o sujeito, de forma que é frequente alguns poucos neologismos condensarem várias significações organizadoras do delírio, que parece brotar a partir destes elementos significantes. Na psiquiatria clássica já havia sensibilidade para esta questão, de forma que se criou a distinção entre os neologismos ativos e passivos. Os primeiros são como os do caso Schreber, ou seja, são poucos, tão duradouros quanto a permanência do delírio, e assumem tal importância que Lacan chega a definir um delírio como um campo de significações que organiza um significante, isto é, um significante neológico. Os neologismos passivos, por sua vez, são típicos do ciclo maníaco, e proliferam na fala do psicótico, demonstrando muito mais uma desordem radical na sintaxe da língua do que propriamente uma reorganização discursiva, como é o caso dos neologismos ativos. A segunda forma de alteração no registro significante que Schreber apresenta, as mensagens interrompidas, mostram-se como distúrbios de conexão, em que a frase é cortada justo no ponto, destaca Lacan, em que surgiria a significação, isto é, o elemento da mensagem que amarra a relação dos termos envolvidos. Eis alguns exemplos: "Agora eu vou me...", "Você deve de fato...", "Nisso eu quero...". São frases lançadas pelas vozes, e diante das quais Schreber é coagido a retrucar, 1- "render-me ao fato de que sou idiota", 2- "ser exposto como renegador de Deus", 3- "pensar bem".

Ainda dentro da questão das alterações da ordem significante na psicose, decorrentes do encontro do sujeito com o buraco no simbólico, encontramos aquele fenômeno elementar ao qual Bleuler se referira como a principal característica da esquizofrenia, a saber, o distúrbio das associações, o afrouxamento do elo associativo que podemos sempre identificar no esquizofrênico. Esse sintoma primário aponta para a incapacidade deste sujeito em debelar esse efeito de abismo, de voragem que se abriu no interior de seu discurso, associado à inexistência de um Outro que garanta minimamente a ordem discursiva. Esses pacientes costumam se queixar de que não mais entendem as falas que lhes são dirigidas, que não apreendem os textos que lêem, enfim, que já não conseguem mais juntar as idéias umas às outras, o que lhes provoca constantemente um sentimento de que estão alheios, que estão do lado de fora de tudo o que acontece à sua volta.

A fim de apreendermos que tipo de falha na estruturação simbólica produz os efeitos que estivemos estudando mais acima, será necessário fazer uma pausa na abordagem especificamente linguística da questão psicótica e retomarmos propriamente a experiência edípica, segundo a releitura lacaniana de Freud. Para Lacan, o Édipo freudiano é uma abordagem mítica daquilo que opera da ordem da estrutura. Sendo estrutural, o Édipo não pode ser confundido com uma etapa ou uma fase, mas se trata, antes de tudo, de um momento constituinte da subjetividade, quando se decidem as linhas de força que irão definir a arquitetura do psiquismo. No seminário 5 "As Formações do Inconsciente", de 1958, Lacan pensa o Édipo a partir de três tempos lógicos. No primeiro tempo, que coincide com o último tempo do estádio do espelho, encontramos a criança em uma relação dual com a mãe, na medida em que aquela, localizando especularmente aquilo que supõe ser a falta da mãe, acredita poder adequar-se à imagem ideal capaz de responder pela demanda materna. Uma vez que a mãe é um sujeito inserido no simbólico, sua falta será, consequentemente, uma falta fálica, e a criança buscará, precisamente, ser o falo que falta à mãe. Essa dinâmica, é evidente, só pode ocorrer na condição de que a criança tenha sido previamente investida pela mãe como objeto idealizado de seu desejo. O olhar desejante da mãe é decisivo para a constituição do estádio do espelho e a consequente identificação fálica da criança. Dessa relação dual primeira advém o segundo tempo, em que entra em cena um estranho, o pai, o qual surge para a criança como um perturbador do gozo, alguém que é responsável pelo desalojamento do filho com relação à posição de falo da mãe. Para tanto, é preciso, evidentemente, que esta mãe se situe como desejante em relação a esse homem, o que vai pontuar para a criança ao mesmo tempo que a mãe é portadora de uma falta essencial, a qual o filho não está em condições de preencher, e que o pai tem uma relação decisiva quanto a essa falta. Em uma palavra, esse segundo tempo trás à cena um pai que é situado como privador do falo materno, e que, por isso mesmo, é o verdadeiro detentor do atributo fálico, o que será suficiente para que a criança o configure como todo-poderoso, figura do Pai imaginário, e que dele passe a temer destino semelhante ao sofrido pela mãe, isto é, a castração. Lacan é bastante enfático quando frisa que o momento decisivo do Édipo se dá para a criança com relação à apreensão da castração da mãe. Esse é o pivô que irá fazer instaurar a estrutura. Nesse momento fundamental, a criança se vê diante de uma situação muito parecida com a do psicótico, a saber, a experiência de se deparar com um vazio, um furo no Outro, que se manifesta para ela sob a forma de um desejo materno enigmático, posto que não se deixa mais apreender nas malhas narcísicas do estádio do espelho. Esse é, certamente, um momento de grande angústia, na medida em que esta criança já não sabe mais o que o Outro quer dela, o que a coloca de fato diante da perplexidade angustiante. O remetimento que a mãe promove em relação ao pai, entretanto, irá configurar a saída para este impasse. O Pai imaginário, tirânico, será portanto responsável pela renúncia da criança ao gozo incestuoso, o que marcará para esta sua castração imaginária. Momento de negativização do falo, em que a criança se vê feminilizada diante deste Pai enquanto um macho poderoso contra o qual não se poderia a princípio competir. A dialética, porém, não cessa neste ponto, desembocando, logicamente, no terceiro tempo do Édipo, marcado sobretudo pela relação da criança ao pai. Neste ponto, a questão da angústia da primeira irá se resolver na medida em que o pai não interdita somente o filho do gozo incestuoso com a mãe, mas também impõe a esta a renúncia à demanda de reintegrar seu produto, isto é, a criança. Por outro lado, nesta etapa o filho irá confrontar-se imaginariamente com esse Pai todo-poderoso, o qual será assassinado simbolicamente, o que corresponde portanto à castração também do pai. Esse pai morto, que Lacan retomará das reflexões freudianas e nomeará Pai simbólico, será responsável pelo pacto edípico, através do qual entrará como doador, operando em relação ao filho a transmissão fálica, correspondente à identificação viril do filho ao pai, cujo efeito será o de retirar o menino da posição feminilizada do segundo tempo, permitindo-lhe então deixar a situação de perplexidade e angústia anterior, uma vez que a versão paterna (père version) irá fornecer à criança uma possilibidade de se servir do significante fálico a fim de fazer borda ao buraco no simbólico implicado no enigma do desejo materno. A esta complexa elaboração simbólica corresponde o recalque originário, o qual tornará a criança capaz de esquecer o Outro, que se tornará por isso mesmo silencioso, passando a constituir o inconsciente daquele sujeito, esclarecendo a afirmação lacaniana segundo a qual o inconsciente é o discurso do Outro. Também como saldo desta dialética, teremos a passagem, para a criança, da posição de ser o falo para tê-lo. Neste processo, como se pode depreender, para poder ganhar é preciso antes perder, ou seja, é somente na medida em que o falo é primeiramente negativizado junto à criança que esta poderá, no momento posterior ser portadora do título que o positive. Lacan dirá desta posição que o sujeito então "não é sem tê-lo". Uma boa ilustração deste processo nos é fornecido pelo pequeno Hans, em sua segunda fantasia do bombeiro, o qual vem desatarrachar seu pipi para em seguida fornecer-lhe outro maior.

