O QUE É SER HISTERO-NEURASTÊNICO

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Carlos Bernardi

 

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Este texto faz parte da dissertação de mestrado em letras intitulada "Senso Íntimo: Poética e Psicologia de Fernando Pessoa a James Hillman", defendida em 1995 na Universidade Federal Fluminense.

 
Em 10 de junho de 1919 Fernando Pessoa escreveu uma carta a dois psiquiatras franceses, Hector e Henri Durville, em busca de respostas a seus problemas. Estes dois psiquiatras utilizavam o magnetismo terapêutico que, segundo as informações do historiador da psiquiatria Henri Ellenberger, já estava há muito desprestigiado
1pelo pensamento médico desde o final do século passado.

Desconhecendo este dado, ou considerando-o sem importância, pois não estava como não estamos fazendo ciência, Fernando Pessoa queria uma solução para seu próprio sofrimento: "Minha vida psíquica é uma espécie de curso de desmagnetismo pessoal."2 O poeta se imaginava, ou se via como destituído de qualquer atrativo e abúlico. Só lhe restava a vivência solitária de seu existir poético.

Mesmo sabendo que gostavam dele, chegando a anotar isto em seu próprio diário: "também quem é que não gosta de v.?"3, não era bastante ou suficiente. Fernando Pessoa queria mais.

Sentía-se ridículo, feio, desajeitado, votado à solidão, forçado à virgindade, em suma, um narigudo sobre um pescoço que ofende a humanidade.4 Considerava-se, por este motivo, incapacitado para o amor:

A quem a Natureza não fez bello
Com seu corpo lhe disse: tu não amas!
5

Mais impressionante ainda para um poeta, embora escrito no desespero dos dezoito anos, é o apontamento que une beleza e poesia de forma literalizada:

O artista deve nascer belo e elegante, pois o que cultua a beleza não deve ser ele mesmo feio. E é seguramente (?) uma terrível dor para um artista não descobrir absolutamente em si-mesmo aquilo por que ele luta. Quem, olhando para o retrato de Shelley, de Keats, de Byron, de Milton e de Poe, pode estranhar que foram poetas? Todos foram belos, foram amados e admirados, todos tiveram em amor calor de vida e alegria celestial, até onde qualquer poeta, ou, na verdade, qualquer homem pode ter.6

Fernando Pessoa havia esquecido, ou ainda não conhecido, que Sócrates, embora fosse horroroso, era considerado o mais belo dos homens. Da mesma forma, a beleza de um poeta não está na superficialidade de sua forma, mas na profundidade de sua poesia.

Contudo, esta beleza externa , muitas vezes, faz falta. Em especial quando a própria pessoa é seu maior crítico. Por isso Fernando Pessoa ficava feliz quando recebia um olhar ou um sorriso, mesmo efêmero ou por acaso.

Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
Bem sei, bem sei: sorriria assim
A um outro qualquer
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu qu'rer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguem,
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada sorria alguém
Ainda que por acaso.
7

Nesta estrada obscura e cheia de muros8 não é de se estranhar a necessidade de magnetismo, pelo desejo de ser amado pelas multidões e de ser, qual Dioniso, "o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadamente para fora das suas casas."9

Mas destes arrebatamentos Dionisíacos, sabia que passava longe. Pelo menos no tocante à sexualidade. O pouco que possuía gastou-o nos incontáveis e ardorosos beijos em Ophélia Queirós e nos poemas Antinous e Epithalamium, escritos em inglês e considerados pelo poeta como os únicos poemas explicitamente obscenos que escreveu.

Há em cada um de nós, por pouco que especialize instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente.10

Definitivamente o gênio ou o demônio de Fernando Pessoa não era o da sexualidade. Por outro lado, foi Dionisíaco atá à alma em outras duas atividades: na bebida e no drama.

