TENTATIVAS DE CONSTRUÇÃO DE UM ARGUMENTO SOCIOLÓGICO SOBRE A TELEVISÃO E A INDÚSTRIA CULTURAL: ADORNO, BOURDIEU E MOLES

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Antonio da Silveira Brasil Junior [1] 

BRASIL JUNIOR, Antonio da Silveira. Tentativas de construção de um argumento sociológico sobre a televisão e a indústria cultural: Adorno, Bourdieu e Moles.
Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.45-61, 30 mar. 2003. Anual.
Disponível em: <www.habitus.ifcs.ufrj.br> . Acesso em: 30 mar. 2003.

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Resumo: Este artigo pretende expor três tipos de abordagens possíveis no que concerne à conceituação sociológica da televisão e dos meios de comunicação de massa. Para tal, serão apresentados os argumentos de Adorno e Horkheimer, de Abraham Moles e de Pierre Bourdieu, além de uma tentativa de analisar a condição do conhecimento sociológico acerca da televisão.

 

1. Pequena digressão sobre a sociologia do conhecimento sociológico acerca da televisão.

Conforme salientou Abraham Moles, em Sociodinâmica da Cultura, as transformações operadas pelos meios de comunicação de massa [mass-media] nas sociedades contemporâneas foram tão profundas que chegaram a alterar o próprio princípio pelo qual se estabelece a percepção cognitiva do mundo exterior – alterando decisivamente a “tela conceitual” na qual estas percepções são situadas e projetadas no espírito. Na cultura moderna, segundo Moles, o que prevalece é o caráter aleatório, desordenado e fragmentado das informações e mensagens que chegam ao sujeito – a cultura-mosaico.

Neste sentido, uma análise aprofundada da televisão, em particular, torna-se cada vez mais fundamental em virtude do peso e do impacto específico desta na sociedade contemporânea, não obstante sejam escassos os marcos teóricos e empíricos no que concerne à sociologia das práticas televisivas.

De acordo com um levantamento bibliográfico recente realizado nos acervos da UFRJ (bibliotecas do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e da Escola da Comunicação), as construções sociológicas sobre a televisão e os meios de comunicação de massa adquiriram maior vigor nas décadas de 60 e 70, quando tais análises buscavam sistematizar e generalizar seus aspectos fundamentais. De um lado, há análises que enfatizam o aspecto comunicativo dos mass­-media, de modo a compreender e classificar os processos internos que caracterizam a transmissão das mensagens num determinado sistema cultural e, por outro lado, há abordagens que evidenciam o caráter de dominação ideológica destes processos, vinculando – quase diretamente – os meios de comunicação com os interesses da classe dominante que são, em última análise, econômicos.

Em virtude da falta de vigor explicativo destas análises travadas no embate entre o que Umberto Eco denominou de apocalípticos (cujos modelos ideais-típicos são o pessimismo da Escola de Frankfurt ou a abordagem do aparelho de Estado althusseriano) e integrados (cujo paradigma é a aldeia global de McLuhan, onde os meios de comunicação são extensões do homem), os novos estudos sociológicos sobre os meios de comunicação de massa privilegiam abordagens mais concretas e estudos de caso, não alçando, pois, a pretensão de constituir uma nova síntese teórica capaz de apreender estes fenômenos desde uma perspectiva mais ampla ou abstrata. Deste modo, a televisão – em particular – pode ser considerada como um objeto pouco pensado em termos da produção sociológica recente, quer seja pela dispersão dos trabalhos, quer seja pelo fato de se tratar de um objeto não-canônico na pesquisa social.

No que concerne a esta primeira característica, pode-se aludir ao fato de que o precoce esgotamento das abordagens teóricas gerais e abstratas dos anos 60 e 70 coincide com um poderoso movimento de crítica – já em fins da década de 70 – a um certo tipo de ciência que se dogmatizava em noções como realidade objetiva e verdade científica, contribuindo para a problematização de diversos pressupostos implícitos em tais construções.

