A DIALÉCTICA DO ESCLARECIMENTO

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Theodor W. Adorno e Max Horkheimer

Fragmentos Filosóficos

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EXCURSO 2

Juliette ou Esclarecimento e Moral

 

Nas palavras de Kant, o esclarecimento "é a saída do homem de sua menoridade, da qual é o próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direcção de outrem" (l). "Entendimento sem a direcção de outrem" é o entendimento dirigido pela razão. Isso significa simplesmente que, graças a sua própria coerência, ele reúne em um sistema os diversos conhecimentos isolados. "A razão... tem por único objecto o entendimento e sua aplicação funcional." (2) Ela estabelece, "como objectivo das operações do entendimento, uma certa unidade colectiva" (3), e essa unidade é o sistema. Seus preceitos são instruções para a construção hierárquica dos conceitos. Em Kant, tanto quanto em Leibniz e Descartes, a racionalidade consiste em "levar a cabo a conexão sistemática, tanto ao subir aos géneros superiores quanto ao descer às espécies inferiores" (4). O aspecto "sistemático" do conhecimento consiste na "conexão dos conhecimentos a partir de um princípio" (5). O pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, não importa se estes são interpretados como axiomas arbitrariamente escolhidos, ideias inatas ou abstracções supremas. As leis lógicas estabelecem as relações mais gerais no interior da ordem, elas as definem. A unidade reside na concordância. O princípio da contradição é o sistema in nuce. O conhecimento consiste na subsunção a princípios. Ele coincide com o juízo que se inscreve no sistema. Um pensamento que não se oriente para o sistema é sem direcção ou autoritário. A razão fornece apenas a ideia da unidade sistemática, os elementos formais de uma sólida conexão conceptual. Todo objectivo a que se refiram os homens como um discernimento da razão é, no sentido rigoroso do esclarecimento, desvario, mentira, "racionalização", mesmo que os filósofos dediquem seus melhores esforços para evitar essa consequência e desviar a atenção para o sentimento filantrópico. A razão é "um poder... de derivar o particular do universal" (6). A homogeneidade do universal e do particular é garantida, segundo Kant, pelo "esquematismo do entendimento puro". Assim se chama o funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento. O entendimento imprime na coisa como qualidade objectiva a inteligibilidade que o juízo subjectivo nela encontra, antes mesmo que ela penetre no ego. Sem esse esquematismo, em suma, sem a intelectualidade da percepção, nenhuma impressão se ajustaria ao conceito, nenhuma categoria ao exemplar, e muito menos o pensamento teria qualquer unidade, para não falar da unidade do sistema, para a qual porém tudo está dirigido. Produzir essa unidade é a tarefa consciente da ciência. Se "todas as leis empíricas… são apenas determinações particulares das leis puras do entendimento" (7), a investigação deve cuidar sempre para que os princípios permaneçam correctamente ligados aos juizos factuais. "Essa concordância da natureza com nosso poder de conhecer é pressuposta a priori ... pelo juízo" (8). Ela é o "fio condutor" (9) para a experiência organizada.

O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo que os factos são previstos a partir do sistema, assim também os factos devem por sua vez confirmá-lo. Os factos, porém, pertencem à práxis. Eles caracterizam sempre o contacto do sujeito individual com a natureza como objecto social: a experiência é sempre um agir e um sofrer reais. É verdade que, na física, a percepção pela qual a teoria se deixa testar se reduz em geral à centelha eléctrica que relampeja na aparelhagem experimental. Sua ausência é, via de regra, sem consequência prática, ela destrói apenas uma teoria ou, no máximo, a carreira do assistente responsável pelo experimento. As condições do laboratório, porém, são a excepção. O pensamento que não consegue harmonizar o sistema e a intuição desrespeita algo mais do que simples impressões visuais isoladas: ele entra em conflito com a prática real. Não apenas a ocorrência esperada deixa de ter lugar, mas também o inesperado acontece: a ponte cai, a sementeira definha, o remédio faz adoecer. A centelha que assinala da maneira mais pregnante a falha no pensamento sistemático, o desrespeito da lógica, não é nenhuma percepção fugidia, mas a morte súbita. O sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os factos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza. Seus princípios são o da autoconservação. A menoridade revela-se como a incapacidade conservar a si mesmo. O burguês nas figuras sucessivas do senhor de escravos, do empresário livre e do administrador é o sujeito lógico do esclarecimento.

As dificuldades no conceito da razão, provenientes do facto de que seus sujeitos, os portadores de uma e a mesma razão, se encontram em oposição uns aos outros, estão escondidas no esclarecimento ocidental por trás da aparente clareza de seus juízos. Na Crítica da Razão Pura, ao contrário, elas se exprimem na relação obscura do ego transcendental com o ego empírico e nas demais contradições não resolvidas. Os conceitos kantianos são ambíguos. A razão contém enquanto ego transcendental supra-individual a Ideia de uma convivência baseada na liberdade, na qual os homens se organizem como um sujeito universal e superem o conflito entre a razão pura e a empírica na solidariedade consciente do todo. A Ideia desse convívio representa a verdadeira universalidade, a Utopia. Mas ao mesmo tempo, a razão constitui a instância do pensamento calculador que prepara o mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma outra função senão a de preparar o objecto a partir de um mero material sensorial como material para a subjugação. A verdadeira natureza do esquematismo, que consiste em harmonizar exteriormente o universal e o particular, o conceito e a instância singular, acaba por se revelar na ciência actual como o interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da manipulação e da administração. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal, converte-se num processo reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema. O conflito entre a ciência que serve para administrar e reificar, entre o espírito público e a experiência do indivíduo, é evitado pelas circunstâncias. Os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceptual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria com a qual ele o produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente: as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. A percepção pela qual o juízo público se encontra confirmado já estava preparada por ele antes mesmo de surgir. Se é verdade que a secreta utopia contida no conceito da razão atravessava as diferenças ocasionais dos sujeitos apontando para seu interesse idêntico recalcado, por outro lado a razão, na medida em que funciona condicionada pelos fins como uma mera ciência sistemática, nivela com essas diferenças justamente o interesse idêntico. As únicas determinações válidas que ela admite são as classificações da actividade social. Ninguém é diferente daquilo em que se converteu: um membro útil, bem-sucedido ou fracassado, de grupos profissionais e nacionais. Ele é um representante qualquer de seu tipo geográfico, sociológico. A lógica é democrática, nela os grandes não têm nenhuma vantagem sobre os pequenos. Aqueles pertencem à categoria das pessoas eminentes, ao passo que estes se contam entre os objectos eventuais da assistência social. A ciência em geral não se comporta com relação a natureza e aos homens diferentemente da ciência actuarial, em particular, com relação à vida e à morte. Quem morre é indiferente, o que importa é a proporção das ocorrências relativamente às obrigações da companhia. É a lei do grande número, não o caso individual, que se repete sempre na fórmula. A concordância do universal e do particular também não está mais oculta em um intelecto que percebe cada particular tão-somente como caso do universal e o universal tão-somente como o lado do particular pelo qual ele se deixa pegar e manejar. A ciência ela própria não tem consciência de si, ela é um instrumento, enquanto o esclarecimento é a filosofia que identifica a verdade ao sistema científico. A tentativa de fundamentar essa identidade, que Kant empreendeu ainda numa intenção filosófica, levou a conceitos que, no plano científico, são destituídos de sentido, porquanto não são simples instruções em vista da manipulação segundo as regras do jogo. A ideia de uma autocompreensão da ciência contradiz a ideia da própria ciência. A obra de Kant transcende a experiência como simples operação, razão por que ela é hoje - em virtude de seus próprios princípios - renegada pelo esclarecimento como dogmática. Com a confirmação do sistema científico como figura da verdade - confirmação essa que é um resultado da obra de Kant - o pensamento sela sua própria nulidade, pois a ciência é um exercício técnico, tão afastado de uma reflexão sobre seus próprios fins como o são as outras formas de trabalho sob a pressão do sistema.

As doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho da tentativa desesperada de colocar no lugar da religião enfraquecida um motivo intelectual para perseverar na sociedade quando o interesse falha. Como autênticos burgueses, os filósofos pactuam na prática com as potências que sua teoria condena. As teorias são duras e coerentes, as doutrinas morais propagandísticas e sentimentais, mesmo quando parecem rigoristas, ou então são golpes de força consecutivos à consciência da impossibilidade de derivar a moral, como o recurso kantiano às forças éticas como um facto. Sua tentativa de derivar de uma lei da razão o dever do respeito mútuo - ainda que empreendida de maneira mais prudente do que toda a filosofia ocidental - não encontra nenhum apoio na crítica. É a tentativa usual do pensamento burguês de dar à consideração, sem a qual a civilização não pode existir, uma fundamentação diversa do interesse material e da força, sublime e paradoxal como nenhuma outra tentativa anterior, e efémera como todas elas. O burguês que deixasse escapar um lucro pelo motivo kantiano do respeito à mera forma da lei não seria esclarecido, mas supersticioso - um tolo. A raiz do optimismo kantiano, segundo o qual o agir moral é racional mesmo quando a infâmia tem boas perspectivas, é o horror que inspira a regressão à barbárie. Caso desaparecesse - escreve Kant, seguindo aqui a lição de Haller (10) - uma dessas grandes forças éticas, o amor recíproco e o respeito, "então o nada ( da imoralidade) se abriria como um abismo para tragar como uma gota d'água o reino inteiro dos seres ( morais)". Mas, segundo Kant, as forças éticas, perante a razão científica, são de facto impulsos e comportamentos não menos neutros do que as forças aéticas, nas quais se convertem tão logo deixem de se orientar para aquela possibilidade oculta, buscando a reconciliação com o poder. O esclarecimento expulsa da teoria a diferença. Ele considera as paixões "ac si quaestio de lineis, planis aut de corporibus esset" (11). A ordem totalitária levou isso muito a sério. Liberado do controle de sua própria classe, que ligava o negociante do século dezanove ao respeito e amor recíproco kantianos, o fascismo, que através de uma disciplina férrea poupa o povo dos sentimentos morais, não precisa mais observar disciplina alguma. Em oposição ao imperativo categórico e em harmonia tanto mais profunda com a razão pura, ele trata os homens como coisas, centros de comportamentos. Os dirigentes estavam dispostos a proteger o mundo burguês contra o oceano da violência aberta que realmente assolou a Europa, apenas enquanto a concentração económica ainda não havia progredido suficientemente. Antes, só os pobres e os selvagens estavam expostos à fúria dos elementos desencadeados pelo capitalismo. Mas a ordem totalitária instala o pensamento calculador em todos os seus direitos e atém-se à ciência enquanto tal. Seu cânon é sua própria eficiência sanguinária. A filosofia, da crítica de Kant à Genealogia de Nietzsche, proclamara-o; só um desenvolveu-o em todos os pormenores. A obra do marquês de Sade mostra o "entendimento sem a direcção de outrem", isto é, o sujeito burguês liberto de toda tutela.