 

A função do pai nesta trama elaborada que o Édipo apresenta será nomeada por Lacan como sendo a metáfora paterna. O pai é uma metáfora, ele afirma, relendo a afirmação freudiana segundo a qual o reconhecimento do pai corresponde a um ganho civilizatório, embutindo necessariamente um ato de fé, uma sublimação, na medida em que, se a mãe é certíssima, o pai, por sua vez, é sempre incerto, sendo preciso neste caso um ato de reconhecimento, de atribuição. O pai é uma metáfora, dirá Lacan, uma vez que sua função implica precisamente a substituição de um significante por outro, produzindo com essa operação um novo sentido. No Édipo, o significante do desejo da mãe será substituído pelo significante paterno. Neste processo, o significado ao sujeito, articulado inicialmente à relação de alienação especular junto à mãe, será nadificado, para em seguida ser atribuído ao sujeito a significação fálica, prerrogativa da função paterna. O exemplo utilizado por Lacan no seminário 3 para ilustrar a substituição metafórica é extraído do verso de Victor Hugo: "Seu feixe não era avaro nem odiento". Este trecho se refere à Booz, o ancião, que com avançada idade recebe a notícia de que será pai, e o verso se refere justamente à surpreendente fecundidade de sua verga, seu membro viril. Neste caso, feixe tomou o lugar de Booz, que foi portanto negativizado, isto é, separado da idéia que a ele estava previamente associada, a saber, de velho improdutivo. Essa anulação de sentido é necessária para que o procedimento metafórico possa precisamente propor um novo significante para se associar à Booz, e com isso produzir um novo sentido, o de procriador. A metáfora, como vemos, comporta também três tempos. Como constata Lacan, a metáfora não consiste em uma operação entre outras dentro do funcionamento da linguagem; antes, pode-se dizer que esta é especificamente constituída por metáforas e metonímias, ou condensações e deslocamentos, se ficarmos com a terminologia freudiana. Na medida em que a língua, como já dizia Saussure em seu Curso de Linguística Geral, não é uma nomenclatura, mas um sistema, e isto implica que, antes de um signo remeter a uma coisa do mundo, os signos não fazem nada mais que remeter sempre, quando se quer saber seu valor, a outros signos do sistema. Dessa forma, o procedimento linguajeiro, na abordagem de qualquer objeto, consiste sempre em cercá-lo através de metáforas e metonímias. Como constatamos, nos propusemos a deixar a linguística para retomar o Édipo freudiano, mas acabamos retornando às questões que envolvem o significante, o que não é de forma alguma surpreendente do ponto de vista lacaniano, uma vez que, dentro desta perspectiva, as formações culturais e as relações intersubjetivas, em linhas gerais, são tributárias da estruturação da cadeia significante.

Ora, se retomarmos o exemplo freudiano utilizado em nosso primeiro capítulo, quando a paciente de Tausk, após haver brigado com o namorado chega à sessão afirmando que seus olhos estão virados, que o médico observe sua face para verificar a correção de sua afirmação, ao mesmo tempo que relata o episódio com o rapaz, descrevendo-o como um Augenverdreher (virador de olhos, enganador), constatamos que este sintoma esquizofrênico expõe precisamente o oposto do que seria de se esperar de uma metáfora. A histérica, afetada também pela conflito com o namorado, poderia aparecer na sessão, como avalia hipoteticamente Freud, com a cabeça virada por um torcicolo, sem nada lembrar da briga da noite anterior, e através desta conversão somática expressaria, sem se dar conta, sua leitura do episódio ocorrido, mostrando que seu namorado era, em sua opinião, um "virador de olhos", um enganador. Neste caso, como se vê, teríamos uma metáfora constituída em todas as suas características, porém dentro do uso simbólico que a histérica faz de seu corpo, produzindo, por meio de uma cena fantasmática, uma fala amordaçada, que expressa aquilo que ela não pôde dizer, possivelmente pela força que a idealização da imagem desse namorado lhe impôs, no sentido de silenciar acerca daquilo que poderia vir macular imagem tão consistente. A metáfora inconsciente que o neurótico produz atesta precisamente que o mesmo dispõe da metáfora paterna, isto é, atravessou o Édipo e consequentemente pode se servir do símbolo para lidar com o que é da ordem do traumático. A desmetaforização característica da psicose, como nos mostra o exemplo acima, vem expor que algo deixou de ocorrer no percurso que seria o do sujeito no Édipo, ausência cuja consequência é precisamente o encontro com o abismo semântico que é a marca do desencadeamento das psicoses. Se, como vimos, a linguagem é essencialmente metafórica, e o sujeito psicótico carece desse recurso, é lógico que a qualquer momento a articulação linguística poderá lhe faltar no trato de suas experiências, deixando-lhe justamente em plena perplexidade ali onde uma diferença se coloca de forma inarredável para ser significada pelo sujeito. Com isso, chegamos no aspecto fundamental da conceituação lacaniana acerca de determinação das psicoses. O que faltou, para o psicótico, como Lacan sustenta no seminário 3, bem como no texto "Questão Preliminar", foi a incidência da função paterna no Édipo, necessária para proporcionar ao sujeito o acesso ao uso minimamente estruturado da linguagem. Podemos apreender na dinâmica edípica a intervenção de dois planos ordenadores da subjetividade, o plano especular, e o simbólico. De certa forma, pode-se dizer que a experiência edípica implica uma certa aniquilação da estruturação prévia do sujeito, a imaginária especular, aniquilação necessária a fim de poder instaurar a regulação significante. Se o vivido do sujeito se estruturava anteriormente pela significação alienante proporcionada pela identificação com a imagem ideal fornecida pelo espelho a partir da autentificação materna, o que situava o sujeito como falo imaginário da mãe, a entrada do pai terá como efeito a inviabilização deste modelo organizacional. Se, entretanto, esse pai real surge, quebrando o espelho, e no entanto não promove uma nova regulação, então estaremos precisamente na dinâmica psicótica. É assim, justamente, que Lacan se expressa em "Questão Preliminar": "Para que a psicose se desencadeie (...) é preciso que Um-Pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a', isto é, eu-objeto ou ideal-realidade, concernindo o sujeito no campo de agressão erotizada que ele induz". O que denominávamos mais acima exclusão do Outro na psicose diz respeito precisamente à inexistência deste modo simbólico de regulação proporcionado pela função paterna no Édipo. Este fracasso paterno, fracasso na instauração de um operador estrutural, se dá a partir de diversos determinantes. Pode ocorrer que o pai, por demérito, inviabilize todo o processo, na medida em que uma das condições fundamentais para a operação metafórica supõe que o pai seja capaz de dar mostras de ser o legítimo detentor do falo, o que se afigura bem diferente da simples possessão ou não do pênis. Essa atribuição fálica subentende que esse pai possui alguma autoridade junto à mulher e que, de alguma forma, se faz por esta desejar. Se não é o pai que fracassa em se fazer desejar e respeitar, pode ocorrer, o que de fato é o que se dá na grande maioria das vezes, que a mãe não situe este homem em sua função paterna, por uma dificuldade dela mesma no que diz respeito à sua própria relação com a falta. É decisivo o modo como a mãe se relaciona com sua própria falta a fim de que seja propiciada à criança a possibilidade de se haver com um certo vazio constituinte que a conduzirá justamente à constatação da castração da mãe e ao consequente recurso ao pai enquanto suposto saber algo acerca do gozo desconhecido da mãe. Se a mãe se utiliza da criança, o que sempre ocorre em algum grau, a fim de obturar sua falta, fazendo desta um mero objeto metonímico seu, cuja função é antes de tudo de tamponamento, de suturação de sua própria questão colocada a partir de sua relação com o vazio da feminilidade, então teremos uma mãe que se situa unicamente no lado masculino, o que terá por consequência a anulação de uma possível intervenção paterna enquanto instância terceira reordenadora das relações entre mãe, pai e criança.

A questão colocada pela função paterna, entretanto, é abordada por Lacan de uma forma muito mais minuciosa e aprofundada que a simples colocação da metáfora paterna no Édipo. O que do pai opera na estrutura será denominado, na elaboração lacaniana, o significante do Nome-do-Pai, significante primordial cuja elucidação necessita um tratamento pormenorizado. Esse conceito já aparece no seminário 3, embora seja explicitado formalmente dois anos depois, no texto da "Questão Preliminar". Trata-se de uma reflexão que acompanhará toda a elaboração da teorização lacaniana, apresentando dificuldades em sua abordagem que chegam a fazer parte da história do percurso intelectual lacaniano. No décimo-primeiro ano de seu seminário, no período de 1963-64, por exemplo, Lacan anunciará que o título de seu novo seminário, após o último, sobre a angústia, será, por motivos de ordem lógica, isto é, de desdobramento conceitual de suas reflexões, "Nomes-do-Pai". Este seminário, entretanto, será interrompido após somente uma aula, sob a alegação de que a conjuntura do meio institucional psicanalítico inviabilizaria a continuação da abordagem por ele desta temática. Ocorre que na noite anterior ao proferimento desta primeira aula ele recebera a notícia de que afinal a longa e penosa polêmica envolvendo suas relações institucionais com a IPA (Associação Psicanalítica Internacional), da qual ele era membro didata na época, acabara de provocar seus primeiros resultados concretos, a saber, a partir daquele momento o ensino lacaniano não mais seria considerado como psicanalítico pelos membros da citada associação, e que Lacan não era mais reconhecido como psicanalista didata da instituição. Essa determinação implicava, de forma patente, uma desautorização, por parte da IPA, de seu trabalho, o que, na época, tornava muito difícil a situação de Lacan como psicanalista verdadeiramente "excomungado" – esse é o termo que ele mesmo usou para qualificar a resolução institucional. Sua reação será precisamente a de suspender a continuação do seminário deste ano, após apenas essa primeira aula, e propor outro tema para o ensino, devido à convicção de que ainda era por demais precoce, diante das resistências provocadas, o tratamento conceitual desta questão acerca da paternidade. É interessante constatar que, na história da reflexão religiosa, todas as vezes que pensadores cristãos ou hebraicos se propuseram a abordar a delicada questão do Nome-do-Pai, isto é, o nome verdadeiro de Deus, esse trabalho trazia como consequência efeitos nocivos sobre a saúde psíquica dos investigadores. Assim, dizia o célebre Rabi Shimon Bem Yojai, no século XIII, após consentir com a demanda de seus discípulos que desejavam saber acerca do grande mistério: "Eis aqui o que se passa, como eu temia. O castigo do céu baixou sobre nós, porque nos atrevemos a participar da revelação dos mistérios tais como nunca haviam sido revelados desde os tempos de Moisés". Segundo o relato do Zohar, nesse momento o público pôde ouvir uma voz que respondeu desde o céu: "- Sabei que aqueles que penetraram o significado interno dos mistérios, que são causa de tremor, assim acima como abaixo, se expõem à morte. E a alma que aprende acerca de Deus, se consome no desejo de voar até Ele, tão logo como os mistérios lhe são revelados"(2). Esse comentário histórico guarda uma relação com o episódio do seminário inacabado lacaniano. Trata-se do reconhecimento, por Lacan, de que o Nome-do-Pai, enquanto significante primordial, se configura como um estruturador essencial da subjetividade, de forma que abordá-lo, trazê-lo à cena implica manipular elementos que são fundantes para todo sujeito, e que, enquanto tais, operam silenciosamente, e precisam mesmo de um certo esquecimento para operar adequadamente.