Já sobre a questão da televisão se tratar de um objeto não-canônico da análise sociológica, podemos pensar – numa perspectiva inspirada em Pierre Bourdieu – nas censuras internas impostas pelo próprio campo científico: 

“A hierarquia dos domínios e dos objetos orienta os investimentos intelectuais pela mediação da estrutura das oportunidades (médias) de lucro material e simbólico que ela contribuiu para definir. O pesquisador participa sempre da importância e do valor que são comumente atribuídos ao seu objeto e é pouco provável que ele não leve em conta, consciente ou inconscientemente, na alocação de seus interesses intelectuais, o fato de que os trabalhos (cientificamente) mais importantes sobre os objetos mais “insignificantes” têm poucas oportunidades de ter, aos olhos daqueles que interiorizaram o sistema de classificação em vigor, tanto valor quanto os trabalhos mais insignificantes (cientificamente) sobre os objetos mais “importantes” que, com freqüência, são igualmente os mais insignificantes, isto é, os mais anódinos.” (BOURDIEU, 2001: 36) 

Logo, os mecanismos internos que asseguram a hierarquia social dos objetos de interesse científico na pesquisa sociológica – decorrentes deste habitus particular capaz de gerar práticas distintas e distintivas mediante os critérios de visão e di-visão do mundo interiorizados pelos pesquisadores – agem no sentido de estabelecer critérios próprios de reconhecimento e legitimidade aos objetos pesquisados, instituindo “limites” à entrada e consagração de agentes exteriores ao próprio campo sociológico. Desta maneira, Bourdieu percebe que há uma constância no sentido de que geralmente os domínios mais heréticos ou vanguardistas (como “a análise semiológica da fotonovela”, das “historinhas em quadrinhos” ou, neste caso, da televisão) estão predispostos a serem analisados pelos agentes dotados de pouco capital simbólico específico – isto é, com pouco grau de autonomia –, situados no limite dos campos intelectual e artístico.

Na direção tomada por Bourdieu, pode-se realizar uma interessante digressão acerca das relações entre os campos da sociologia e da comunicação. É inegável a quantidade infindável de trabalhos sobre a televisão realizados no âmbito das “ciências da comunicação”, mas – pela posição distinta na hierarquia das práticas científicas – as abordagens deste campo sofrem uma espécie de subordinação estrutural por parte dos sociólogos, que atribuem uma baixa consagração e legitimidade a estes trabalhos em virtude dum possível déficit sociológico nestas pesquisas. Desta maneira, a televisão pode ser considerada como um objeto não pensado a partir dos critérios legitimizadores da análise sociológica, que raramente seriam capazes de aceitar como “válidos” ou “científicas” as abordagens internas e semiológicas das mensagens televisivas [2].

De fato, as revoluções internas dentro de um campo intelectual dependem das condições e dos recursos disponíveis por parte dos agentes que pretendam re-construir os sistemas de classificação e legitimidade. Desta maneira, a televisão pode se tornar um objeto relevante à análise sociológica quando sua análise é feita por agentes dotados de alto grau de capital simbólico específico e autonomia (como o próprio Pierre Bourdieu é um exemplo), de modo que, através duma “alquimia” simbólica, seja possível a transformação de um objeto “fútil” em objeto consagrado.

Após esta pequena digressão sobre o estatuto do conhecimento sociológico acerca dos bens televisivos, passarão a ser analisados os argumentos mobilizados por três tipos de abordagens teóricas. A primeira delas é a de Adorno e Horkheimer, onde, numa obra já clássica, sistematizou-se o conceito de indústria cultural – que posteriormente tornar-se-ia uma espécie de lugar-comum na análise dos meios de comunicação de massa. A segunda abordagem, realizada em fins da década de sessenta, expressa o ponto de vista de Moles, que contribuiu decisivamente para a consolidação da própria idéia moderna de comunicação e de sua pertinência na análise dos ciclos de produção, difusão e recepção dos bens culturais. Já a última perspectiva, a de Pierre Bourdieu, renova consideravelmente o debate sociológico contemporâneo através de sua concepção dos campos de produção cultural enquanto unidades relativamente autônomas, mas historicamente configuradas – o que permite a Bourdieu passar ao largo das ênfases unilaterais que enfatizam exclusivamente ora a dominação, ora a comunicação na análise dos bens simbólicos.