A autoconservação é o princípio constitutivo da ciência, a alma da tábua das categorias, mesmo quando deve ser deduzida idealisticamente como em Kant. Até mesmo o ego, a unidade sintética da apercepção, a instância que Kant define como o ponto supremo a que é preciso ligar a lógica inteira (12), é na verdade, ao mesmo tempo, o produto e a condição da existência material. Os indivíduos, que têm de cuidar de si mesmos, desenvolvem o ego como a instância da visão antecipadora e da visão de conjunto reflexionantes. Ao longo das gerações, o ego se expande e se contrai com as perspectivas da autonomia económica e da propriedade produtiva. Finalmente, ele passa dos burgueses desapropriados para os donos-de-trustes totalitários, cuja ciência acabou por se reduzir ao conjunto de métodos de reprodução da sociedade de massas submetida. Sade erigiu um primeiro monumento a seu sentido de planejamento. Graças à sua inflexível organização, a conjuração dos poderosos contra o povo está tão próxima do espírito esclarecido desde Maquiavel e Hobbes quanto a república burguesa. Este espírito só é hostil à autoridade, quando ela não tem o poder de impor a obediência, e à força quando esta não é um facto. Enquanto nos abstrairmos de quem emprega a razão, ela terá tanta afinidade com a força quanto com a mediação; conforme a situação do indivíduo e dos grupos, ela faz com que a paz ou a guerra, a tolerância ou a repressão, apareçam como o melhor. Como ela desmascara nos objectivos materialmente determinados o poderio da natureza sobre o espírito, como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra, formal como é, à disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e simples órgão e se vê rebaixado à natureza. Para os governantes, porém, os homens tornam-se uma espécie de material, como o é a natureza inteira para a sociedade. Após o breve interlúdio do liberalismo, quando os burgueses mantiveram uns aos outros em xeque, a dominação revela-se como um terror arcaico sob a forma racionalizada do fascismo. "Então", diz o príncipe de Francavilla durante um sarau na corte do rei Ferdinando de Nápoles, "é pelo mais extremo terror que é preciso substituir as quimeras religiosas. Liberte-se o povo do temor a um inferno futuro, e ele se entregará em seguida, destruído o medo, a tudo. Em vez disso, substitua-se esse pavor quimérico por leis penais de uma severidade prodigiosa e que atinjam a ele apenas. Pois só ele perturba o Estado: é em sua classe apenas que nascem os descontentes. Que importa ao rico a ideia de um freio que não cai jamais sobre sua cabeça, se ele compra com essa vã aparência o direito de atormentar todos os que vivem sob seu jugo? Não encontraremos ninguém nessa classe que não permita que se imponha a ele a mais densa sombra da tirania, desde que sua realidade recaia sobre os outros" (13). A razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objectivos, seu elemento é a coordenação. Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o conhecimento e o plano, que imprime o carácter de uma inescapável funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas pausas para respiração, Sade realizou empiricamente um século antes do advento do desporto. As equipes desportivas modernas, cuja cooperação está regulada de tal sorte que nenhum membro tenha dúvidas sobre seu papel e para cada um haja um suplente a postos, encontram seu modelo exacto nos teams sexuais de Juliette, onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inactiva. No desporto, assim como em todos os ramos da cultura de massas, reina uma actividade intensa e funcional, de tal modo que só o espectador perfeitamente iniciado pode compreender a diferença das combinações, o sentido das peripécias, determinado pelas regras arbitrariamente estabelecidas. A estrutura arquitecónica própria do sistema kantiano, como as pirâmides de ginastas das orgias de Sade e os princípios das primeiras lojas maçónicas burguesas (a imagem cínica que a espelha é o rigoroso regulamento da sociedade de libertinos das 120 journées anuncia uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado. Mais do que o prazer, o que parece importar em semelhantes formalidades é o afã com que são conduzidas, a organização, do mesmo modo que em outras épocas desmitologizadas, a Roma dos Césares e do Renascimento, ou o barroco, o esquema da actividade pesava mais do que seu conteúdo. Nos tempos modernos, o esclarecimento desligou as Idéias de harmonia e perfeição de sua hipostasiação no além religioso e, sob a forma do sistema, deu-as como critérios às aspirações humanas. Depois que a utopia que instilara a esperança na Revolução francesa penetrou - potente e impotente - ao mesmo tempo na música e na filosofia alemãs, a ordem burguesa estabelecida funcionalizou completamente a razão. Ela se tornou a finalidade sem fim que, por isso mesmo, se deixa atrelar a todos os fins. Ela é o plano considerado em si mesmo. O Estado totalitário manipula as nações. Neste sentido, Sade escreve: "É preciso, replicou o príncipe, que o governo regule ele próprio a população, que ele tenha em suas mãos todos os meios de extingui-la, se ele a teme; de aumentá-la, se ele o crê necessário; e que ele não tenha jamais outra balança para sua justiça senão a de seus interesses ou de suas paixões, unicamente combinados com as paixões e os interesses daqueles que, como acabamos de dizer, receberam dele toda a porção de autoridade necessária para centuplicar a sua própria" (14). O príncipe indica o caminho trilhado desde sempre pelo imperialismo como a figura mais terrível da ratio. "…ateizai e desmoralizai incessantemente o povo que quereis subjugar; enquanto ele não adorar um deus diverso do vosso, não tiver costumes diferentes dos vossos, sereis sempre seu soberano... em compensação deixai a ele a mais extensa faculdade criminal, puni-o somente quando seus dardos se dirigirem contra vós" (15).

Como a razão não estabelece objectivos materiais, todos os aspectos estão igualmente distantes dela. Eles são puramente naturais. O princípio segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional fundamenta a verdadeira oposição entre o esclarecimento e a mitologia. A mitologia só conhece o espírito na medida em que este está imerso na natureza, como potência natural. Assim como as forças exteriores, os impulsos internos são para ela potências vivas de origem divina ou demoníaca. O esclarecimento, ao contrário, repõe toda coerência, sentido, vida, dentro da subjectividade que só vem a se constituir propriamente nesse processo de reposição. A razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância das coisas e a volatiza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades objectivas, sem excepção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua influência sobre a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse - em conformidade com sua Ideia - na única autoridade irrestrita e vazia. Toda força da natureza reduziu-se a uma simples e indiferenciada resistência ao poder abstracto do sujeito. A mitologia particular de que o esclarecimento ocidental (até mesmo sob a forma do calvinismo) teve de se desembaraçar era a doutrina católica da ordo e a religião popular pagã que continuava a viajar à sua sombra. Liberar os homens de sua influência, tal era o objectivo da filosofia burguesa. A liberação, porém, foi mais longe do que esperavam seus autores humanos. A economia de mercado que se viu desencadeada era ao mesmo tempo a forma actual da razão e a potência na qual a razão se destroçou. Os reaccionários românticos nada mais fizeram do que exprimir a experiência dos próprios burgueses, a saber, que em seu mundo a liberdade tendia à anarquia organizada. A crítica da contra-revolução católica provou que tinha razão contra o esclarecimento, assim como este tinha razão contra o catolicismo. O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo. Se todos os afectos se valem, a autoconservação - que domina de qualquer modo a figura do sistema - parece constituir a fonte mais provável das máximas de acção. É ela que viria a ser liberada no mercado livre. Os escritores sombrios dos primórdios da burguesia, como Maquiavel, Hobbes, Mandeville, que foram os porta-vozes do egoísmo do eu, reconheceram por isso mesmo a sociedade como o princípio destruidor e denunciaram a harmonia, antes que ela fosse erigida em doutrina oficial pelos autores luminosos, os clássicos. Aqueles louvaram a totalidade da ordem burguesa porque viam nela o horror que, ao fim e ao cabo, tragava a ambos, o universal e o particular, a sociedade e o eu. Com o desenvolvimento do sistema económico, no qual o domínio do aparelho económico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela razão, que é o instinto objectualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Estes dois poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o procedimento sem erro e sem conteúdo. Mas a utopia que anunciava a reconciliação da natureza e do eu surgiu com a vanguarda revolucionária de seu esconderijo na filosofia alemã, e se apresentou, de um modo ao mesmo tempo racional e irracional, como a Ideia de uma associação de homens livres, atraindo para si toda a fúria da ratio. Na sociedade tal como ela é, a autoconservação permanece livre da utopia denunciada como mito, apesar das pobres tentativas moralistas de propagar a humanidade como o mais racional dos meios. Para os dirigentes, a forma astuciosa da autoconservação é a luta pelo poder fascista e, para os indivíduos, é a adaptação a qualquer preço à injustiça. A razão esclarecida é tão incapaz de encontrar uma medida para graduar um instinto em si mesmo e relativamente aos demais, como para ordenar o universo em esferas. Muito acertadamente, ela desmascarou a concepção de uma hierarquia na natureza como um reflexo da sociedade medieval, e as tentativas posteriores de comprovar uma hierarquia de valores nova e objectiva trazem na testa o estigma da mentira. O irracionalismo que se denuncia nessas reconstruções vazias está muito longe de resistir à ratio industrial. Se a grande filosofia, representada por Leibniz e Hegel, descobrira também uma pretensão de verdade nas manifestações subjectivas e objectivas que ainda não são pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte) , o irracionalismo, de seu lado, isola o sentimento, assim como a religião e a arte, de tudo o que merece o nome de conhecimento, e nisso como em outras coisas revela seu parentesco com o positivismo moderno, a escória do esclarecimento. Ele limita, é verdade, a fria razão em proveito da vida imediata, convertendo, porém, a vida num princípio hostil ao pensamento. Sob a aparência dessa hostilidade, o sentimento e, no final das contas, toda expressão humana e, inclusive, a cultura em geral são subtraídos à responsabilidade perante o pensamento, mas por isso mesmo se transformam no elemento neutralizado da ratio universal do sistema económico que há muito se tornou irracional. Desde o início, ela não pôde se fiar unicamente em sua força de atracção e teve que complementá-la com o culto dos sentimentos. Mas quando ela conclama aos sentimentos, ela se volta contra seu próprio meio, o pensamento, que também foi sempre suspeito para ela, a razão auto-alienada. A efusão que os ternos amantes exibem no filme já tem o efeito de um golpe assestado contra a teoria impassível, mas ela se prolonga na argumentação sentimental contra o pensamento que ataca a injustiça. Quando os sentimentos são erigidos assim em ideologia, o desprezo a que estão submetidos na realidade não fica superado. O facto de que, comparados à altura sideral a que a ideologia os transporta, apareçam sempre como demasiado vulgares ajuda também a proscrevê-los. O veredicto sobre os sentimentos já estava implícito na formalização da razão. A autoconservação continua a ter, enquanto instinto natural e como os demais impulsos, uma má consciência. Só a actividade industriosa e as instituições que devem servir a ela - isto é, a mediação que conquistou autonomia, o aparelho, a organização, o sistemático - gozam, tanto no conhecimento quanto na prática, da reputação de serem racionais. As emoções estão inseri das nisso.