 

Nos parece que uma boa maneira de abordar a questão do Nome-do-Pai seja iniciar pelo estudo do estatuto do sujeito-suposto-saber, conceito lacaniano relativo ao lugar ocupado por aquele a quem é endereçada a demanda transferencial durante a análise. Como dissemos, uma diferença importante entre a estrutura neurótica e a psicótica reside na disposição que o neurótico apresenta, e que não se encontra nos psicóticos, para instituir um outro em um lugar de suposto saber. O neurótico opera constantemente com o conceito de verdade, o qual é tributário justamente da suposição de que, mesmo em meio à conjuntura o mais movediça possível, há alguém que sabe acerca do que se passa, há um Pai que responde e que, por isto mesmo, não engana. É fácil ver que esta crença está na base da tendência que todo neurótico tem de acreditar em Deus. Tal crença, por alienante que seja, permite ao neurótico, em contraposição ao psicótico, repousar, mesmo em meio à confusão, posto que existe um pai que zela pela sustentação da ordem, e que é capaz de acalmar as forças mais incontroladas da natureza. Poderíamos dizer que, para o neurótico, a estrutura é centrada, possui um núcleo imutável e idêntico a si que garante estabilidade ao sistema das diferenças. Como já vimos, este centro, ao longo da história, recebeu nomes muito diferentes; entretanto, isso não importa, o decisivo é que sempre parece ter havido a crença estabelecida de que o centro existe e que portanto a estrutura não se encontra à deriva. Ora, esta questão do Pai onipotente se afigura um ponto de choque entre a teoria lacaniana e a freudiana. Sabemos, a partir do texto "Análise terminável e interminável", de 1937, que Freud acreditava ser o complexo de castração um ponto inultrapassável na análise dos neuróticos, ou seja, que a análise não poderia esperar permitir aos sujeitos superar suas angústias de castração. Lacan discorda desta posição freudiana e argumenta, teoricamente, que a análise pode e deve conduzir o sujeito além da angústia da castração, isto é, não à superação da castração, o que de fato é impossível, mas à assunção não angustiada da mesma, ou seja, em uma perspectiva nietzschiana, ultrapassar a questão com o pai, sair de sua sombra, não implica o repúdio da castração, o que seria equivalente à onipotência, mas, ao contrário, o reconhecimento e a afirmação, até mesmo entusiástica, dessa castração, que afeta por sua vez não só o sujeito, mas, principalmente, também o Outro, e neste ponto lembremo-nos do alerta lacaniano de que o ponto pivô do Édipo consiste não só na aceitação da própria castração, mas, antes, no reconhecimento da castração da mãe, o que conduzirá, logo a seguir, à constatação de que o pai também é castrado. A crítica que Lacan faz a Freud consiste na denúncia da operação de salvação deste pai onipotente que se dá na teoria freudiana, embora, é certo, a conceituação de Freud de que o pai que opera no psiquismo é o pai morto já constitui uma primeira e fundamental ultrapassagem da onipotência paterna. Todavia, o texto freudiano citado de 1937 resguarda a posição de um Pai privador que submete o neurótico a um conflito indefinidamente duradouro. A análise lacaniana, portanto, diferentemente da freudiana, visa conduzir o sujeito até o ateísmo estrutural. Justamente, a conclusão téorica de Lacan é de que o final da análise implica o ateísmo, o que não provoca no neurótico nenhuma deriva ingovernável, como seria de supor a situação de um sujeito que já não pode mais contar com a salvaguarda de uma garantia da verdade. Ora, avalia Lacan, é precisamente no momento que o Pai divino decai que o Nome-do-Pai pode operar em sua forma mais correta, fornecendo ao sujeito uma referência compatível com um campo que é da ordem do significante e não da significação. Isso só é possível na medida em que o Nome-do-Pai é o significante que se encontra na origem lógica da linguagem e que, por isso mesmo, assegura seu funcionamento ordenado. Consequentemente, devemos concluir que Deus, ou o suposto-saber, é o reverso manifesto do Nome-do-Pai enquanto operador inserido na estrutura. O Nome-do-Pai, como dizem as escrituras sagradas, e é de onde Lacan irá mesmo extrair o termo, é, por sua própria natureza, isto é, por ser o nome do Pai, o nome de Deus, essencialmente incognoscível, impronunciável. Não se pode conhecê-lo, é o que os textos religiosos sempre afirmaram, e é devido a isso que Moisés, no episódio da sarça ardente, ao indagar ao Senhor por Seu nome, a fim de saber como iria falar d'Ele para o povo de Israel, recebe como resposta o "Eu sou aquele que sou", ou seja, continua a não saber qual Seu verdadeiro nome. Vamos interrogar então as origens lógicas da linguagem a fim de localizar com precisão a natureza conceitual desse operador que é o Nome-do-Pai. Há uma dificuldade quando se deseja pensar o início da linguagem, sobretudo a partir de uma concepção estruturalista, na medida em que, como se sabe, a noção de estrutura é necessariamente relacional, de forma que neste tipo de reflexão se trabalha sempre em um nível sincrônico, relativizando com isso a diacronia. Entretanto, é possível pensar a origem da linguagem desde que descartemos a idéia de que se deve partir da suposição de que aquela surge a partir de um elemento originário que seria responsável pela geração de todos os outros. Lacan refere-se en passant a esta questão no seminário 3, mas é no seminário 9, "A Identificação", que irá abordar detidamente esta problemática, cercando justamente a questão da origem do significante.

Sendo, portanto, tudo o que é da ordem do originário, problemático para se abordar logicamente, vamos nos servir do recurso mítico a fim de auxiliar a reflexão. Imaginemos, então, uma hipotética tribo antiga, a qual se utilizaria de uma linguagem muito rudimentar, na qual cada objeto teria um e somente um nome para designá-lo. Assim, haveria o termo "sol" para designar o astro rei, bem como "cacique" nomearia o líder da tribo. Suponhamos que, um belo dia, alguém decidiu, com a anuência dos outros tribais, designar o cacique também como sol, a partir da idéia de que, tal como o astro que domina o dia, o cacique também governa a tribo. A partir deste momento, ocorre o seguinte: quando ouvem o termo "sol", os nativos já não sabem mais a que este nome se refere, se ao astro ou ao cacique. Dessa forma, deu-se que "sol" deixou de ter um significado imutável como anteriormente, passando a não ser mais que um nome, um som ou uma marca fonética passível de diversos usos. Essa operação que descrevemos corresponde à primeira metáfora surgida. Para não ficar na total indecidibilidade, decidiu-se, por convenção, agregar, toda vez que se usasse o termo "sol", um outro termo conjugado, o qual funcionaria como um determinativo a fim de assegurar o sentido desejado para o termo. Outros procedimentos como o acima citado, entretanto, continuaram a ocorrer dentro desta tribo que se destacava das outras por sua criatividade. Consequentemente, de forma gradual, ocorreu que a linguagem, outrora rudimentar, foi se enriquecendo com um batalhão de metáforas, sendo todavia sempre contrabalançado tal movimento pela definição de determinativos capazes de amarrar adequadamente o sentido do que se dizia. Houve um dia, porém, após a reiteração indefinida dos procedimentos metafóricos, que a utilização de um outro termo da língua como determinativo, se servia para diferenciar os diversos usos, trazia, por sua vez, uma nova indeterminação, na medida em que o próprio determinativo também já fora alvo de operações metafóricas. Dessa forma, percebeu-se que, se a agregação de um segundo termo ajudava a determinação do sentido, diminuindo a ambiguidade do termo metafórico, por outro a nova ambiguidade trazida pelo segundo termo, que funcionava como determinativo, exigia por sua vez a intervenção de um terceiro termo para conferir maior exatidão; esse terceiro termo, por seu lado, exigia a presença de um quarto termo, o qual cobrava um quinto, e assim por diante, de forma que se percebeu que a linguagem já não permitia mais a determinação de um sentido exato como era possível nos tempos primeiros, quando cada termo só anunciava um objeto e nada mais. Por outro lado, os tribais deram-se conta de que, com sua nova linguagem, sua criatividade e, consequentemente sua capacidade de pensar e resolver problemas havia evoluído de uma forma incalculável, mas ao preço de uma perda de precisão na linguagem. Esse grupo, portanto, tornou-se, assim, o primeiro povo humano propriamente dito, na medida em que se mostrava portador de uma linguagem constituída, o que os diferenciava de todos os outros animais.