 

2. O entrelaçamento entre mito e esclarecimento: Adorno e Horkheimer e os descaminhos da Aufklärung na modernidade.

A importância da obra Dialética do Esclarecimento, escrita por Max Horkheimer e Theodor Adorno em 1944, consiste em se tratar de um dos trabalhos mais pessimistas na história da filosofia, onde – através de um ensaio, três excursos e um apêndice – analisam que “o impulso de autopreservação por trás da razão esclarecida destrói a própria humanidade”. (RABAÇA, 2002: 87) Através de uma “fábula” (story) da história da filosofia, Adorno e Horkheimer retomam o tema da viagem de volta de Ulisses a Ìtaca para descrever a “proto-história” da criação do sujeito moderno, isto é, do indivíduo burguês.

De acordo com a tese central do livro, que afirma que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO & HORKHEIMER, 1991: 15), os autores querem estender esta dialética da Aufklärung desde a narrativa homérica até os seus produtos mais tardios, como a ciência moderna, as representações jurídicas, as morais universalistas e a arte autônoma – enfatizando as contradições decorrentes do conceito enfático de Razão se converter em razão instrumental a serviço da dominação tecnológica.

Partindo da análise de Lukács sobre as formas de reificação das relações sociais, os filósofos de Frankfurt (principalmente Adorno) compartilham com o autor húngaro a perspectiva de que o fetichismo da mercadoria preenche toda a vida social, impulsionando o processo de objetificação da subjetividade alienada, tal como analisou o jovem Marx. Neste sentido, uma vez alienada a subjetividade humana em “coisas” objetivas – como pensou Marx na conversão de trabalho humano abstrato em mercadorias –, ocorre uma abstração que reflete a separação radical entre sujeito (como o operário na fábrica, por exemplo) e objeto (as mercadorias produzidas por ele e que lhe são alheias), tendo como conseqüência a preponderância do objeto sobre o próprio sujeito que o produziu [3].

Adorno e Horkheimer prolongam o sentido geral desta reificação para as diversas esferas de valor, já diferenciadas e autonomizadas com o processo geral de racionalização transcorrido no Ocidente, conforme mostrou Max Weber. No caso da esfera artística – com o desenvolvimento da chamada indústria cultural –, o processo de reificação é acompanhado pela pseudo-individualidade, uma vez que a heterogeneidade dos homens é suprimida em nome da identidade, da similitude, da repetição. Num viés nietzscheano [4], a “identidade incondicional” do indivíduo com o universal é expressa pela dominação da racionalidade técnica, que borra as diferenças entre a lógica do sistema social e a lógica das obras, conduzindo-as à padronização e à produção em série de acordo com os processos de contabilidade racional em busca do lucro.

Segundo esta lógica da padronização, os próprios meios técnicos tenderiam cada vez mais à uniformização, embocando na síntese entre o rádio e o cinema: a televisão. Deste modo, dá-se por completa a “identidade mal disfarçada” entre os produtos da indústria cultural, harmonizando palavra, imagem e música. Ademais, a crítica à industria cultural é tão radical que a realidade construída na “consciência terrena” – mas onipotente – das equipes de produção cinematográfica ou televisiva (que são, por sua vez, dependentes economicamente do grandes monopólios capitalistas) chega a alienar do sujeito a função do esquematismo kantiano, uma vez que a conciliação e homogeneidade do universal e do particular (princípio da identidade) não cabe mais ao entendimento puro transcendental, mas às imagens pré-censuradas por ocasião de sua própria produção. Numa sentença lapidar, Adorno e Horkheimer afirmam que “Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente.” (ADORNO & HORKHEIMER, 1991: 83)