O esclarecimento dos tempos modernos esteve desde o começo sob o signo da radicalidade: é isso que o distingue de toda etapa anterior da desmitologização. Quando uma nova forma de vida social surgia na história universal juntamente com uma nova religião e uma nova mentalidade, derrubavam-se os velhos deuses, juntamente com as velhas classes, tribos e povos. Mas é sobretudo quando um povo, os judeus por exemplo, era arrastado por seu próprio destino para uma nova forma de vida social, que os antigos e amados costumes, as acções sagradas e os objectos de veneração, se viam como que por encanto transformados em crimes nefandos e espectros medonhos. Os medos e as idiossincrasias actuais, os traços do carácter escarnecidos e detestados, podem ser interpretados como marcas de progressos violentos ao longo do desenvolvimento humano. Do nojo dos excrementos e da carne humana até o desprezo do fanatismo, da preguiça, da pobreza material e espiritual, vemos desenrolar-se uma linha de comportamentos que, de adequados e necessários, se converteram em condutas execráveis. Essa linha é ao mesmo tempo a da destruição e a da civilização. Cada passo foi um progresso, uma etapa do esclarecimento. Mas, enquanto todas as mudanças anteriores (do préanimismo à magia, da cultura matriarcal à patriarcal, do politeísmo dos escravocratas à hierarquia católica) colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas (o deus dos exércitos no lugar da Grande Mãe, a adoração do cordeiro no lugar do totem) , toda forma de devotamento que se considerava objectiva, fundamentada na coisa, dissipava-se à luz da razão esclarecida. Todos os vínculos dados previamente sucumbiam assim ao veredicto que impunha o tabu, sem excluir aqueles que eram necessários para a existência da própria ordem burguesa. O instrumento com o qual a burguesia chegou ao poder - o desencadeamento das forças, a liberdade universal, a autodeterminação, em suma, o esclarecimento - voltava-se contra a burguesia tão logo era forçado, enquanto sistema da dominação, a recorrer à opressão. Obedecendo a seu próprio princípio, o esclarecimento não se detém nem mesmo diante do mínimo de fé sem o qual o mundo burguês não pode subsistir. Ele não presta à dominação os serviços confiáveis que as antigas ideologias sempre lhe prestaram. Sua tendência anti-autoritária - que apenas subterraneamente, é verdade, se comunica com a utopia implícita no conceito de razão - acaba por torná-la tão hostil à burguesia estabelecida quanto à aristocracia, da qual aliás logo se tornou também uma aliada. O princípio anti-autoritário acaba tendo que se converter em seu próprio contrário, numa instância hostil à própria razão: ele elimina tudo aquilo que é intrinsecamente obrigatório, e essa eliminação permite à dominação decretar e manipular soberanamente as obrigações que lhe são adequadas em cada caso. Depois de proclamar a virtude burguesa e a filantropia, para as quais já não tinha boas razões, a filosofia também proclamou como virtudes a autoridade e a hierarquia, quando estas há muito já haviam se convertido em mentiras graças ao esclarecimento. Mas o esclarecimento não possuía argumentos nem mesmo contra semelhante perversão de si mesmo, pois a pura verdade não goza de nenhum privilégio em face da distorção, a racionalização em face da ratio, se não tem nenhum privilégio prático a exibir em seu favor. Com a formalização da razão, a própria teoria, na medida em que pretende ser mais do que um símbolo para procedimentos neutros, converte-se num conceito ininteligível, e o pensamento só é aceito como dotado de sentido após o abandono do sentido. Atrelado ao modo de produção dominante, o esclarecimento, que se empenha em solapar a ordem tornada repressiva, dissolve-se a si mesmo. Isso ficou manifesto já nos primeiros ataques que o esclarecimento corrente empreendeu contra Kant, o "triturador universal". Do mesmo modo que a filosofia moral de Kant limitou sua crítica esclarecedora para salvar a possibilidade da razão, assim também, inversamente, o pensamento esclarecido mas irreflectido empenhou-se sempre, por uma questão de autoconservação, em superar-se a si mesmo no cepticismo, a fim de abrir espaço suficiente para a ordem existente.

A obra de Sade, como a de Nietzsche, forma ao contrário a crítica intransigente da razão prática, comparada à qual a obra do "triturador universal" aparece como uma revogação de seu próprio pensamento. Ela eleva o princípio cientificista a um grau aniquilador. Kant, todavia, já expurgara a lei moral em mim de toda fé heteronómica, e isso há tanto tempo que o respeito por suas asseverações se tornaram um mero facto natural psicológico, como é um facto natural físico o céu estrelado sobre mim. "Um factum da razão", como ele próprio o chama (16), "un instinct général de société", como o denomina Leibniz. (17) Mas os factos não valem nada quando não estão dados. Sade não nega sua ocorrência. Justine, a boa dentre as duas irmãs, é uma mártir da lei moral. Juliette, porém, tira as consequências que a burguesia queria evitar: ela amaldiçoa o catolicismo, no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a civilização em geral. As energias ligadas ao sacramento são redirecionadas para o sacrilégio. Essa inversão, porém, é transferida pura e simplesmente à comunidade. Em tudo isso, Juliette não procede de modo algum com o fanatismo dos católicos em face dos incas. Ela apenas se dedica esclarecidamente, diligentemente, à faina do sacrilégio, que os católicos também têm no sangue desde tempos arcaicos. Os comportamentos proto-históricos que a civilização declarara tabu e que haviam se transformado sob o estigma da bestialidade em comportamentos destrutivos, continuaram a levar uma vida subterrânea. Juliette não os pratica mais como comportamentos naturais, mas proibidos por um tabu. Ela compensa o juízo de valor contrário, sem fundamento na medida em que nenhum juízo de valor tem fundamento, pelo seu oposto. Assim, quando repete as reacções primitivas, já não são mais as primitivas, mas as bestiais. Juliette, e nisso ela não é diferente do Merteuil de Liaisons Dangereuses (18), não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não-sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência, e maneja excelentemente o órgão do pensamento racional. No que concerne ao autodomínio, suas instruções estão para as de Kant, às vezes, assim como a aplicação especial está para o princípio. " A virtude", diz Kant (19), "na medida em que está fundada na liberdade interior, também contém para os homens um mandamento afirmativo, que é o de submeter todos os seus poderes e inclinações ao seu poder (da razão), por conseguinte o mandamento do domínio de si mesmo, que se acrescenta à proibição de deixar-se dominar por suas emoções e inclinações (o dever da apatia) : porque, se a razão não toma em mãos as rédeas do governo, aquelas agem sobre os homens como se fossem seus amos." Juliette disserta sobre a autodisciplina do criminoso. "Primeiro, imagine seu plano com vários dias de antecedência, reflicta sobre todas as consequências, examine com atenção o que poderá lhe ser útil... o que seria susceptível de traí-la, e pese essas coisas com o mesmo sangue-frio como se tivesse a certeza de ser descoberta" (20). A fisionomia do assassino deve revelar a maior calma. "... faça reinar nela a calma e a indiferença e trate de adquirir o maior sangue-frio possível nessa situação... se você não tivesse a certeza de não ter nenhum remorso, e jamais a terá senão pelo hábito do crime, se, eu dizia, você não tivesse a inteira certeza disso, em vão você trabalharia para se tornar senhora do jogo de sua fisionomia" (21). A liberdade de remorsos é tão essencial para a razão formalista quanto a do amor ou do ódio. O arrependimento apresenta como existente o passado que a burguesia, ao contrário da ideologia popular, sempre considerou como um nada; ele é a recaída, e sua única justificativa perante a práxis burguesa seria preveni-la. Ou como diz Spinoza seguindo os estóicos: "poenitentia virtus non est, sive ex ratione non oritur, sed is, quem pacti poenitet, bis miser seu impotens est". (22) Ele acrescenta imediatamente, porém, bem no espírito do príncipe de Francavilla, o seguinte: "terret vulgus, nisi metuat" (23) e opina por isso como bom maquiavelista que a humildade e o arrependimento assim como o medo e a esperança, apesar de toda sua irracionalidade, seriam bastante úteis. " A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude", diz Kant (24), distinguindo essa "apatia moral" (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude. "Tal é o estado de saúde na vida moral; ao contrário, a emoção, mesmo quando é excitada pela representação do bem, é uma brilhante e instantânea aparição que deixa atrás de si a lassidão" (25). A amiga de Juliette, Clairwil constata o mesmo do vício. "Minha alma é dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível à feliz apatia de que desfruto. Ó Juliette, ... tu te enganas talvez sobre essa sensibilidade perigosa de que se orgulham tantos imbecis" (26). A apatia surge nos momentos decisivos da história burguesa, e mesmo da antiguidade, quando os pauci beati (27), em face da força superior da tendência histórica, se dão conta da própria impotência. Ela assinala o recuo da espontaneidade individual-humana para a esfera privada, que só então logra se constituir, assim como a autêntica forma de vida burguesa. O estoicismo - e é nisto que consiste a filosofia burguesa - torna mais fácil para os privilegiados, em face dos sofrimentos dos outros, enfrentar as ameaças a si próprios. Ele preserva o universal, elevando a vida privada ao nível de um princípio para se proteger dele. A esfera privada do burguês é o património cultural decaído da classe superior.