Essa construção hipotética nos mostra como nossa linguagem, tal como ela é, nasceu a partir da criação do recurso metafórico. Entretanto, a estória não termina por aí, pois, uma vez percebido que os determinativos já não bastavam mais para assegurar a boa circunscrição do sentido, os nativos deram-se conta, desta vez apavorados, de que os termos de sua nova língua apresentavam propriedades inquietantes. Perceberam, por exemplo, que quando se repetia um mesmo termo em uma nova frase, esse termo já não tinha o mesmo sentido que antes, de forma que as palavras desta nova língua eram estranhamente desprovidas de identidade. Elas não eram idênticos a si mesmas, pois não mantinham qualquer estabilidade ao se repetirem. Perceberam, também, que termos diferentes, que originariamente haviam servido para designar objetos claramente diferenciados, agora passaram a ter seus sentidos bastante aproximados, até mesmo confundidos, de forma que tornou-se impossível definir com clareza duas categorias distintas de termos, posto que estes se misturavam. Diante deste escândalo, a decisão tomava foi a seguinte: toda vez que, ao definirem-se duas categorias semânticas razoavelmente distintas e claras, surgisse, a certa altura, um termo que, por pertencer a ambas as categorias ao mesmo tempo, teria por consequência anular todos os esforços dispendidos até então no intuito de separar os diferentes, este termo teria consequentemente seu uso interditado, até por fim ser completamente esquecido pelos nativos. Os termos contraditórios, de dupla face, não idênticos a si mesmos, seriam, a partir de então, sumariamente eliminados, postos fora de circulação, a fim de evitar que o caos tomasse conta da nova língua, por outro lado tão interessante para os nativos. Esse esquecimento originário, portanto, deu origem à noção de verdade, uma vez que, a partir deste procedimento inaugural, a nova língua ganhou muito em clareza e definição, em establilidade semântica, sem perder em contrapartida a flexibilidade que era o seu grande trunfo com relação à língua primeira, totalmente rígida em suas nomeações de objetos. Pois bem, este procedimento acima descrito corresponde precisamente ao surgimento na linguagem do Nome-do-Pai, enquanto um significante primordial impronunciável e incognoscível. posto que radicalmente esquecido, lançado para fora da cadeia da língua. Este termo primeiro, portanto, tornara-se para os tribais um tabu, posto que era radicalmente interditado se utilizar de qualquer termo que se apresentasse como contraditório, como portador de uma dupla face. Somente o Grande Pai, o ancestral da tribo, poderia utilizar este tipo de palavra, uma vez que àquele fora permitido alcançar o que a todos os outros seria impossível. Portanto, somente o Pai, já morto desde tempos imemoriais, poderia se apresentar com esta característica da contradição, da duplicidade; os nativos, por sua vez, deveriam aceitar a limitação de pertencerem a uma categoria ou outra, sabendo que a pertinência a uma delas implicava necessariamente a perda do direito de participar de outra ao mesmo tempo.

 

O que descrevemos de forma mítica pode ser considerado como uma mostração da estrutura da linguagem. Constata-se, também, que o nascimento da linguagem metafórica coincide com o surgimento da escritura enquanto demarcação dos termos da língua como marcas fonéticas e não como representações pictográficas. É interessante observar que as escritas ideográficas, como o Chinês, por exemplo, mostram a transformação de uma escritura outrora pictográfica, figurativa, em uma escrita fonética, quando os ideogramas já representam não mais idéias porém sons da língua. O estudo destas escritas, tais como os hieróglifos decifrados por Champollion, auxiliaram Freud a perceber que os sonhos, com suas imagens, não são representações, mas sim representantes da representação, Vorstellungsrepresentanz, ou seja, marcas que constituem um texto escrito a ser decifrado. Há portanto uma concomitância entre o aparecimento da escritura e o surgimento da linguagem, na medida em que ambas derivam do uso metafórico da língua, uma vez que este uso tem por consequência o isolamento de um termo do sistema, de seu sentido, passando esse termo ao estatuto de pura marca, de traço unário. Voltemos entretanto a interrogar a relação da função paterna com o significante primordial, o contraditório. Esse termo de dupla face, como vimos, através de seu desaparecimento providencial, seu alijamento para longe da cena linguística, teve como efeito a estabilização semântica da linguagem, tornando nítidas as categorias, distinguindo com clareza os termos. O desaparecimento do elemento contraditório, portanto, fez nascer o regime da verdade, da identidade a si. Esse serviço prestado parece residir na função de condensação da contradição que este termo promove, o que libera justamente os outros termos da língua de terem que se haver com suas próprias indeterminações. No lugar do termo contraditório eliminado, que se tornou consequentemente faltante, foi colocado um traço, um termo que substituiu o antigo e que, desde então, passou a contar na língua como um outro termo qualquer, embora se pudesse perceber que ele se comportava de uma forma até certo ponto neutra, posto que, diferentemente dos outros, não era opositivo, não forçava a constituição de categorias opostas como os termos do sistema tradicionalmente provocam. Esse passou a ser o termo neutro da língua, ao mesmo tempo diferente de todos os outros, por sua ausência de propriedades, porém semelhante, por contar como um entre outros. Foi o artifício encontrado para se opor ao sem-sentido que o termo originário apresentava. O apagamento originário do elemento sem-sentido ou contraditório teve portanto como consequência a constituição da língua em condições de funcionar satisfatoriamente sem a produção, daí em diante, de contradições mortais. Assim, em termos lacanianos, diremos que a ex-sistência desse significante originário assemântico assegurou o fechamento do conjunto da língua enquanto um sistema posicional de coerências. Esse significante, Lacan nomeou-o Nome-do-Pai, posto que a função do pai no Édipo é justamente a de ser o de uma exceção, isto é, aquele ao-menos-um que escapa à castração e assim pode condensar em seu nome o gozo sem-sentido que a criança percebia antes frente ao desejo enigmático da mãe, e produzir, dessa forma, um traço que pudesse permitir à criança, ao mesmo tempo, escapar à significação ideal alienante que a mãe lhe fornecera no estádio do espelho, bem como não ficar perdido sem esta nominação imaginária, mas, antes, a partir da nominação simbólica operada pelo Nome-do-Pai, fazer borda a esse gozo sem-sentido, a fim de poder defender-se dele, bem como também dele se servir parcialmente para gozar de uma forma possível. A função paterna, função do significante do Nome-do-Pai, portanto, é fornecer à criança uma nominação que faça furo no Outro, tornando-o inconsistente e assim rompendo o laço narcísico criança-mãe-falo imaginário, bem como proporcionar uma letra de gozo capaz de nomear o buraco no simbólico, tornando-o manipulável. Essa letra de gozo, é claro, não pode permanecer a céu aberto posto que isto traria o sem-sentido para o campo do vivido, gerando contaminação. Por isto mesmo é que o Nome-do-Pai, como afirmavam as escrituras sagradas, deve ser impronunciável e incognoscível, isto é, deve ser originariamente esquecido. Este esquecimento é subjetivante, posto que assegura o furo no Outro, bem como promove uma amarração adequada do campo semântico. Com essa letra de gozo inconsciente, o sujeito irá se identificar, identificar-se ao pai morto, identificação simbólica na medida em que se trata de uma identificação ao traço e não a uma imagem, e é este traço unário inconsciente que corresponderá à constituição do sujeito do desejo no campo do Outro, e através do qual esse sujeito irá buscar recuperar em parte o gozo perdido por ocasião da queda do Outro consistente, queda que Lacan definirá como castração, sendo então perdido, neste caso, os objetos a, objetos pulsionais que responderiam supostamente pela completude imaginária do Outro. A letra de gozo inconsciente que é o Nome-do-Pai também é conhecida na teoria lacaniana como falo simbólico, o significante cujo recalcamento faz com que o inconsciente seja linguagem. Por isto Lacan dirá que o falo é véu, que o falo só pode operar enquanto velado. Trata-se de um significante sem sentido que, operando no furo do recalcamento originário, faz com que o gozo desconhecido do Outro primordial seja bordejado por aquilo que Lacan irá definir como gozo fálico, ou gozo significante, o único do qual o ser humano pode ter notícias. É justamente esse significante fálico, proporcionado à criança pelo Pai simbólico, que irá fazer com que a sexualidade, em psicanálise, seja uma estrutura, cada um dos sexos se posicionando em uma série a partir do modo de se relacionar com o falo. Podemos entender agora a polêmica Freud-Lacan com respeito ao final da análise. Se em Freud o fim de análise jamais ultrapassa a angústia de castração, é na medida em que o Pai suposto saber é pensado por Freud como sendo insuperável. Na perspectiva lacaniana, é possível renunciar ao Pai, desde que dele tenhamos sabido nos servir, frisa Lacan. A deposição do suposto-saber não produz deriva, segundo a teorização lacaniana, precisamente porque ao abandonar essa referência ideal constituída pela figura de Deus Pai o sujeito passa a se referenciar precisamente por aquilo que de fato responde pela organização de seu discurso, isto é, sua própria falta, o furo do simbólico, a castração, o referente sem sentido que, ao faltar em seu lugar, organiza os termos que ficaram. A análise lacaniana termina ao desembocar no furo do Urverdrangung, o recalcamento originário, única referência real do sujeito, aquela que se sustenta a partir do exercício do desejo. É neste sentido que o Nome-do-Pai representa para Lacan o significante que, no campo do Outro, se sustenta como significante da Lei. Daí ser a função paterna a de ser um representante da Lei. Ao pai não cabe opor desejo e Lei; ao contrário a tarefa paterna é a de unir o desejo à Lei. E essa Lei, frisemos, é a lei do sem sentido, a lei do mal-entendido primordial, que proporciona ao sujeito um nome próprio enquanto marca sem significado, puro significante.