Do ponto de vista normativo de Adorno, que edificou uma poderosa Teoria Estética, o desenvolvimento da indústria cultural certamente frustrava o caráter subversivo e emancipatório da arte. Nas suas formulações posteriores, Adorno ressalta que a arte se refere ao não-idêntico, constituindo-se como uma realidade fechada em si, como uma mônada, sendo inalcançável pelo mundo administrado e pela lógica discursivo-conceitual. Ora, a indústria cultural significa o seu exato oposto, uma vez que ela própria é reflexo da linguagem do mundo administrado, tornando-se altamente integrada na dinâmica do sistema social. A presença da racionalidade na esfera artística – ao invés de conduzir a uma crescente autonomização – converte-se em poderoso aparato de dominação, uma vez que não liberta os homens, mas, pelo extremo oposto, passa a “mistificar as massas”. Completa-se, pois, mais uma etapa da fábula contada na narrativa dos autores frankfurtianos, pois o esclarecimento converteu-se numa mistificação crescente, capaz de exercer notável influência no conjunto da sociedade.

Não obstante o caráter fragmentário e hermético do livro, carregado intencionalmente pelas contradições performativas de suas formulações, a grandeza de Adorno e Horkheimer se deve à iniciativa de formular uma conceituação sobre a obra de arte “na época de sua reprodutibilidade técnica” (como diria Benjamin), cunhando o sentido original do termo indústria cultural, já tão disseminado no senso comum.

 

3. Abraham Moles e a Sociodinâmica da Cultura.

A abordagem sociológica de Abraham Moles inscreve-se num amplo movimento teórico que se auto-intitula através da utilização do chamado método cibernético. A cibernética, fundada por Norbert Wiener em meados da década de 40, certamente contribuiu para a emergência da idéia moderna de comunicação, posto que ambicionava uma “teoria geral dos organismos”. Nesta direção, Wiener imaginou uma comparação possível entre homens e máquinas – colocados num mesmo plano ontológico – onde as especificidades de ambos resultavam da complexidade das trocas de informação dos modelos [patterns] em questão.

Preocupado com a análise dinâmica da cultura de massa, inspirando-se – além da cibernética – na teoria da informação, Moles propôs, em 1967, com o título Sociodinâmica da Cultura, uma sistematização significativa que buscava unificar o campo da cultura e o das comunicações. Neste trabalho, os canais do sistema de difusão e distribuição das mensagens culturais veiculadas nos meios de comunicação de massa são representados como um processo cíclico de circulação e retroação – elaborado de modo contínuo. Cada nova criação cultural é submetida ao controle inicial de um microambiente – a cidade intelectual –, desembocando na constituição do chamado quadro sócio-cultural. A partir de então, a criação já submetida ao quadro sócio-cultural é selecionada pela mídia através de seus diversos canais – cada qual com seu modo específico de apreensão, como a cultura impressa, a radiotelevisiva, etc. – sendo absorvida pelo macroambiente dos consumidores de massa.

Nesta direção, estando todos os agentes da sociedade num circuito dinâmico de difusão dos conteúdos culturais – desde os criadores até seus receptores mais passivos –, os resultados finais do processo de criação, já absorvidos na recepção de massa, reorientam polarizações e feedbacks que vão interferir novamente no horizonte dos agentes produtores. Assim, fecha-se o ciclo, uma vez que criação e recepção – mediadas por sondagens e pesquisas de opinião – encontram-se “acopladas” de modo indissociável.

Vale a pena citar um trecho onde Moles expõe este circuito fechado de difusão dos bens culturais: 

“Há pois na sociedade, especialmente na sociedade extremo-ocidental, na qual os problemas da produção apagam-se antes os do consumo e dos lazeres, dois tipos extremos de meio, entre os quais se distribuem as diferentes camadas sociais vistas sob o ângulo da cultura: o micromeio intelectual, que representa alguns centésimos da sociedade, e no qual se recruta um núcleo extremamente estreito de criadores “profissionais” que representa menos de um milésimo da sociedade e, no outro extremo, uma massa enorme nutrida pela imprensa de grande tiragem, a televisão, o rádio e o cinema, que absorve, praticamente de maneira passiva, o que o micromeio por intermédio de agentes tecnocratas que regem a máquina de difusão lhe propõe.” (MOLES, 1974: 322) 

Percebe-se, pois, que a análise de Moles foi a que levou mais longe a idéia de analisar a cultura através da moderna idéia de comunicação.