O credo de Juliette é a ciência. Ela abomina toda veneração cuja racionalidade não se possa demonstrar: a fé em Deus e em seu filho morto, a obediência aos dez mandamentos, a superioridade do bem sobre o mal, da salvação sobre o pecado. Ela se vê atraída pelas reacções proscritas pelas lendas da civilização. Ela opera com a semântica e com a sintaxe lógica como o mais moderno positivismo, mas diferentemente desse empregado da mais nova administração, ela não dirige sua crítica linguística de preferência contra o pensamento e a filosofia, mas, filha que é do esclarecimento militante, contra a religião. "Um Deus morto!" diz ela de Cristo (28), "nada é mais cómico do que essa incoerência do dicionário católico: Deus, quer dizer eterno; morto, quer dizer não eterno. Cristãos imbecis, o que quereis fazer com vosso Deus morto?" A transformação do que é condenado sem prova científica em algo digno de ser ambicionado, bem como do que é reconhecido sem base em provas em objecto da abominação, a transvaloração dos valores, "a coragem para o proibido" (29) sem o traiçoeiro "vamos!" de Nietzsche, sem o seu idealismo biológico, eis aí sua paixão específica. "Serão precisos pretextos para cometer um crime?" exclama a princesa Borghese, sua boa amiga, bem em seu espírito (30). Nietzsche proclama a quintessência de sua doutrina (31). "Os fracos e os malformados devem perecer: primeira proposição de nossa filantropia. E convém ainda ajudá-los a isso. O que é mais prejudicial do que qualquer vício - a compaixão activa por todos os malformados e fracos - o cristianismo..." (32) A religião cristã, "singularmente interessada em domar os tiranos e reduzi-los a princípios de fraternidade ... desempenha aqui o papel do fraco; ela o representa, ela deve falar como ele... e devemos estar persuadidos de que esse laço [de fraternidade -trad.] foi, na verdade, proposto pelo fraco, foi sancionado por ele quando a autoridade sacerdotal encontrou-se por acaso em suas mãos" (33). É isso que Noirceuil, o mentor de Juliette, contribui à genealogia da moral. Maldosamente Nietzsche celebra os poderosos e sua crueldade exercida "para fora, onde começa a terra alheia", quer dizer, perante tudo o que não pertence a eles próprios. "Eles gozam aí da liberdade de toda coerção social, eles buscam nas regiões selvagens uma compensação para a tensão provocada por um longo encerramento e clausura na paz da comunidade, eles retornam à inocência moral do animal de rapina, como monstros a se rejubilar, talvez saindo de uma série horrorosa de assassinatos, incêndios, estupros, torturas, com a insolência e a serenidade de quem cometeu apenas uma travessura de estudantes, convencidos de que os poetas terão agora e por muito tempo algo a cantar e a celebrar... Essa 'audácia' de raças nobres, louca, absurda, súbita, tal como se exprime, o próprio carácter imprevisível e improvável de seus empreendimentos… sua indiferença e desprezo por segurança, corpo, vida, conforto, sua terrível jovialidade e a profundidade do prazer em destruir, do prazer que se tira de todas as volúpias da vitória e da crueldade" (34), essa audácia, que Nietzsche proclama, também arrebatou Juliette. "Viver perigosamente" é também sua mensagem: " ... oser tout dorénavant sans peur" (35). Há os fracos e os fortes, há classes, raças e nações que dominam e há as que se deixaram vencer. "Onde está", exclama o senhor de Verneuil (36), "o mortal que seria idiota o bastante para assegurar contra toda evidência que os homens nascem iguais de direito e de facto! Coube a um misantropo como Rousseau formular semelhante paradoxo, pois, extremamente fraco como era, queria rebaixar à sua altura aqueles à altura dos quais não conseguia se elevar. Mas que imprudência, pergunto eu, podia autorizar esse pigmeu de quatro pés e duas polegadas a se comparar à estatura que a natureza dotou da força e do aspecto de um Hércules? Não é como se a mosca tentasse se assemelhar aos elefantes? Força, beleza, estatura, eloquência: nos primórdios da sociedade, essas virtudes eram determinantes quando a autoridade passou para as mãos dos dominantes". – "Exigir da força", continua Nietzsche (37), "que ela não se manifeste como força, que ela não seja uma vontade de vencer, abater e dominar, que ela não seja uma sede de inimigos, resistência e triunfos, é um contra-senso tão grande quanto exigir da fraqueza que ela se manifeste como a força". – "Como é que o senhor quer", diz Verneuil, (38) "que aquele que recebeu da natureza a máxima disposição para o crime, seja pela superioridade de suas forças e a fineza de seus órgãos, seja pela educação condizente com seu estado ou suas riquezas; como é que o senhor quer, repito, que esse indivíduo seja julgado em conformidade com a mesma lei como aquele que tudo incita à virtude e à moderação? Seria mais justa a lei se ela punisse os dois homens da mesma maneira? Será natural que o homem a quem tudo convida a fazer o mal seja tratado como o homem que tudo impele a se comportar com prudência"? Depois que a ordem objectiva da natureza foi posta de lado a título de prejuízo e mito, só restou a natureza enquanto massa de matéria. Nietzsche não admite nenhuma lei "que não apenas conheçamos, mas também reconheçamos sobre nós" (39). Se o entendimento, formado segundo a norma da autoconservação, percebe uma lei da vida, esta lei é a lei do mais forte. Mesmo que o formalismo da razão a impeça de proporcionar à humanidade um modelo necessário, ela tem sobre a ideologia mentirosa a vantagem da factualidade. Os culpados, eis aí a doutrina de Nietzsche, são os fracos, eles iludem com sua astúcia a lei natural. "O grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os 'predadores'. São os desgraçados, os vencidos, os destruídos de antemão - são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida e nos homens" (40). Eles difundiram o cristianismo no mundo, que Nietzsche não abomina e odeia menos do que Sade. " ... na verdade, não são as represálias do fraco contra o forte que estão na natureza; elas aí estão no moral, mas não no físico, já que, para empregar essas represálias, é preciso que ele use forças que não recebeu, é preciso que adopte um carácter que não lhe é dado, que ele constranja de alguma maneira a natureza. Mas o que, verdadeiramente, está nas leis dessa mãe sábia é a lesão do fraco pelo forte, já que, para chegar a esse procedimento, ele não faz senão usar os dons que recebeu. Ele não precisa se revestir, como o fraco, de um carácter diferente do seu: ele só coloca em acção os efeitos do carácter que recebeu da natureza. Por isso, tudo o que daí resulta é natural: sua opressão, suas violências, suas crueldades, suas tiranias, suas injustiças, ... são, pois, puras como a mão que as gravou; e quando ele usa de todos os seus direitos para oprimir o fraco, para despojá-lo, não faz senão a coisa mais natural do mundo... Não tenhamos, pois, escrúpulos quanto ao que podemos tomar do fraco, pois não somos nós que cometemos o crime, é a defesa ou a vingança do fraco que caracteriza o crime" (41). Quando o fraco se defende, ele comete pois uma injustiça, a saber, a injustiça "de sair do carácter que a natureza imprimiu nele: ela criou-o para ser escravo e pobre, ele não quer submeter-se a isso, eis aí sua falta" (42). Nesses discursos magistrais, Dorval, o cabeça de uma respeitável gangue parisiense, desenvolve perante Juliette o credo secreto de todas as classes dominantes, que Nietzsche censurou, acrescido da psicologia do ressentimento, aos seus contemporâneos. Como Juliette ele admira "a terrível beleza do crime" (43) ainda que, professor alemão que é, se distinga de Sade por desaprovar o criminoso porque seu egoísmo "se dirige e se restringe a metas tão baixas. Se as metas são grandiosas, a humanidade usa um outro padrão e não avalia como tal o 'crime', nem mesmo os meios mais terríveis" (44). Desse preconceito favorável ao que é grande, que de facto caracteriza o mundo burguês, ainda está livre a esclarecida Juliette. Para ela, o escroque não é menos simpático do que o ministro simplesmente porque suas vítimas são em menor número. Para o alemão, porém, a beleza provém do alcance do acto; ele não consegue se livrar, em meio a todo o crepúsculo dos ídolos, do costume idealista de querer enforcar o pequeno ladrão e transformar os assaltos imperialistas em missões histórico-universais. Ao erigir o culto da força em doutrina histórico-universal, o fascismo alemão reduziu-o ao mesmo tempo ao absurdo que o caracteriza. Enquanto protesto contra a civilização, a moral dos senhores defendeu indirectamente os oprimidos: o ódio pelos instintos atrofiados denuncia objectivamente a verdadeira natureza do mestre disciplinador, que só se manifesta em suas vítimas. Mas enquanto grande potência e religião do Estado, a moral dos senhores entrega-se definitivamente aos civilizatórios powers that be (45), à maioria compacta, ao ressentimento e a tudo aquilo a que antes se opunha. É a realização das próprias ideias que refuta Nietzsche e ao mesmo tempo libera nele a verdade que, apesar de toda afirmação da vida, era hostil ao espírito da realidade.