 

Busquemos então refletir sobre o que significa e quais as implicações embutidas no fato de que as psicoses se caracterizam estruturalmente pela não inscrição no campo do Outro do significante do Nome-do-Pai. Em primeiro lugar, vamos procurar apreender como se dá esse fracasso da inscrição da lei paterna, e faremos isso remetendo-nos ao Édipo. A partir do que já conceituamos, podemos concentrar nossa atenção sobre o segundo tempo edípico e também em sua passagem ao terceiro tempo, pois muitos indícios nos indicam que são estes dois tempos que faltam no psicótico e que o mantém impedido de prosseguir em seu percurso dialético rumo à constituição do sujeito do inconsciente, sujeito dividido, desejante. Como vimos, no segundo tempo um Pai imaginário todo poderoso veio privar a mãe do atributo fálico. Pode-se depreender que o psicótico alcançou esta etapa lógica, pois é frequente percebermos que o mesmo, ainda que nunca tenha surtado, de alguma forma sabe como fazer a fim de evitar o ponto inconsistente de seu discurso, da maneira como Lacan descreve no seminário 3, referindo-se àquele modo de livrar-se de um impasse simplesmente evitando ser colocado na situação de ser questionado, e que constitui o recurso mais utilizado pelo psicótico. Disso se infere que o sujeito que tem uma estrutura psicótica operou uma Verwerfung do significante do pai, um rechaço radical, expulsão do simbólico que entretanto deixou-o não totalmente desavisado da existência, no Outro, de um ponto a ser evitado, a fim de não ter de se deparar com um vazio radical, como na descoberta de Nataniel, do Homem da Areia, conto comentado por Freud em "Unheimlich" (O Estranho), quando se dá conta de que a linda moça por quem se havia apaixonado perdidamente não passava de uma boneca de madeira, um autômato construído por um cientista (Spalanzani), e cujos olhos haviam sido arrancados pelo oculista Coppélio, o perverso assassino do amado pai de Nataniel no passado. Não se pode dizer que o psicótico possua algum saber acerca desse Pai privador, como é o caso do neurótico e do perverso; entretanto, que ele tem alguma noção sobre o buraco no simbólico, mesmo nunca tendo nele caído, disso não há dúvidas. O que fica claro na estruturação psicótica, a partir do que a clínica nos apresenta, é a inexistência de traços do pai. Não há para ele inscrição do Pai imaginário e tampouco do Pai simbólico. O pai imaginário, como mostra Lacan, irá surgir no momento de desencadeamento do surto psicótico, como sendo mesmo o pivô desta eclosão. A obediência neutra e indeterminada do prépsicótico às ordens de qualquer um, como é praxe nestes sujeitos desde a infância, indicam que não houve inscrição do pai imaginário, este que, no neurótico, produz rivalidade narcísica, com comportamentos de submissão, desafio e transgressão por parte da criança. O confronto com o abismo, o buraco no simbólico, por outro lado, atesta que não houve para o psicótico marcação do gozo do Outro, ou seja, nada lhe foi aventado acerca da existência do significante fálico, o qual lhe permitiria construir algum tipo de resposta ao desejo do Outro. No neurótico, que se serviu do pai no Édipo, o desejo do Outro leva à construção do fantasma, onde o gozo será enquadrado à medida que o sujeito der a sua versão, sua frase simbólica acerca do que é o gozo, de como gozar falicamente, isto é, de que maneira recuperar sob forma significante esse objeto a que o sujeito foi um dia, ao cair do Outro. Essa fantasia, claro, vai dar origem a sintomas, que serão os modos de resposta do sujeito ao gozo desconhecido, modos de cercar e nomear esse gozo. É assim que, ao longo de uma análise, há a travessia da fantasia, isto é, a desmontagem desta cena ancorada em uma frase simbólica através da qual o sujeito responde ao gozo. A travessia da fantasia implicará a assunção da castração, o que trará como resultado que o sujeito, mesmo que ainda enquadrado pelo fantasma, não mais repetirá a tentativa impotente de escrever a relação sexual, na medida em que o reconhecimento da castração implica a desistência em fazer existir a relação sexual, posto que esta é impossível. A inexistência de fantasia na psicose é fruto justamente do fato de que este, por não poder ter se servido do pai, está incapacitado de construir uma cena, uma frase simbólica que venha, através do gozo fálico, demarcar o gozo enigmático do Outro. No lugar da fantasia, o psicótico colocará o delírio como recurso diante do desejo do Outro. Dessa forma, se o fato deste sujeito fazer seu encontro com o buraco do simbólico aponta que não houve para ele constituição de marcas fálicas do gozo, isto implica a inexistência, para este sujeito, do pai do terceiro tempo, o pai simbólico, esse pai que é doador. De fato, essa questão nos aparece na clínica com a queixa recorrente dos psicóticos acerca do fato de que não receberam qualquer herança do pai, ou que este nunca lhes ensinou nada sobre o sexo, ou ainda a não existência de uma dívida simbólica com o pai, na medida em que nada dele receberam. Há portanto ausência de pacto simbólico na psicose, e se pode notar a preocupação destes sujeitos em seguir leis muito rígidas, ou se amparar em normas extraídas da sabedoria popular, provérbios, etc. Fatos clínicos que atestam a ausência de lei paterna, do pai morto freudiano. A respeito dos enunciados chavões que tanto agradam a estes sujeitos, o apego do psicótico às significações ideais de uma comunidade qualquer vem apontar precisamente a não incidência da estruturação da cadeia significante. Se não é possível produzir sentidos a partir da linguagem enquanto sistema de diferenças, resta ao psicótico o acesso aos signos, com toda a pregnância dos sentidos imaginários por eles fornecidos. Do ponto de vista linguístico, podemos dizer que o que falta à estrutura psicótica é antes de tudo o acesso ao significante. Uma vez que não há significante do Nome-do-Pai, não há consequentemente nascimento do significante. Assim, na psicose não há senão sons, ruídos, ou signos que nunca conseguem aceder ao estatuto de significantes. A função do pai, justamente, é trazer a criança para o registro do significante; por isto mesmo que Lacan vai dizer que a nominação é furo, pois o nome próprio se caracteriza especificamente por ser uma pura marca distintiva, fonética, cujo sentido não deve ser destacado. Ao contrário, um nome próprio para funcionar não pode ser reconhecido em primeiro plano por seu significado, o qual, no máximo, pode comparecer como efeito secundário. A inclusão, pelo pai, do significante assemântico vem garantir a propriedade essencial do significante, que é propriamente a de não significar nada, a fim, justamente, que possa vir a significar qualquer coisa. Se não há então, como constatamos, pai na psicose, o destino psicótico fica portanto preso ao destino da relação mãe-criança. Lacan dirá que a posição do psicótico é a de objeto da fantasia materna. Ou seja, aquilo que a mãe sonha angustiada realizar, o psicótico põe em ato, à revelia do sujeito. Um sintoma típico dessa estrutura vem apontar para esta questão. Trata-se da bulimia, que comparece sobretudo na esquizofrenia. De uma mãe excessiva, que sempre empanturrou a criança, podemos ter, posteriormente, um sujeito que come de forma desenfreada, como se fôra um enorme buraco a ser preenchido. A bulimia psicótica vem atestar a posição de um sujeito que realiza a fantasia materna, na medida em que essa coloca o psicótico no lugar de objeto obturante, cujo dever perante a mãe se torna precisamente o de eliminar qualquer manifestação da falta. A bulimia se presta