 

4. Pierre Bourdieu e a lógica dos campos de produção cultural.

Uma tentativa mais recente de análise sociológica no que concerne à Sociologia da Cultura é a inovadora obra de Pierre Bourdieu. Partindo de uma série de conceitos com alta rentabilidade analítica – como a noção de campo e de habitus –, Bourdieu deseja passar ao largo tanto das análises internas (ou formais) dos objetos culturais – como o formalismo russo ou a “lingüística interna” de Saussure – quanto das explicações que pretendam vincular diretamente uma obra aos interesses de uma determinada classe social – conforme algumas perspectivas de um certo marxismo e suas teorias do reflexo.

Para Bourdieu, portanto, é preciso aplicar o modo de pensar relacional ao espaço social dos produtores: o “microcosmo” social onde as obras culturais são produzidas – o campo literário, jornalístico, etc. – é um espaço de relações entre posições diferenciadas, não sendo possível compreender o que ocorre a não ser que cada agente seja situado em suas posições relativas com todos os outros. Bourdieu, além disso, pensa estes campos de produção cultural como campos de força, onde há lutas específicas que têm por objetivo a conservação ou a transformação da estrutura do campo, engendrando, assim, as estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem, as alianças que estabelecem, as escolas que fundam e etc.

Portanto, Bourdieu analisa de modo dinâmico as lutas internas dentro dos campos – cabe lembrar que, nesta perspectiva, os campos são concebidos como dotados de autonomia relativa possuindo leis próprias – ressaltando a importância da oposição entre dois subcampos: o “puro” e o “comercial”. Segundo Bourdieu, a tensão entre arte e dinheiro, que estrutura o campo do poder, reproduz-se no interior dos campos de produção cultural na forma da oposição entre arte “pura”, simbolicamente dominante, mas economicamente dominada – como a poesia, por exemplo – e a arte comercial, simbolicamente dominada, mas economicamente dominante – como o romance popular, o jornalismo, etc.

Neste sentido, a televisão – por meio do índice de audiência – termina por impor a lógica do comercial às obras culturais, afetando, assim, a autonomia dos produtores e suas esferas próprias de reconhecimento e de consagração. De acordo com Bourdieu, é importante saber que, historicamente, todas as produções culturais significativas foram produzidas contra o equivalente do índice de audiência, contra a lógica do comercial, e que, portanto, é muito preocupante ver esta influência da televisão sobre a autonomia dos campos de produção cultural.

Em seu livro Sobre a Televisão (1997), Bourdieu deseja desmontar os mecanismos que fazem da televisão um instrumento de violência simbólica – exercida com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e que a exercem, uma vez que tais processos são inconscientes para ambos – e, também, de censura eficaz e invisível. Nesta direção, a televisão, pressionada pelo índice de audiência, deve produzir uma mensagem indiferenciada para um público indiferenciado, isto é, de fácil assimilação por parte dos agentes envolvidos. Assim, a televisão chama a atenção para os fatos omnibus, que não chocam nem provocam conflito, de inteligibilidade imediata, como, por exemplo, os programas de variedades – que ocupam cada vez mais espaço na programação.

Para Bourdieu, pois, a televisão realiza um ocultar mostrando, partindo de suas próprias categorias de percepção, como, por exemplo, uma visão extra-ordinária do mundo, que prioriza a dramatização – o trágico, o dramático, o espetacular. No entanto, os jornalistas – pela lógica da perseguição do furo, que busca a exclusividade (principalmente em relação aos outros jornais) –, terminam por fazer as mesmas coisas, lendo-se uns aos outros, o que converge para uma limitação e uma censura terrível: a homogeneização e a banalização. Os jornalistas, pela concorrência, não podem deixar de cobrir os fatos que os outros jornais cobriram, contribuindo, deste modo, para uma circulação circular da informação no campo jornalístico.

Aliada a este espécie de censura – eficaz, porque invisível – que os jornalistas impõem uns aos outros, há também a questão da urgência, que preside toda a cadeia de ações no ambiente televisivo. A emergência do fast thinking, imprescindível pela rapidez com que as informações são veiculadas, termina por reforçar os mecanismos de banalização que a televisão opera, uma vez que não há a possibilidade de um aprofundamento nas questões abordadas, permanecendo-se, por conseguinte, na superfície dos fatos.