Se o arrependimento já era considerado como contrário à razão, a compaixão é o pecado pura e simplesmente. Quem cede a ela "perverte a lei universal: donde resulta que a piedade, longe de ser uma virtude, se torna um verdadeiro vício tão pronto ela nos leva a interferir com uma desigualdade prescrita pelas leis da natureza" (46). Sade e Nietzsche viram que, após a formalização da razão, a compaixão subsistia por assim dizer como a consciência sensível da identidade do universal e do particular, como a mediação naturalizada. Ela constitui o preconceito mais compulsivo, "quamvis pietatis specimen prae se ferre videatur", como diz Spinoza (47), "pois quem não é levado a ajudar os outros nem pela razão, nem pela compaixão é com razão chamado desumano". (48) A commiseratio é a humanidade em sua figura imediata, mas ao mesmo tempo "mala et inutilis" (49), a saber, o contrário do valor viril que, da virtus romana passando pelos Medicis até a efficiency da família Ford, foi sempre a única virtude verdadeiramente burguesa. Efeminada e infantil, eis como Clairwil chama a compaixão, jactando-se de seu "estoicismo", do "repouso das paixões", que lhe permite tudo "fazer e tudo aguentar sem emoção" (50). "... a piedade, longe de ser uma virtude, não é senão uma fraqueza nascida do temor e do infortúnio, fraqueza que é preciso absorver, sobretudo quando nos empenhamos em embotar uma excessiva sensibilidade incompatível com as máximas da filosofia " (51). É das mulheres que provêm "as explosões de ilimitada compaixão" (52). Sade e Nietzsche sabiam que sua doutrina da pecaminosidade da compaixão era uma velha herança burguesa. Este aponta para todas as "épocas fortes", para as "civilizações superiores", aquele para Aristóteles (53) e os peripatéticos (54). A compaixão não resiste à filosofia, e o próprio Kant não constituiu excepção. Para Kant, ela é "uma certa sentimentalidade" e não teria "em si a dignidade da virtude" (55). Ele não vê, porém, que o princípio da "benevolência universal para com a raça humana" (56), pelo qual tenta substituir, em oposição ao racionalismo de Clairwil, a compaixão, incorre na mesma maldição da irracionalidade lançada sobre essa "paixão bondosa" que pode facilmente tentar o homem a se tornar "um ocioso sentimental". O esclarecimento não se deixa enganar; nele o facto universal não tem nenhum privilégio sobre o facto particular, nem o amor sem limites" sobre o amor limitado. A compaixão é suspeita. Como Sade, Nitezsche também recorre à ars poetica para uma avaliação crítica. "Segundo Aristóteles os gregos sofriam frequentemente de um excesso de compaixão: daí a necessidade da descarga através da tragédia. Vemos assim como essa inclinação lhes parecia suspeita. Ela é perigosa para o Estado, tira a necessária dureza e rigor, faz com que os heróis se comportem como mulheres em prantos etc." (57) Zaratustra prega: "Vejo tanta bondade, tanta fraqueza. Tanta justiça e compaixão, tanta fraqueza" (58). De facto, a compaixão tem um aspecto que não se coaduna com a justiça, com a qual porém Nietzsche a confunde. Ela confirma a regra da desumanidade através da excepção que ela pratica. Ao reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria abrandar, como algo inalterável. Certamente, o compassivo defende como indivíduo a pretensão do universal - a saber, de viver - contra o universal, contra a natureza e a sociedade que a recusam. Mas a unidade com o universal, entendida como interioridade, que o indivíduo pratica, revela-se como falaciosa em sua própria fraqueza. Não é a moleza, mas o aspecto limitador da compaixão, que a torna questionável, ela é sempre insuficiente. Do mesmo modo que a apatia estóica ( que serve para adestrar a frieza burguesa, o contrário da compaixão) conservou melhor do que a vulgaridade participativa, que se adaptou ao todo, a mísera lealdade ao universal de que se afastara, assim também aqueles que desmascararam a compaixão declararam-se negativamente pela revolução. As deformações narcísicas da compaixão, como os sentimentos sublimes do filantropo e a arrogância moral do assistente social, são a confirmação interiorizada da diferença entre ricos e pobres. Todavia, o facto de que a filosofia divulgou imprudentemente o prazer proporcionado pela dureza, colocou-o à disposição daqueles que menos lhe perdoam a confissão. Os fascistas que dominaram o mundo traduziram o horror pela compaixão no horror pela indulgência política e no recurso à lei marcial, no que se uniram a Schopenhauer, o metafísico da compaixão. Este considerava a esperança de instituir a humanidade como a loucura temerária daqueles cuja única esperança é a infelicidade. Os inimigos da compaixão não queriam identificar o homem com a infelicidade, cuja existência era, para eles, uma vergonha. Sua delicada impotência não tolerava que o homem fosse objecto de lamentações. Desesperada, ela se converteu no louvor da potência que, no entanto, renegavam na prática sempre que se oferecia a eles.

A bondade e a beneficência tornam-se pecado, a dominação e a opressão virtude. "Todas as coisas boas foram outrora coisas ruins; todo pecado original transformou-se numa virtude original" (59). Juliette leva-o a sério também agora, na nova época; pela primeira vez ela procede de maneira consciente à transvaloração. Uma vez destruídas todas as ideologias, ela adopta como moral pessoal aquilo que a cristandade considerava execrável na ideologia, embora nem sempre na prática. Como boa filósofa, ela permanece, ao fazer isso, fria e reflectida. Tudo se passa sem ilusões. Quando Clairwil lhe propõe cometer um sacrilégio, ela dá a seguinte resposta: " A partir do momento em que não cremos em Deus, minha cara, as profanações que desejas nada mais são do que criancices absolutamente inúteis... talvez eu seja mais segura do que tu; meu ateísmo está no auge. Não imagines, portanto, que eu tenha necessidade, para me fortalecer, das criancices que me propões; estou pronta a executá-las, já que te agradam, mas como simples divertimentos" - a assassina americana Annie Henry teria dito: just for fun (60) – "e jamais como uma coisa necessária, seja para fortificar minha maneira de pensar, seja para convencer os outros" (61). Transfigurada por um efémero impulso de benevolência para com a cúmplice, ela deixa que seus princípios prevaleçam. Até mesmo a injustiça, o ódio e a destruição tornam-se uma actividade maquinal depois que, devido à formalização da razão, todos os objectivos perderam, como uma miragem, o carácter da necessidade e objectividade. A magia transfere-se para o mero fazer, para o meio, em suma, para a indústria. A formalização da razão é a mera expressão intelectual do modo de produção maquinal. O meio é fetichizado: ele absorve o prazer. Assim como o esclarecimento transformava teoricamente em ilusões os objetivos com que se adornava a antiga dominação, assim também ele os priva, com a possibilidade da abundância, de seu fundamento prático. A dominação sobrevive como fim em si mesmo, sob a forma do poder económico. O gozo já parece algo de antiquado, irrealista, como a metafísica que o proibia. Juliette fala sobre os motivos do crime (62). Ela própria não é menos ávida de honrarias e dinheiro do que seu amigo Sbrigani, mas ela idolatra o proibido. Sbrigani, que é um homem dos meios e do dever, é mais avançado: "O que importa é nos enriquecer, e nós nos tornamos gravemente culpados se não atingimos essa meta; só quando estamos bem adiantados no caminho da riqueza podemos nos permitir colher os prazeres: até aí, é preciso esquecê-los". Apesar de toda superioridade racional, Juliette conserva ainda uma superstição. Ela reconhece a ingenuidade do sacrilégio, mas acaba por tirar prazer dele. Todo gozo, porém, deixa transparecer uma idolatria: ele é o abandono de si mesmo a uma outra coisa. A natureza não conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a satisfação da necessidade. Todo prazer é social, quer nas emoções não sublimadas quer nas sublimadas, e tem origem na alienação. Mesmo quando o gozo ignora a proibição que transgride, ele tem sempre por origem a civilização, a ordem fixa, a partir da qual aspira retornar à natureza, da qual aquela o protege. Os homens só sentem a magia do gozo quando o sonho, liberando-os da compulsão ao trabalho, da ligação do indivíduo a uma determinada função social e finalmente a um eu, leva-os de volta a um passado pré-histórico sem dominação e sem disciplina. É a nostalgia dos indivíduos presos na civilização, o "desespero objectivo" daqueles que tiveram que se tornar em elementos da ordem social, que alimenta o amor pelos deuses e demónios; era para estes, enquanto natureza transfigurada, que eles se voltavam na adoração. O pensamento tem origem no processo de liberação dessa natureza terrível, que acabou por ser inteiramente dominada. O gozo é por assim dizer sua vingança. Nele os homens se livram do pensamento, escapam à civilização. Nas sociedades mais antigas, os festivais possibilitavam este retorno à natureza como um retorno em comum. As orgias primitivas são a origem colectiva do gozo. "Esse intervalo de universal confusão que constitui a festa", diz Roger Caillois, "aparece assim como o espaço de tempo em que a ordem do mundo está suspensa. Eis por que todos os excessos são então permitidos. O que importa é agir contra as regras. Tudo deve ser feito ao contrário. Na época mítica, o curso do tempo estava invertido: nascia-se velho, morria-se criança... Assim, todas as prescrições que protegem a boa ordenação natural e social são então sistematicamente violadas" (63). As pessoas se abandonam às potências transfiguradas da origem; mas, do ponto de vista da suspensão da proibição, esse modo de agir tem o carácter do excesso e do desvario (64). É só com o progresso da civilização e do esclarecimento que o eu fortalecido e a dominação consolidada transformam o festival em simples farsa. Os dominadores apresentam o gozo como algo racional, como tributo à natureza não inteiramente domada; ao mesmo tempo procuram torná-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e finalmente, na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam dosá-lo para os dominados. O gozo torna-se objecto da manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados. O processo se desenvolve do festival primitivo até as férias. "Quanto mais se acentua a complexidade do organismo social, menos ela tolera a interrupção do curso ordinário da vida. É preciso que tudo continue hoje como ontem e amanhã como hoje. A efervescência geral não é mais possível. O período de turbulência individualizou-se. As férias sucedem à festa." (65) No regime fascista, elas são complementadas pela falsa euforia colectiva produzida pelo rádio, pelos slogans e pela benzedrina. Sbrigani tem um certo pressentimento disso. Ele se permite algum divertimento "sur la route de la fortune", a título de férias. Juliette, ao contrário, simpatiza com o Ancien Régime. Ela diviniza o pecado. Sua libertinagem está sob a ascendência do catolicismo, assim como o êxtase da freira sob o signo do paganismo.