a esta função de sutura. O psicótico se torna objeto da fantasia materna na justa medida em que não lhe é possível construir uma fantasia e assim ele mesmo, como sujeito, encontrar sua resposta à demanda da mãe. Em linhas gerais, o Outro para o psicótico permanece inacessível à falta. Quando se depara como essa falta, o dever fundamental do psicótico se mostra ser o de completar este Outro, de uma forma muito mais radical que a questão neurótica de fabricar também um Outro não castrado, uma vez que na psicose, como vimos, não há o recurso da metáfora. Dessa forma, encontramos na psicose uma dinâmica em que o sujeito se comporta como quem tem um objeto a mais, justamente pelo fato de que não houve castração, e esse objeto então deve ser prontamente devolvido ao Outro, a fim de restituir-lhe a consistência. Uma das problemáticas que usualmente acometem o psicótico, e que derivam estruturalmente de sua posição, é a da impossibilidade de ocupar o lugar de quem tem um objeto. Qualquer posse do psicótico estará sempre em perigo, na medida em que nenhum objeto pode ser retirado do Outro, o qual não é portador de um objeto separável. Entende-se, portanto, que o surto seja desencadeado diante de Um-Pai, privador da mãe, de um objeto fálico. Pela falta mesma da razão fálica, os objetos nesta estrutura não podem circular, o que implica uma impossibilidade de distribuir o gozo. Uma vez mantido na posição de objeto de gozo do Outro, a marca registrada do psicótico será a sua condição apassivada ou assujeitada. Quando estamos em dúvida se uma estória algo mirabolante diz respeito ou não a um delírio, um bom critério diferencial será a indicação de que o sujeito, em toda a trama que ele relata, é antes de tudo, visado pelo Outro. A iniciativa, na psicose, vem do Outro; é do Outro que vem o gozo que invade o sujeito. Lacan nos diz que o psicótico é martir do inconsciente, isto é, sua posição é a de uma testemunha aberta daquilo que um outro lhe disse ou lhe fez saber. Schreber deixa bem clara esta condição ao contestar a afirmação kraepeliniana segundo a qual o delirante paranóico atribui tudo o que acontece à sua volta a sua própria pessoa. O juiz retruca que então não é ele quem sofre de paranóia, na medida em que não é ele quem atribui tudo a si mesmo, mas o Outro, isto é, Deus, quem atribui tudo a Schreber. Assim, o psicótico nos fala daquilo que alguém lhe falou. O que acima de tudo esse modo de relação ao Outro anuncia é o fracasso de uma das operações constituintes do sujeito, a separação. Há alienação na psicose, na medida em que este sujeito recebeu do Outro certas marcas que o alienaram à ordem significante e que permitem-no manter-se às vezes por muito tempo como falo materno. Mas o sujeito, que deveria ter caído desta imagem ideal, não foi produzido, o que vai implicar justamente que nunca veremos para o psicótico operar adequadamente o par significante S1-S2, na medida em que não houve um S2 que viria fazer cair S1 no inconsciente a partir da queda do objeto a. S2, significante do saber do Outro, foi submetido à Unglauben psicótica, a descrença que impede a instauração do significante da castração. O S1 recebido alienou o sujeito ao campo do Outro, produzindo assim perda subjetiva. Quando surge S2, entretanto, este, ao invés de separar S1 do gozo, instaurando o recalcamento originário, somente aglutinou-se ao primeiro significante, gerando aquilo que Lacan nomeará holófrase, conceito que iremos trabalhar mais à frente. Consequentemente, tornou-se inviável para o sujeito interrogar-se acerca do intervalo que deveria existir no interior do par originário S1-S2. O resultado disso é a inexistência da operação de separação na psicose, implicando a ausência de uma questão nesta estrutura, enquanto é sabido que as estruturas neuróticas, histérica e obsessiva, se caracterizam por apresentar sempre uma questão inconsciente que se encontra na base da neurose. A separação, como conceitua Lacan, exigiria que a criança, percebendo a fragilidade existente nas entrelinhas do discurso do Outro, se interrogasse sobre essa falta apreendida, isto é, sobre o desejo do Outro, e então esboçasse uma resposta através da sobreposição de sua falta à falta do Outro, o célebre "Podes me perder?", o que lhe permitiria dar início à tarefa interminável de significantizar o gozo. A holófrase inicial, produzido por um Outro que não permitiu a emergência da falta em seu discurso, deixa o psicótico sem saída para além da alienação. Essa dinâmica, que em muitos casos se afigura trágica, é bem explicitada pela clínica através da síndrome de Cotard, ou delírio das negações, isto é, aqueles casos de psicose melancólica em que a exacerbação dos sintomas leva o sujeito a uma situação na qual, em meio ao negativismo mais radical, passa a recusar-se a comer, uma vez que não tem mais boca, não vai ao banheiro, uma vez que, sem orifício anal nem orifício uretral, como seria possível defecar e urinar? Tais sujeitos se queixam de serem imortais, e pedem a morte, pois esta seria a única saída suposta para o seu sofrimento. Em alguns momentos, dentro desta crise, passam a afirmar-se como idênticos ao próprio cosmos, como sendo a maior das totalidades , o próprio Universo, sendo ao mesmo tempo cada partícula existente. Esta oscilação, que muitas vezes desemboca em uma tentativa de suicídio, jogando-se pela janela por exemplo, expõe esta condição que acomete o sujeito psicótico, na medida em que, por ausência da operação de separação, ocorre a inexistência da falta no campo do Outro. Este psicótico oscila, portanto, em um todo pleno imaginário, onde não há orifícios, apenas uma esfera perfeita, mas por isso mesmo aprisionante, e a total pulverização, quando se identica a todas as partículas do cosmos, a totalidade dos objetos a, se isto fosse possível. Esta alternância demonstra a impossibilidade, para este sujeito, de produzir a falta, permanecendo o mesmo condenado ao Um unificante ou ao zero absoluto, a totalidade das partículas infinitesimais em estado de dispersão.

 

Se estivemos, inicialmente, estudando a estrutura a fim de apreender o que marca a especificidade das psicoses, e em seguida avaliamos as consequências diretas que tais falhas estruturais produzem nestes sujeitos, vamos agora passar a uma outra etapa de nossa elaboração, a saber, a reação do psicótico ao encontro trágico com o buraco no simbólico, pois, se mostramos que há aqueles sujeitos que permanecem indeterminadamente em estado de perplexidade, isso está longe de ser a tônica geral nesta estrutura. Pelo contrário, o que a clínica mostra, de forma conclusiva, é que o psicótico está sempre em luta a fim de assegurar a permanência de sua humanidade, isto é, a tentativa de encontrar algum tipo de saída para o impasse gerado a partir do desencadeamento do surto. Este esforço curativo, entretanto, vai muito além do período de crise, abrangendo, em linhas gerais, toda a vida do sujeito, em termos de intensidade e também de temporalidade. Trata-se daquilo que Lacan irá nomear como a busca de suplência à ausência do Nome-do-Pai, no sentido de alcançar a estabilização subjetiva após a eclosão da patologia. Viemos abordando, neste capítulo, principalmente a vertente linguística da psicose, isto é, sua relação com a lógica do significante, e agora iremos nos voltar para sua outra dimensão, a econômica, ou, dizendo de outra forma, sua face de gozo. Obviamente, esta separação é bastante relativa, posto que não há gozo sem significante, mas, para nossos objetivos de investigação, a separação da experiência psicótica nestas duas dimensões é válida.