Segundo Bourdieu, a televisão, no entanto, não tem uma presença passiva nas sociedades contemporâneas, mas, pelo contrário, tem a capacidade de produzir o efeito de real, com mecanismos extremamente poderosos de evocação e mobilização. A mentalidade-índice-de-audiência – que promove a perseguição pelo furo, os programas de variedades e sensacionalistas, o fast thinking e a homogeneização – termina por conduzir ao vazio político, à banalização, afetando, deste modo, a própria condição da democracia.

Em síntese, a televisão – este campo muito pouco autônomo, cuja dependência em relação à sanção do mercado se retraduz através do índice de audiência – influencia diversos outros campos (como o científico, o jurídico, o artístico, o literário, etc.), introduzindo a lógica do comercial nestes universos relativamente autônomos. Deste modo, a presença da televisão afeta as esferas próprias de reconhecimento e consagração destes campos, estabelecendo o que Bourdieu denomina de heteronomia, já que não são os próprios produtores que elegem os trabalhos dignos de apreciação, mas a própria televisão.

 

5. Considerações finais

Longe de se tentar levar a cabo uma análise exaustiva sobre a indústria cultural e a televisão, o objetivo deste trabalho foi apenas o de apresentar alguns aportes teóricos significativos para a compreensão sociológica destes elementos. Apesar de tal temática já apresentar um número considerável de trabalhos no âmbito das ciências da comunicação, defende-se aqui a construção de uma abordagem sociológica sobre os processos de produção cultural no ambiente televisivo, de modo a se atentar tanto para a centralidade deste meio de comunicação de massa, quanto para a criação de novas formas de sociabilidade e de aprendizagem reflexiva nas sociedades contemporâneas. Nesta perspectiva, cabe à sociologia enfrentar de frente esta questão, uma vez que é a única disciplina capaz de mobilizar os recursos necessários para desmontar os discursos pré-construídos que a televisão realiza de si mesma sem qualquer contrapartida crítica.

 

NOTAS

[1] Antonio da Silveira Brasil Junior: Aluno do 5º período de Ciências Sociais; bolsista CNPq/PIBIC (Núcleo de Sociologia da Cultura - IFCS; orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Bôas). E-mail: vlad.br@terra.com.br.

[2] E tal “crivo” se torna ainda mais decisivo quando as análises no âmbito da comunicação tentam estabelecer relações com o mundo social que sustenta suas análises, já que, em geral, estes trabalhos não estão providos da referência “sacralizante” aos textos canônicos e etc. Por outro lado, também seria interessante analisar a via inversa, isto é, as censuras internas no campo da comunicação em relação às pretensões da sociologia de construir um argumento sociológico das práticas jornalísticas e televisivas. Neste sentido, são bastante significativas as críticas recebidas por Bourdieu quando da publicação audiovisual e escrita de Sobre a Televisão (1997).

[3] A metáfora mais acabada deste processo é a idéia marxiana de que, no capitalismo, o sujeito não é o homem, mas o capital (sujeito automático capaz de gerar a valorização do valor).

[4] Como explicitou Habermas em seu Discurso Filosófico da Modernidade, a Dialética do Esclarecimento possui uma acentuada influência de Nietzsche, sendo tão ousada quanto a Genealogia da Moral, por exemplo (Cf. HABERMAS, 2000: Cap. V).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Résumé sobre indústria cultural. Ohne Leitbild. Parva Aesthetica. Frankfurt: Suhrkamp, 1967.

ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.

________________. Razões Práticas. Sobre a Teoria da Ação. Campinas: Ed. Papirus, 1996a.

________________. As Regras da Arte. Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia. Das Letras, 1996b.

________________. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

________________. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

________________. A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.

________________. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Ed. Papirus, 2000.

________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

 BOURDIEU, Pierre & HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2000.

 MOLES, Abraham A. Sociodinâmica da Cultura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974

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