Nietzsche sabe que todo gozo tem um carácter mítico. Abandonando-se à natureza, o gozo abdica do que seria possível, assim como a compaixão renuncia à mudança do todo. Ambos contêm um elemento de resignação. Nietzsche detecta-o em todos os cantos, como o gozo de si mesmo na solidão, como o prazer masoquista nas depressões do autotorturador. "Contra todos os que se contentam em gozar!" (66) Juliette procura salvá-lo recusando o amor abnegado, o amor burguês que, enquanto resistência à inteligência da burguesia, é característico de seu último século. No amor, o gozo estava associado à divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo. Na adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a amada, o que se repetia sempre era a transfigura da efectiva servidão da mulher. Com base no reconhecimento dessa servidão, os sexos voltavam sempre a se reconciliar: a mulher parecia assumir livremente a derrota, o homem conceder-lhe a vitória. O cristianismo transfigurou no casamento, como união dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao carácter feminino pela ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal. Na sociedade industrial, o amor é facturado. A ruína da propriedade média e o desaparecimento do sujeito económico livre afectam a família: ela não é mais a célula da sociedade, outrora tão celebrada, já que não constitui mais a base da vida económica do burguês. Os adolescentes não têm mais a família como seu horizonte, a autonomia do pai desaparece e com ela a resistência a sua autoridade. Antes, a servidão na casa paterna acendia na moça a paixão que parecia levar à liberdade, ainda que esta não se realizasse nem no casamento nem em nenhum outro lugar. Mas, ao mesmo tempo que se abre para a moça a possibilidade do job (67), fecham-se para ela as perspectivas do amor. Quanto mais universalmente o sistema industrial moderno exige de cada um que se deixe assalariar, mais se acentua a tendência a transformar os que não foram engolfados neste mar do white trash (68), em que se converteu o trabalho e o desemprego não-qualificados, no pequeno especialista, obrigado a cuidar de sua própria vida. Sob a forma do trabalho qualificado, a autonomia do empresário - que já pertence ao passado - torna-se característica de todos os que são admitidos no processo de produção e assim também da mulher "profissional". O respeito próprio das pessoas cresce proporcionalmente a sua fungibilidade. A oposição à família não é mais uma audácia, do mesmo modo que o namoro com o boy-friend (69) tampouco é o paraíso na terra. As pessoas assumem em face das outras aquela relação racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido de Juliette. O espírito e o corpo são separados na realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de burgueses indiscretos. "De novo, parece-me" -decreta Noirceuil como bom racionalista (70) - "que é uma coisa muito diferente amar e gozar... Pois os sentimentos de ternura correspondem às relações de humor e de conveniências, mas não se devem de modo algum à beleza de um colo ou ao bonito torneado dos quadris; e esses objectos que, segundo o gosto de cada um, podem excitar vivamente as afecções físicas, não têm, porém, parece-me, o mesmo direito às afecções morais. Para completar minha comparação, Bélize é feia, tem quarenta anos, sua pessoa não tem a menor graça, não tem um só traço regular, um único atractivo; mas Bélize tem espírito, um carácter delicioso, um milhão de coisas que se encadeiam com meus sentimentos e meus gostos; não tenho nenhum desejo de me deitar com Bélize, - mas nem por isso eu a amarei menos loucamente; desejarei fortemente ter Araminthe, mas eu a detestarei cordialmente tão logo a febre do desejo houver passado..." A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é considerado como disfarce, racionalização do instinto físico, "uma falsa e sempre perigosa metafísica" (71), como explica o conde de Belmor em seu grande discurso sobre o amor. Apesar de toda a libertinagem, os amigos de Juliette atribuem à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho excessivo, mas também um carácter excessivamente inócuo. A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como factos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por exemplo, o acto sexual dos selvagens australianos. A separação é abstracta. A metafísica falsifica, ensina Belmor, os factos, ela impede de ver o amado como ele é, ela nasce da magia, ela é um véu. "E eu não o arranco! É fraqueza... pusilanimidade. Vamos analisar, após o gozo, esta deusa que me cegava antes." (72) O próprio amor é um conceito não-científico: " ... as definições erróneas nos induzem sempre em erro", explica Dolmance no memorável 5º diálogo da Philosophie dans le Boudoir, "não sei o que é isto, o coração. Este é um nome que dou apenas à fraqueza do espírito" (73). "Passemos um momento, como Lucrécio diz aos "bastidores da vida" (74), isto é, à análise "e veremos que nem a exaltação da amante nem o sentimento romântico resiste à análise… é o corpo apenas que amo e é o corpo apenas que lamento embora possa reencontrá-lo a qualquer instante". O que é verdadeiro nisso tudo é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso. Através dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor é atacado em seu núcleo. Quando Juliette faz do louvor da sexualidade genital e perversa uma crítica do não-natural, do imaterial, do ilusório, a libertina já passou ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a felicidade mais celestial, mas também a mais terrena. O devasso sem ilusões que Juliette defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e à terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua fé no desporto e na higiene. A crítica de Juliette é dividida como o próprio esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos.

"O entusiasmo ridículo, que nos consagrou a um indivíduo determinado e a ele só, a exaltação da mulher no amor, leva-nos de volta, para além do cristianismo, à sociedade matriarcal". " ... é certo que nosso espírito de galanteria cavalheiresca, que ridiculamente presta homenagem a um objecto feito tão-somente para nossas necessidades, é certo, repito, que esse espírito nasce do antigo respeito que nossos ancestrais tinham outrora pelas mulheres, em razão do ofício de profetisas que exerciam nas cidades e nos campos: por medo, passamos do respeito ao culto, e a galanteria nasceu no seio da superstição. Mas esse respeito não esteve jamais na natureza, seria perda de tempo buscá-lo aí. A inferioridade desse sexo relativamente ao nosso está suficientemente bem estabelecida para que jamais possa excitar em nós um motivo sólido para respeitá-lo, e o amor que nasce desse respeito cego, não passa de um preconceito como ele próprio". (75) É na violência, por mais que ela se esconda sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social. A dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade. A civilização cristã - que permitiu que a ideia de proteger os fisicamente fracos revertesse em proveito da exploração do servo forte - jamais conseguiu conquistar inteiramente os corações dos povos convertidos. O princípio do amor foi excessivamente desmentido pelo entendimento agudo e pelas armas ainda mais aguçadas dos senhores cristãos, até que o luteranismo eliminou a antítese do Estado e da doutrina, fazendo da espada e do açoite a quintessência do evangelho. Ele identificou directamente a liberdade espiritual à afirmação da opressão real. Mas a mulher traz o estigma da fraqueza e por causa dessa fraqueza está em minoria, mesmo quando numericamente é superior ao homem. Como no caso dos autóctones subjugados nas primeiras formações estatais, assim , como no caso dos indígenas nas colónias, atrasados relativamente aos conquistadores em termos de organização e armas, bem como no caso dos judeus entre os arianos, o desamparo da mulher é a justificação legal de sua opressão. Sade formula as reflexões de Strindberg. "Não duvidemos de que haja uma diferença tão certa e tão importante entre um homem e uma mulher como entre o homem e o macaco da floresta. As razões que teríamos para recusar que as mulheres façam parte de nossa espécie são tão boas como as razões que temos para recusar que esses macacos sejam nossos irmãos. Examinemos atentamente uma mulher nua ao lado de um homem de sua idade e nu como ela e nos convenceremos facilmente da diferença sensível que existe (sexo à parte) na composição desses dois seres, veremos bem claramente que a mulher não passa de uma degradação do homem; as diferenças existem igualmente no interior, e a anatomia de ambas as espécies, feita ao mesmo tempo e com a mais escrupulosa atenção, descobre essas verdades". (76) A tentativa do cristianismo de compensar ideologicamente a opressão do sexo pelo respeito à mulher e, assim, enobrecer a reminiscência dos tempos arcaicos, ao invés de simplesmente recalcá-la, é respondida com o rancor pela mulher sublimada e pelo prazer teoricamente emancipado. O sentimento que se ajusta à prática da opressão é o desprezo, não a veneração, e, nos séculos cristãos, o amor ao próximo dissimulou sempre o ódio proibido e obsessivo pelo objecto que não cessava de evocar a inutilidade desse esforço: a mulher. Ela pagou o culto da madona com a caça às bruxas, que não foi senão uma vingança exercida sobre a imagem da profetisa da era pré-cristã, que punha secretamente em questão a ordem sagrada da dominação patriarcal. A mulher excita a fúria selvagem do homem semiconvertido, obrigado a honrá-la, assim como o fraco em geral suscita a inimizade mortal do homem forte superficialmente civilizado e obrigado a poupá-lo. "Jamais acreditei", diz o conde Ghigi, chefe da polícia romana, "que da junção de dois corpos pudesse resultar a de dois corações: vejo nessa junção física fortes motivos de desprezo... de nojo, mas nem um só de amor" (77). E o ministro Saint-Fonds exclama, quando uma jovem aterrorizada por ele rompe em lágrimas: "É assim que eu gosto das mulheres... ah, se eu pudesse, com uma só palavra, reduzi-las todas a esse estado (78)." O homem dominador recusa à mulher a honra de individualizá-la. A mulher tomada individualmente é, do ponto de vista social, um exemplar da espécie, um representante de seu sexo e é por isso que ela, na medida em que está inteiramente capturada pela lógica masculina, representa a natureza, o substrato de uma subsunção sem fim na Ideia, de uma submissão sem fim na realidade. A mulher enquanto ser pretensamente natural é produto da história que a desnatura. A vontade desesperada de destruir tudo aquilo que encarna a fascinação da natureza, do inferiorizado fisiológica, biológica, nacional e socialmente, mostra que a tentativa do cristianismo fracassou. "… que ne puis-je, d'un mot, les réduire toutes en cet état!" (79) Extirpar inteiramente a odiosa, irresistível tentação de recair na natureza, eis aí a crueldade que nasce na civilização malograda, a barbárie, o outro lado da cultura. "Todas!" Pois a destruição não admite excepções, a vontade de destruir é totalitária, e totalitária é só a vontade de destruir. "Estou a ponto", diz Juliette ao papa, "de desejar como Tibério que o género humano só tenha uma cabeça para ter o prazer de cortá-la com um só golpe" (80). Os sinais de impotência, os movimentos bruscos e descoordenados, a angústia do pobre-coitado, o tumulto, provocam a vontade de matar. A explicação do ódio contra a mulher, enquanto criatura mais fraca em termos de poder físico e espiritual e marcada na testa pelo estigma da dominação, é a mesma do ódio aos judeus. Nas mulheres e nos judeus é fácil ver que há milénios não exercem nenhuma dominação. Eles vivem, embora fosse possível eliminá-los, e seu medo e fraqueza, sua maior afinidade com a natureza em razão da pressão incessante a que estão submetidos, é seu elemento vital. Isso irrita e leva a uma fúria cega o homem forte, que paga sua força com um intenso distanciamento da natureza e deve eternamente se proibir o medo. Ele se identifica com a natureza multiplicando por mil o grito que arranca a suas vítimas e que ele próprio não pode soltar. "Loucas criaturas", escreve o presidente Blammont em Aline et Valcour sobre as mulheres, "como gosto de vê-las a se debater em minhas mãos! Elas são como o cordeiro entre as garras do leão" (81). E na mesma carta: "É como na conquista de uma cidade; é preciso se apoderar das elevações..., nós nos instalamos em todas as posições dominantes e, a partir delas, caímos sobre a praça sem temer mais a resistência" (82). Quem está inferiorizado atrai sobre si o ataque: o maior prazer é humilhar aqueles que já foram golpeados pelo infortúnio. Quanto menor o risco para quem estiver em posição de superioridade, mais tranquilo o prazer proporcionado: é só diante do desespero total da vítima que a dominação fica divertida e triunfa com o abandono de seu próprio princípio, a disciplina. O medo que não ameaça mais explode na risada efusiva, expressão do endurecimento interior do indivíduo e que ele só libera verdadeiramente na colectividade. A gargalhada sonora sempre denunciou a civilização. "De todas as lavas lançadas pela boca humana, esta cratera, a mais corrosiva é a alegria", diz Victor Hugo no capítulo intitulado "As tempestades dos homens, piores que as tempestades do oceano (83)." "É sobre o infortúnio", ensina Juliette (84), "que é preciso, o mais possível, fazer cair o peso de suas maldades; as lágrimas que se arrancam à indigência têm um azedume que desperta poderosamente o fluido nervoso..." (85). Em vez de se aliar à ternura, o prazer se alia à crueldade, e o amor sexual torna-se aquilo que ele sempre foi, segundo Nietzsche (86): "em seus meios, a guerra; em seu fundo, o ódio mortal dos sexos". "No macho e na fêmea", ensina a zoologia, "o 'amor' ou a atracção sexual é originariamente e sobretudo 'sádico'; sem dúvida, é próprio do amor infligir a dor; ele é tão cruel como a fome" (87). Assim a civilização nos traz de volta à natureza terrível como se este fosse seu último resultado. O amor fatal, sobre o qual incide toda a luz da exposição de Sade, e a generosidade pudicamente impudica de Nietzsche, que gostaria de poupar a qualquer preço a vergonha a quem sofre, vale dizer: as fantasias da crueldade e da grandeza, tratam os homens, no jogo e na ficção, com tanta dureza quanto o fascismo alemão na realidade. Mas enquanto na realidade este colosso inconsciente que é o capitalismo sem sujeito leva a cabo cegamente a destruição, o desvario do sujeito rebelde espera dessa destruição sua realização e assim irradia para os homens tratados como coisas ao mesmo tempo sua frieza glacial e o amor pervertido que, no mundo das coisas, tomou o lugar do amor espontâneo. A doença torna-se sintoma de convalescença. Na transfiguração das vítimas, o desvario reconhece sua humilhação. Ele se iguala ao monstro da dominação, que ele não pode superar na realidade. Sob a forma do horror, a imaginação procura resistir ao horror. O provérbio romano, segundo o qual a severidade é o verdadeiro prazer, está em vigor, não é uma simples incitação ao trabalho. Ele exprime também a contradição insolúvel da ordem que transforma a felicidade em sua paródia onde ela a sanciona, e só a produz onde ela a proscreve. Imortalizando essa contradição, Sade e Nietzsche contribuíram para elevá-la ao conceito.