Em primeiro lugar, cabe destacar que o desencadeamento da psicose corresponde, do ponto de vista econômico, a um transbordamento, no campo do vivido do psicótico, de um gozo que, antes de tudo, diz respeito ao sujeito, isto é, um gozo que, vindo de fora, literalmente o invade. Trata-se de um retorno pulsional, consequência do fracasso dos processos defensivos até então utilizados. Freud, ao afirmar que os psicóticos amam seus delírios como a si mesmos, chama a atenção precisamente para a dimensão auto-curativa dos delírios, sobretudo os sistematizados, e isto na medida em que estes têm como função precípua regular o gozo que retornou de forma avassaladora em direção ao sujeito, posto que este sujeito não dispõe, por falta do significante do Nome-do-Pai, de nenhum traço que venha circunscrever este gozo pulsional. Esta circunscrição, portanto, será a tarefa do delírio, enquanto articulação significante. Uma vez estabelecido que o gozo se torna problemático na justa medida da insuficiência de articulação significante que é marca desta estrutura, a direção da atividade delirante, enquanto tentativa de resolver o conflito, será de promover, da maneira que for possível, a rearticulação do sistema linguístico. Neste percurso, o psicótico, se conseguir, ao menos parcialmente, percorrê-lo, fará, necessariamente, um apelo ao Pai, a fim de reencontrar uma referência, um princípio para uma existência que se encontra, literalmente, à deriva. A inexistência do Nome-do-Pai implica, na suplência delirante, acessar um pai possível. Frente a este pai, que se apresenta no Real, e não simbolizado como é o caso para o neurótico, o sujeito irá fazer a tentativa de construção de uma metáfora delirante, conceito que Lacan apresenta no seminário 3. Esta metáfora delirante virá no lugar da metáfora paterna inexistente, e dizemos metáfora justamente porque o psicótico tentará inscrever este significante paterno no lugar do significante do gozo do Outro que o submete. Evidentemente, este momento inicial será vivido pelo sujeito em plena angústia e, na maior parte do tempo, em meio à perplexidade, a qual já começa a dar no entanto lugar à intuição delirante, quando o sujeito passa a estar seguro de que algo de novo está para acontecer, mas ele não sabe ainda do que se trata, apenas que irá indubitavelmente ocorrer. Sabemos, por outro lado, que uma vez a estrutura definida, com sucesso ou fracasso da experiência edípica, não há mais meios de reestruturá-la; consequentemente, por melhor que seja a metáfora delirante construída pelo psicótico, esta não terá a eficácia da metáfora paterna, na medida em que a mesma implica a queda do objeto a, objeto condensador do gozo, fora da cadeia significante, bem como sua inscrição na ordem simbólica através do significante fálico. Esta operação da metáfora paterna incide diretamente sobre a regulação pulsional, ao fazer com que o significante da castração seja traçado no campo do Outro, o que permite o recalcamento originário e, consequentemente, o esvaziamento do gozo do campo do Outro. Esse gozo, a partir de então, surgirá através das formações do inconsciente, sob forma cifrada.

Na medida em que, para o psicótico, não houve castração, o objeto pulsional permaneceu associado ao corpo do sujeito, sendo forcluído, e retornando, desde fora, no momento da eclosão do surto. Ora, este gozo que retorna dificultará por extremo a constituição da metáfora delirante. Assim, quando surge para o sujeito o Pai ao qual se fez apelo, esse Pai aparecerá também como uma figura obscena de gozo. É o que se pode facilmente observar na paranóia, em que o sujeito se vê perseguido por um pai gozador, um pai que quer gozar do sujeito. Consequentemente, o pacto a ser estabelecido com este pai terá sempre um preço incomensurável em comparação com o que paga o neurótico através de sua dívida simbólica articulada à castração. O psicótico terá de pagar a um pai exorbitante e, devido à desmetaforização, na maior parte das vezes pagará em moeda Real, isto é, com seu corpo. Schreber, por exemplo, sabe que, para alcançar a solução do conflito com Deus, terá que aceitar a emasculação, isto é, a transformação de seu pênis em uma vagina. As automutilações, frequentes na psicose, apontam para esta dívida real que o psicótico é convocado a pagar, o objeto que deve ceder a fim de completar o Outro. Todo este preço, portanto, está ligado à condição da obtenção da filiação delirante, que é o que o sujeito busca junto ao Pai, ou seja, busca um lugar vazio no Outro, onde possa se alojar como sujeito, posto que, sem a casa vazia, como vimos, não há jogo possível. Esta casa vazia é o bônus da filiação, isto é, a transmissão do nome, do traço singularizante pelo pai. Schreber ilustra esta questão ao comentar, a certa altura de seu livro, antes de haver sistematizado seu delírio, o quanto era insuportável sua situação, na medida em que as vozes não compreendiam que um homem que existe precisa ter um lugar para estar, e isso em uma conjuntura em que estas vozes não lhe permitiam permanecer em nenhum sítio, assediando-o a cada vez que o mesmo encontrava um ponto ou posição satisfatória, seja deitado na cama, em pé diante da janela, andando pelo quarto, etc. Com isso, ele mostra o quanto o psicótico é, de forma radical, um sem-nome.

 

O tratamento do gozo obtido junto ao pai no delírio implicará, por outro lado, a sexuação, isto é, a identificação do sujeito a uma posição sexuada. Como se sabe, a sexualidade é uma das modalidades de gozo, a outra sendo a paixão da morte. Assim, a moderação do gozo passa, necessariamente, por sua elaboração através da sexualidade, o que se mostra pela via do recalcamento originário, por meio do qual o gozo é falicizado, isto é, sexualizado, ao mesmo tempo que significantizado. É neste sentido que, na psicose, o pai, ao fornecer ao sujeito uma letra de gozo, o situará na sexuação. Há psicóticos que, por outro lado, tratam o gozo deixando radicalmente de lado a questão de sua identificação sexuada, mas esta é uma questão a ser trabalhada posteriormente. Havendo metáfora delirante, haverá filiação e sexuação. É neste ponto que Freud identificou na paranóia a existência de uma pulsão homossexual não integrada. Lacan irá concluir, no seminário 3, que o de que se trata no caso Schreber diz respeito, antes de tudo, à foraclusão (Verwerfung) do significante da procriação, ou seja, este psicótico não sabia nada acerca da feminilidade. Ocorre que, se a metáfora paterna no Édipo pode autorizar o sujeito a se identificar com a posição masculina, esta possibilidade está articulada à castração simbólica que, ao dotar todo objeto de uma marca fálica, inclusive no sentido da marca da falta fálica, permite, por significantizar a falta, produzindo-a como furo bordejado pela letra, que os objetos circulem, e que o sujeito, então, se coloque na posição de ter o falo, que é justamente a posição masculina. Como vimos, essa possibilidade do ter é altamente problemática para o psicótico, uma vez que, para este, o Outro deve sempre ser completo. Assim, é grande a dificuldade de o psicótico vir a ocupar uma posição masculina na partilha dos sexos. Essa dificuldade, certamente não insuperável, Lacan a nomeou como empuxo-à-mulher, isto é, a tendência apassivante que acomete o sujeito na psicose e que o impele a abrir mão de todo o registro do ter, a fim de ser o falo que falta ao Outro, o que pode e costuma se resolver através do ser a mulher que falta aos homens, na medida em que a posição feminina se apresenta como semblante do falo na ordem do ser e não do ter. Essa constante estrutural vai se manifestar clinicamente por meio da enorme incidência do transexualismo entre psicóticos ou, no mínimo, por claras dificuldades na ordem da identidade sexual desses sujeitos. Diante de um Deus tão poderoso e com uma exigência de gozo tão radical como este se mostra a Schreber, seria mesmo muito difícil encontrar uma outra solução que não fosse a de se tornar a mulher d'Ele, o que garantiria, ao mesmo tempo, uma filiação divina, na procriação de uma nova humanidade schreberiana, bem como uma nova identidade sexuada. O próprio paciente explica essa decisão, afirmando que mais vale ser uma mulher de espírito, e capaz de volúpia, do que um homem atormentado e desmilinguido. É certo que tamanha transformação exigirá aquilo que Schreber anuncia como o "assassinato de alma" e que Lacan conceitua como morte do sujeito, isto é, uma modificação radical em sua vida, que fará aquele renascer sob uma nova identidade. Esta morte do sujeito é um traço estrutural de toda psicose que alcançou um certo grau de profundidade. A metáfora delirante, concluímos, implica, portanto, uma paranoização da psicose, na medida em que a paranóia é definida por Lacan como identificação do gozo no lugar do Outro. Criar esse significante que faz traço do gozo no campo do Outro é o que permite dizer que o paranóico é um sujeito, na medida em que o sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante. Quando um psicótico procura uma análise, excluindo-se os casos de esquizofrenia mais severa, temos em geral duas possíveis situações: ou o sujeito, acometido pela invasão do gozo do Outro, está em busca da construção de uma metáfora delirante, e vai em geral se apresentar com um delírio em maior ou menor grau de desagregação; ou, então, no segundo caso, temos um sujeito que, tendo já constituído uma metáfora delirante, sofre entretanto pelo fracasso parcial desta, ou seja, por aquilo que comparece como a extrema severidade de um pai que, devendo ser pacificador, surge entretanto em meio a uma cobrança obscena pela filiação delirante. Durante a maior parte de seu delírio, Schreber sofreu justamente pela virulência do preço cobrado a fim de fazer o pacto com o pai divino, e essa metáfora já representava, sem dúvida nenhuma um ganho diante do gozo mortífero que se lhe apresentava no início da psicose, quando seu destino parecia decidido no sentido de tornar-se uma carcaça, um objeto "deixado largado". Neste segundo caso, o psicótico procura o analista a fim de alcançar uma moderação do gozo exigido pela filiação e assim estabilizar sua psicose. Jean Claude Maleval, em seu livro sobre a lógica do delírio (4), propõe, a partir de uma releitura psicanalítica de conceituações oriundas da psiquiatria clássica, uma interessante classificação dos delírios em quatro etapas, segundo o seu grau de evolução ou sistematização. Segundo sua reflexão, seriam as seguintes as etapas: P0- Perplexidade angustiada, momento característicamente esquizofrênico de um gozo deslocalizado; P1- significantização do gozo, momento em que surgiria um delírio paranóide, algo desagregado; P2- identificação do gozo no Outro, o que marcaria a sistematização do delírio, em um momento de paranóia; e por fim P3- consentimento ao gozo do Outro, quando o delírio ultrapassaria a paranóia com a resolução do conflito, em um momento parafrênico, como o de Schreber. Esta reflexão, sem dúvida, vai na direção da constituição de uma metáfora delirante cada vez mais bem acabada, capaz de articular de forma mais abrangente, pela via significante, o gozo do Outro, alcançando por fim uma estabilização duradoura da psicose.