Para a ratio, o abandono à criatura adorada não passa de idolatria. O necessário desaparecimento da divinização é uma consequência da proibição da mitologia, tal como decretada no monoteísmo judeu e executada na história do pensamento sobre as diversas formas da veneração por sua forma secularizada, o esclarecimento. A desagregação da realidade económica subjacente à superstição liberou as forças específicas da negação. O cristianismo, porém, propagou o amor: a pura adoração de Jesus. Pela santificação do casamento, ele procurou elevar o instinto sexual cego, assim como tentara aproximar da terra pela graça celestial a luz cristalina da lei. A reconciliação da civilização com a natureza, que o cristianismo queria obter prematuramente através da doutrina do deus crucificado, permaneceu tão estranha ao judaísmo quanto o rigorismo do esclarecimento. Moisés e Kant não pregaram o sentimento, sua lei fria não conhece nem o amor nem a fogueira. A luta de Nietzsche contra o monoteísmo atinge a doutrina cristã mais profundamente do que a judaica. É verdade que ele nega a lei, mas ele quer pertencer ao "eu superior" (88), não ao natural mas ao mais-que-natural. Ele quer substituir Deus pelo superhomem porque o monoteísmo, sobretudo em sua forma corrompida, o cristianismo, se tornou transparente como mitologia. Mas do mesmo modo que os velhos ideais ascéticos a serviço desse eu superior são enaltecidos por Nietzsche a título de auto-superação "em vista do desenvolvimento da força dominadora" (89), assim também o eu superior revela-se como uma tentativa desesperada de salvar Deus, que morreu, e como a renovação do empreendimento de Kant no sentido de transformar a lei divina em autonomia, a fim de salvar a civilização europeia que, no cepticismo inglês já havia entregue o espírito. O princípio kantiano de "fazer tudo com base na máxima de sua vontade enquanto tal, de tal modo que essa vontade possa ao mesmo tempo ter por objecto a si mesma como uma vontade legisladora universal" (90) é também o segredo do super-homem. Sua vontade não é menos despótica do que o imperativo categórico. Ambos os princípios visam a independência em face de potências exteriores, a emancipação incondicional determinada como a essência do esclarecimento. Todavia, quando o temor da mentira (que o próprio Nietzsche nos momentos mais luminosos tachou de "quixotismo") (91) substitui a lei pela autolegislação e tudo se torna transparente como uma única grande superstição desnudada, o próprio esclarecimento e até mesmo a verdade em todas as suas formas tornam-se um ídolo, e nós percebemos "que também nós, os conhecedores de hoje, nós ateus e antimetafísicos, também tomamos nosso fogo do incêndio ateado por uma fé milenar, aquela fé dos cristãos que também foi a de Platão, para a qual Deus é a verdade e a verdade, divina" (92). Portanto, mesmo a ciência sucumbe à crítica à metafísica. A negação de Deus contém em si a contradição insolúvel, ela nega o próprio saber. Sade não aprofundou a ideia do esclarecimento até esse ponto de inversão. A reflexão da ciência sobre si mesma, a consciência moral do esclarecimento, estava reservada à filosofia, isto é, aos alemães. Para Sade, o esclarecimento não é tanto um fenómeno espiritual quanto social. Ele aprofundou a dissolução dos laços (que Nietzsche presumia superar idealisticamente pelo eu superior) isto é, à crítica à solidariedade com a sociedade, as funções e a família (93), até o ponto de proclamar a anarquia. Sua obra desvenda o carácter mitológico dos princípios nos quais, segundo a religião, se funda a civilização: do decálogo, da autoridade paterna, da propriedade. É a inversão exacta da teoria social que Le Play desenvolveu cem anos depois (94). Cada um dos dez mandamentos vê comprovada sua nulidade perante a instância da razão formal. Seu carácter ideológico fica inteiramente comprovado. O arrazoado em defesa do assassínio, é o próprio papa que o pronuncia a pedido de Juliette. (95) Para ele, racionalizar os actos não-cristãos é uma tarefa mais fácil do que a tentativa feita outrora de racionalizar pela luz natural os princípios cristãos segundo os quais esses actos provêm do diabo. O "philosophe mitré" (96) precisa recorrer a menos sofismas para justificar o assassinato do que Maimônides e Santo Tomás para condená-lo. A razão romana, mais ainda do que o Deus prussiano, se alinha ao lado dos batalhões mais poderosos. Mas a lei está destronada, e o amor que devia humanizá-la está desmascarado como regressão à idolatria. Não foi apenas o amor romântico entre os sexos que, enquanto metafísica, sucumbiu à ciência e à indústria, mas todo o amor em geral, pois nenhum prevalece diante da razão: nem o da mulher pelo homem nem o do amante pela amada, nem o dos pais nem o dos filhos. O duque de Blangis anuncia aos subordinados que os parentes dos senhores, filhas e esposas, serão tratados tão rigorosamente, ou melhor, ainda mais rigorosamente do que os outros, "e isso justamente para mostrar-vos a que ponto são desprezíveis a nossos olhos os laços pelos quais imaginais que estamos presos" (97). O amor da mulher é substituído assim como o do homem. As regras da libertinagem que Saint-Fonds comunica a Juliette devem valer para todas as mulheres (98). Dolmance formula o desencantamento materialista do amor parental. "Esses laços decorrem do medo que têm os genitores de serem abandonados na velhice, e o cuidado interessado que dedicam à nossa infância deve proporcionar-lhes a mesma atenção em sua velhice." (99) O argumento de Sade é tão velho como a burguesia. Demócrito já denunciara o amor parental humano como tendo motivos económicos (100). Mas Sade desencanta também a exogamia, o fundamento da civilização. Segundo ele, não há nenhum argumento racional contra o incesto, (101) e o argumento higiénico que se opunha a ele acabou sendo retirado pela ciência mais avançada. Ela ratificou o frio juízo de Sade. " ... não está absolutamente provado que as crianças nascidas do incesto têm mais tendência do que as outras a serem cretinas, surdas-mudas, raquíticas, etc..." (102) A família - cuja coesão é assegurada não pelo amor romântico entre os sexos, mas pelo amor materno, que constitui a base de toda ternura e dos sentimentos sociais (103) - entra em conflito com a própria sociedade. "Não pensem vocês que poderão fazer bons republicanos enquanto isolarem na família as crianças que devem pertencer à comunidade apenas... Se é extremamente nocivo permitir que as crianças absorvam em sua família interesses que divergem muitas vezes profundamente dos da pátria, é por isso mesmo extremamente vantajoso separá-las dela" (104). Os "laços do himeneu" devem ser destruídos por razões sociais, o conhecimento dos pais deve ser "absolument interdit(e)" aos filhos, eles são "uniquement les enfants de la patrie" (105), e a anarquia, o individualismo, que Sade proclamou na luta contra as leis, (106) desemboca no domínio absoluto do universal, a república. Do mesmo modo que o Deus derrubado ressurge em um ídolo mais duro, assim também o velho Estado-gendarme burguês ressurge na violência da colectividade fascista. Sade levou às últimas consequências o conceito do socialismo de Estado, em cujos primeiros passos Saint-Just e Robespierre haviam fracassado. Se a burguesia os enviou à guilhotina, a eles, seus políticos mais fiéis, ela também baniu seu mais franco escritor para o inferno da Bibliotheque Nationale. Pois a chronique scandaleuse de Justine e Juliette - que, produzida em série, prefigurou no estilo do século dezoito o folhetim do século dezanove e a literatura de massas do século vinte - é a epopeia homérica liberada do último invólucro mitológico: a história do pensamento como órgão da dominação. Assustado com a própria imagem reflectida no espelho, o pensamento abre uma perspectiva para o que está situado além dele. Não é o ideal de uma sociedade harmoniosa, a dealbar no futuro até mesmo para Sade: "gardez vos frontieres et restez chez vous" (107), e nem mesmo a utopia socialista desenvolvida na história de Zamé (108), mas é, sim, o facto de que Sade não deixou a cargo dos adversários a tarefa de levar o esclarecimento a se horrorizar consigo mesmo, que faz de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento.

Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não tentaram distorcer as consequências do esclarecimento recorrendo a doutrinas harmonizadoras. Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais íntima com a moral do que com a imoralidade. Enquanto os escritores luminosos protegiam pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação, aqueles proferiam brutalmente a verdade chocante. " ... É nas mãos sujas pelo assassinato das esposas e dos filhos, pela sodomia, pelos homicídios, pela prostituição e pelas infâmias que o céu coloca essas riquezas; e para me recompensar por essas abominações, ele as põe à minha disposição", diz Clairwil no resumo da vida de seu irmão (109). Ela exagera. A justiça da má dominação não é consequente a ponto de recompensar apenas as atrocidades. Mas só o exagero é verdadeiro. A essência da pré-história é o aparecimento do horror supremo no detalhe. Por trás do cômputo estatístico das vítimas do progrom, que inclui os fuzilados por misericórdia, oculta-se a essência que somente surge à luz na descrição exacta da excepção, ou seja, da mais terrível tortura. Uma vida feliz num mundo de horror é refutada como algo de infame pela mera existência desse mundo. Este torna-se assim a essência, aquela algo de nulo. Certamente, o assassinato dos próprios filhos e esposas, a prostituição e a sodomia, são muito mais raros entre os governantes durante a era burguesa do que entre os governados, que adoptaram os costumes dos senhores de épocas anteriores. Em compensação, quando estava em jogo o poder, estes ergueram montanhas de cadáveres mesmo nos séculos mais recentes. Comparada à mentalidade e aos actos dos senhores no fascismo, onde a dominação realizou sua essência, a descrição entusiástica da vida de Brisa-Testa (na qual, porém, é possível reconhecer aquela) cai ao nível de uma banalidade inofensiva. Os vícios privados são em Sade, como já eram em Mandeville, a historiografia antecipada das virtudes públicas da era totalitária. O facto de ter, não encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato ateou o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem Sade e Nietzsche. Diferentemente do positivismo lógico, ambos tomaram a ciência ao pé da letra. O facto de que insistem na ratio de uma maneira ainda mais decidida do que o positivismo tem o sentido secreto de liberar de seu invólucro a utopia contida, como no conceito kantiano de razão, em toda grande filosofia: a utopia de uma humanidade que, não sendo mais desfigurada, não precisa mais de desfigurar o que quer que seja. Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios morais da burguesia. "Onde estão os piores perigos para ti?", indagou um dia Nietzsche (110) "Na compaixão". Negando-a, ele salvou a confiança inabalável no homem, traída cada vez que se faz uma afirmação consoladora.

 

1. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? Kants Werke. Akademie-Ausgabe. Vol. VIII, p. 35.

2. Kritik der reinen Vernunft, op. cit., vol. III (2.a ed.), p. 427.

3. Ibid.

4. Ibid., pp. 435 sg.

5. Ibid., p. 428.

6. Ibid., p. 429.

7. Op. cit., vol. IV (lª ed.), p. 93.

8. Kritik der Urteilskraft, op. cit., vol. V, p. 185.

9. lbid.

10. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI. p. 449.

11. [Como se fosse uma questão de linhas, planos ou volumes.] Spinoza, Ethica, parte III. Prefácio.

12. Kritik der reinen Vernunft, op. cit., vol. III (2.a ed.), p. 109.

13. Histoire de Juliette, Holanda, 1797. Vol. V. pp. 319 sg.

14. Ibid., pp. 322 sg.

15. Ibid., p. 324.

16. Kritik der praktischen Vernunft, op. cit., vol. V, pp. 31, 47, 55 entre outras.

17. Nouveaux Essais sur l'Entendement Humain. Ed. Erdmann, Berlim, 1840. Livro I, cap. II., § 9, p. 215.

18. Cf. a introdução de Heinrich Mann à edição da Inselverlag.

19. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI, p. 408.

20. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 58.

21. Ibid., pp. 60 sg.

22. ["O arrependimento não é uma virtude, ou não se origina da razão, mas quem se arrepende do que fez é duas vezes miserável ou impotente".] Spinoza, Ethica, parte IV, prop. LIV. p. 368.

23. ["O povo mete medo, a não ser que tenha medo"] .lbid., Schol.

24. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI, p. 408.

25. Ibid., p. 409.

26. Juliette, op. cit., V. II, p. 114.

27. "Poucos bem-aventurados." (N. do T.)

28. Op. cit., vol. III, p. 282.

29. Fr. Nietzsche. Umwertung a1ler Werte. Werke. Kröner, vol. VIII, p. 213

30. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 204.

31. E. Dühren apontou esse parentesco em suas Neuen Forschungen (Berlim, 1904, pp. 453 sgg.).

32. Nietzsche. op. cit.. vol. VIlI, p. 218.

33. Juliette, op. cit., vol. I, pp. 315 sg.

34. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, pp. 321 sgg.

35. ["Ousar tudo doravante sem medo"] .Juliette, op. cit., vol. I, p. 300

36. Histoire de Justine. Holanda, 1797, vol. IV, p. 4. (Também citado em Dühren, op. cit., p. 452.)

37. Genea1ogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 326 sg.

38. Justine. op. cit., vol. IV, p. 7.

39. Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 214.

40. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 433.

41. Juliette, op. cit., vol. I, pp. 208 sgg.

42. Ibid.. pp. 211 sg.

43. Jenseits von Gut und Böse, op. cit., vol. III, p. 100.

44. Nachlass, op. cit., vol. XII, p. 108.

45. Potências existentes. (N. do T.)

46. Juliette, op. cit., vol. I, p. 313.

47. ["Embora pareça ser uma espécie de piedade".] Ethica, parte IV, apêndice, cap. XVI.

48. Ibid., prop. L. .Schol.

49. Ibid., prop. L.

50. Juliette, op. cit., vol. II, p. 125.

51. Ibid.

52. Nietzsche contra Wagner, op. cit., vol. VIII, p. 204.

53. Juliette, op. cit., vol. I. p. 313.

54. Op. cit., vol. II, p. 126.

55. Beobachtungen über das Gefühl des Schonen und Erhabenen, op. cit.. vol. II, pp. 215 sg.

56. Ibid.

57. Nachlass, op. cit., vol. XI, pp. 227 sg.

58. Also Sprach Zarathustra, op. cit., vol. VI, p. 248.

59. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 421.

60. Só pelo prazer, só para se divertir. (N. do T.)

61. Juliette, op. cit., vol. III, pp. 78 sg.

62. Op. cit., vol. IV , pp. 126 sg.

63. Théorie de la Fête, em Nouvelle Revue Française, jan. 1940, p. 49

64. cf. Caillois, op. cit.

65. Ibid., pp. 58 sg.

66. Nachlass, op. cit., vol. XII, p. 364.

67. Emprego. (N. do T.)

68. A ralé, o zé-povinho branco. (N. do T.)

69. Namorado. (N. do T.)

70. Juliette, op. cit., vol. II, pp. 81 sg.

71. Op. cit., vol. III, pp. 172 sg.

72. Op. cit., vol. III, pp. 176 sg.

73. Edition privée par Helpey. p. 267.

74. Juliette, loc. cit.

75. Ibid., pp. 178 sg.

76. lbid., pp. 188-99.

77. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 261.

78. Op. cit., vol. II, p. 273.

79. " ... se eu pudesse, com uma só palavra, reduzi-las todas a esse estado". (N. do T.)

80. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 379.

81. Aline et Valcour. Bruxelas. 1883. Vol. I, p. 58.

82. lbid., p. 57.

83. Victor Hugo, L'Homme qui rit. Vol. VIII, cap. 7.

84. Juliette, op. cit., vol. IV. p. 199.

85. Cf. Les 120 Journées de Sodome. Paris, 1935. Vol. II, p. 308.

86. Der Fall Wagner, op. cit., vol. VIII, p. 10.

87. R. Briffault, The Mothers. Nova York, 1927. Vol. I. p. 119.

88. Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 216.

89. Op. cit., vol. XIV, p. 273.

90. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, op. cit., vol. IV, p. 432.

91. Die Fröhliche Wissenschaft, op. cit., vol. V. p. 275. Cf. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, pp. 267-71.

92. Die Fröhliche Wissenschaft, loc. cit.

93. Cf. Nietzsche, Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 216.

94. Cf. Le Play, Les Ouvriers Européens. Paris, 1879. Vol. I, especialmente pp. 133 sgg.

95. Juliette, op. cit., vol. IV, pp. 303 sgg.

96. O "filósofo mitrado". (N. do T.)

97. Les 120 Journées de Sodome, op. cit., vol. I, p. 72.

98. Cf. Juliette, op. cit., vol. II, p. 234. nota.

99. La Phi1osophie dans le Boudoir, op. cit., p. 185.

100. Cf. Demócrito, Diels Fragment 278. Berlim, 1912. Vol. II. pp. 117 sg.

101. La Philosophie dans le Boudoir, op. cit., p. 242.

102. S. Reinach, "La prohibition de l'inceste et le sentiment de la pudeur". em: Cultes, Mythes et Religions. Paris, 1905, Vol. I, p. 157.

103. La Philosophie dans le Boudoir, op. cit. p. 238.

104. Ibid., pp. 238-49.

105. Ibid.

106. Juliette, op. cit., vol. IV, pp. 240-44.

107 .["Guardem suas fronteiras e fiquem em casa".] La Philosophie dans le Boudoir, op. cit., p. 263.

108. Aline et Valcour, op. cit., vol. II, pp. 181 sgg

109. Juliette, op. cit., vol. V, p. 232.

110. Die Fröhliche Wissenschaft, op. cit., vol. V. p. 205.

 

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