Dentro do processo de elaboração que é o nosso, e que pode ser classificado como dialético, retomaremos agora essa questão da reação do psicótico diante do confronto com o desamarrar do sistema simbólico, para tratá-la por meio da lógica do significante. Partiremos da constatação de que, na ausência da operação de separação, não há intervalo no discurso do Outro, ou seja, o par significante originário S1-S2 permanece congelado, solidificado naquilo que Lacan irá nomear como holófrase. A holófrase na linguística caracteriza aquelas frases de uma palavra só ou quando suas várias palavras são pronunciadas todas juntas como se fossem um termo único aglutinado. Esse processo, que ocorre com a cadeia significante na psicose, impede o surgimento do sujeito do inconsciente, na medida em que este é engendrado a partir do intervalo da cadeia, isto é, o sujeito surge entre dois significantes. A holófrase nos apresenta o Um unificante da psicose, bem distinto do Um contável do traço unário da neurose. Este Um unificante do discurso do Outro é o que faz com que o psicótico se apresente como uma espécie de robô do Outro, naquela conduta de obediência automática que caracteriza estes sujeitos antes da construção da metáfora delirante. A holófrase, também, devido à abolição do significante por ela implicada, carrega em si um gozo que costuma transformar a língua em um som traumatizante para o psicótico, algo da ordem de um ruído sem sentido que penetra o corpo do sujeito de forma dolorosa, produzindo queixas hipocondríacas. Schreber assim se refere a esse efeito, em suas memórias: "Sinto cada palavra dita a mim ou nas proximidades, cada passo humano que ouço, cada apito do trem de ferro, cada disparo de morteiros que é dado provavelmente por barcos à vapor em viagens de recreação, etc., ao mesmo tempo como uma pancada dada na minha cabeça, que provoca nela uma sensação mais ou menos dolorosa, mais dolorosa se Deus se retirou para uma distância maior, menos dolorosa se ele permanece mais próximo."(5) Wolfson, um psicótico que escreveu o livro "O Esquizofrênico e as línguas"(6) conta que o pior sofrimento a que podia ser submetido consistia em ser pego despreparado, isto é, desprotegido, por sua mãe, quando esta lhe dirigia alguma sentença na língua materna de ambos, o inglês. Quando isso acontecia ocorria-lhe sofrer pelo menos por uma meia hora, com aqueles sons ecoando dentro de seu crânio, o que provocava nele uma dor intensa e da qual só se livrava quando conseguia neutralizar toda a sentença através de seus métodos específicos de defesa. Podemos apreender também questões relativas à holófrase e suas consequências através do processo de criação de interpretações delirantes. Jean Allouch, em um livro excelente sobre a função da letra na psicanálise, intitulado "Letra a Letra"(7), relata interpretações de um psicótico: na enfermaria onde estava internado, este paciente viu certo dia um enfermeiro vestindo uma camisa com uma gola de celulóide. Concluiu, a partir daí, que o jogo de damas que usava tinha vindo da Alemanha, enviado por Lulu, filha de seu patrão. Isso porque "celluloide" quereria dizer "c'est Loulou Lloyd", sendo Lloyd a companhia de navegação que transportara o jogo de damas. Em outro texto, encontramos um exemplo do célebre escritor delirante Brisset, que havia assumido a missão de encontrar a língua primeira, a língua fundamental dos deuses. A essa língua divina era preciso chegar através de estudos etimológicos, e era a tal tarefa que este psicótico se dedicava por inteiro, criando sua própria etimologia mirabolante. Assim, interrogado acerca da etimologia de "Israelite", conclui rapidamente tratar-se, na língua dos deuses, do povo eleito, uma vez que, na língua das origens o termo correspondente seria "Il sera elite" (ele será eleito). Sobre a etimologia de "Cetace"(Cetáceo), conclui tratar-se, na antiga língua, dos maiores animais já criados por Deus, posto que viria de "C'est assez!" (É o bastante). Nesses exemplos apreendemos a formação de interpretações delirantes. Através destes procedimentos linguísticos, o sujeito dá sentido ao que ouve e, principalmente, desfaz, desmonta termos que para ele se encontravam holofraseados, o que lhe provocava estranhamento e perplexidade. Celulóide, nota Allouch, era um significante novo na língua no começo do século, e é provável que por esse motivo se apresentasse para o psicótico com uma nota de estranheza e persecutoriedade. É interessante notar que se a noção de que a interpretação delirante é um sintoma primário, um fenômeno elementar da psicose e que nos apresenta o paranóico como um sujeito que dá sentido a tudo, para quem nada é por acaso, não deixa de ser um efeito semântico secundário de um jogo da letra que nem sempre se torna explícito. A desmontagem da holófrase consiste portanto em um procedimento defensivo para o psicótico, através do qual este busca lutar contra um Outro cujo discurso se afigura radicalmente compacto, sem brechas, e, por isso mesmo, altamente aniquilante para o sujeito. Trata-se de reinstaurar neste discurso em bloco o intervalo significante, a falta na qual o psicótico irá instalar sua morada em um ponto do Outro, e que vai protegê-lo da ameaça de ter que cair como objeto, se lançar para fora da cena a fim de cavar um furo neste Outro completo, o que não é infrequente ocorrer nas psicoses melancólicas, com seus suicídios em que o sujeito se lança da janela. Uma vez a dimensão significante restaurada, o psicótico pode então ler nas entrelinhas do texto do Outro. Podemos acompanhar este movimento liberador também no procedimento de criação de neologismos, que irão funcionar como significantes assemânticos que descompletam o discurso do Outro. Recamier, o psiquiatra que escreve "Transtornos da Semântica", no começo do século, diz: "Os neologismos têm com o tempo uma fixidez de forma e de significação tanto maior quanto o delírio está melhor sistematizado e não se modifica senão por aperfeiçoamentos ou degradações. O que eles designam é o objeto central do delírio. Palavra polivalente, resume, condensa, expressa uma ou muitas experiências delirantes; melhor que expressá-las as representa." Estes neologismos de muitas faces, termos contraditórios, são marcas sem sentido que anunciam um trabalho da psicose no intuito de escapar ao todo-sentido dos enunciados do Outro. Schreber, por sua vez, frisa que o único meio seguro de se livrar do inferno causado pelos pássaros falantes, que ficavam repetindo na mente do psicótico horas a fio as mesmas frases vazias aprendidas de cor, era a arma da assonância, da homofonia. Uma vez que os pássaros não faziam diferença entre sons homofônicos, era possível distrair a atenção deles repetindo esses sons quando eles se encontravam em plena tagarelice destas frases vazias, decoradas. Isto os deixava surpresos e os obrigava, por um tempo, a reencontrar um sentimento autêntico. Portanto, através do jogo homofônico, o psicótico se livra da lição aprendida de cor junto ao Outro e pode assim fazer a sua leitura pessoal, encontrando um novo sentido no texto que lhe é imposto, o que lhe possibilita, por alguns momentos, reencontrar um sentimento autêntico, para além da repetição do "como se" que aprisiona estes sujeitos lançados para fora do regime do significante devido à foraclusão do Nome-do-Pai.


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