Todos apontam a embriaguez como sua causa mortis. Em 1935, com 47 anos de idade, planejando publicar no próximo ano sua obra poética, tendo recebido o prêmio pelo seu livro Mensagem, Fernando Pessoa morreu de cólica hepática, três dias após sua internação. Antes de morrer, pediu seus óculos. Não era homem de querer ver embaçado e desfocado este instante, pois a morte foi sempre tema de sua poesia. Excesso de bebida levou o poeta. Não sabia, como sabia o Barão de Itararé, famoso heterônimo de Apparício Torelly, que "o fígado faz muito mal à bebida."11 Tudo isso, contudo, não tem a menor importância literária, exceto que uma simples inversão de palavras pode gerar uma revolucionária visão de mundo, como percebemos no epigrama do Barão de Itararé, mestre nesta arte.

De importância literária tem a segunda manifestação Dionisíaca no poeta: o drama. São vastas suas reflexões sobre o assunto, mas as deixaremos para mais tarde.

Retornemos à carta psiquiátrica. Nela, Fernando Pessoa se auto-diagnostica de histero-neurastênico. Ao longo de sua obra, Pessoa aponta dois outros companheiros de sina, figuras ilustres no mundo das letras: Shakespeare e Hamlet. Sobre este último a Psicologia Arquetípica, na pessoa de Patricia Berry, traçou algumas considerações.

Em seu artigo "Hamlet's Poisoned Ear" ela faz um pequeno apanhado das inúmeras interpretações sobre o personagem: sensível, humano, intelectual, introspectivo, cruel, ético, culpado, melancólico e com dificuldades para agir. Contudo, diferentemente dos sentinelas, que ao verem o fantasma do rei, quiseram agredí-lo ou explorá-lo, Hamlet aceitou acompanhá-lo, mesmo desencorajado pelos bravos soldados. Hamlet seguiu a aparição para um "more removed ground" para ouvir o que ela tinha a dizer e não para que a aparição satisfizesse seus desejos, qual escravizado gênio da lâmpada.

Hamlet aquiesce a uma outra espécie de conhecimento. Ele move-se para um solo afastado. Exatamente este deslocar-se-para-o-lado fornece uma imagem de remoção psicológica que, então, permite o fantasma falar. Este deslocamento sintoniza o ouvido à nuânce, metáfora, duplos significados, ironia, etc., ao mesmo tempo que destrói a fala ingênua, lugar-comum e banal.12

Hamlet ouviu a aparição. Hamlet era um histero-neurastênico. Invertendo os termos da equação obtemos o seguinte resultado: ser histero-neurastênico é ser capaz de seguir a aparição. Ser capaz de seguir as aparições. Nada melhor descreve a atitude do nosso poeta. Não é de se estranhar que Fernando Pessoa, com sua sensibilidade de poeta e com sua argúcia de crítico, já houvesse percebido e reconhecido, neste deslocar-se-para-o-lado, a essência da poesia.

A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência — isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção.13

Como a Psique do conto, que em busca da lã de ouro foi aconselhada a esperar, Fernando Pessoa descobriu ser necessário criar um distanciamento, um intervalo de tempo para que a emoção se transforme em imagem psíquica e a imagem psíquica em idéia expressa com palavras. Esta seqüência é que define a poesia: arte que se faz com idéias convertidas em palavras acompanhadas pelo ritmo.14 Este processo James Hillman denomina psicologizar, ou seja, a busca de idéias que alimentem a alma. Neste sentido, uma alma sábia, profunda, carregada de sabedoria, não é aquela que teve muitas vivências, mas a que tirou idéias profundas das vivências que teve. Não idéias quaisquer, mas idéias e reflexões sobre aspectos básicos da existência. Fernando Pessoa, consciente disso, escrevendo a seu companheiro de Letras Armando Cortes-Rodrigues, revela ser incapaz de fazer arte meramente pela arte. A "terrível importância da Vida"15 exige um engajamento maior. Acrescentamos que este engajamento não precisa ser literalizado em ações externas, mais refletido em idéias fecundas, que aí sim, podem ser externalizadas. Nas palavras de Alberto Caeiro:

Mesmo que meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
16

Dessa forma, quando Fernando Pessoa descreve-se como um histero-neurastênico a idéia que procura transmitir é que nele existe (somente nele? ou em nós, também? quem sabe, no ser?), antes mesmo da cisão heteronímica, uma divisão mais básica. Dualidade primeira, poderíamos chamá-la; acompanhada de uma multiplicidade segunda. Esta divisão manifesta-se externamente através da neurastenia; internamente pela histeria.

Internamente (com ele mesmo, não com os outros, como salientou) é instável e oscilante emocionalmente, mudando de opinião dez vezes ao dia. Externamente é controlado, com o estado de humor quase sem alteração, ou seja, calmo e alegre.

Esta situação não o incomoda. O incômodo vem da abulia. Quer fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo, embora não consiga realizar nenhuma.

A ação pesa sobre mim como uma danação; agir, para mim, é violentar-me.17

A busca, então, do magnetismo, também conhecido como magnetismo animal, é uma tentativa de obter esta energia para a ação, para a animação, que Fernando Pessoa julga tanto lhe faltar. Esta distância entre animal e homem o levou a escrever:

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
18

O poema concorda com algo que Carl Gustav Jung certa vez escreveu, ou seja, que o animal é mais pio que o homem, pois realiza mais plenamente os desígnos divinos. O homem, por sua vez, tem a capacidade de trair leis divinas. Conseqüentemente, se o animal é feliz na sua existência inconsciente, o homem, angustiado e torturado pela consciência da existência e de sua precariedade, sofre, mas é com este sofrimento que cria poesia.

A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.19

Este sentimento de não bastar é que distingue os homens dos animais, pelo menos quando somos conscientes de sua existência. Caso contrário, o homem será, utilizando a definição criada por Pessoa, mero cadáver adiado que procria.

Os animais, contudo, mesmo não escrevendo poemas, ou, falando de modo diferente, suas próprias formas e maneiras de apresentação sendo poemas, merecem, por isso mesmo, ser respeitados. O comportamento pré-definido do animal é, para James Hillman, a presença da lei divina revelada a que o animal obedece. Por não possuir divisões internas, até onde temos consciência, seu ser nos surge como uno, inteiro, pleno. A multiplicidade aparece em seu reino através da variedade. Para Hillman isto se torna mais explícito quando penetramos no mundo dos insetos. Em seu artigo "Going Bugs", que podemos traduzir taoisticamente como "O Caminho dos Percevejos", ele comenta rapidamente a fenomenologia deste encontro entre homem e inseto.

A palavra inglesa bug, insetos como percevejos e besouros, possui outras denotações bastante significativas para nosso estudo: idéia fixa, entusiasmo, defeito mecânico ou eletrônico, loucura, escuta clandestina.

Transformando bug em prefixo, podemos ainda traçar estes outros significados descendo a coluna do dicionário20: bugaboo: s. fantasma, bicho papão, temor imaginário; bug eyed: a. que tem olhos saltados; bugger: s. sodomita, (vulg.) malandro, patife; buggery: s. sodomia, bestialidade; buggy: a. infestado de bichos, (Ing) charrete; bughouse: s. (gir.) manicômio, a. (gir.) louco, doido; bug hunter: s. (coloq.) entomologista.

Este complexo de significações aponta o inseto como animal persistente, monstruoso, malandro, fora de nosso controle, que pode atrapalhar nossos trabalhos e destruí-los, que se intromete em nossas conversas e nos atemoriza paranoicamente com sua imperceptível ameaça de invasão, traiçoeiramente penetrando pelos buracos, pelos nossos buracos, às nossas costas, parasitando-nos sem que claramente possamos perceber, infestando-nos, bestializando, enlouquecendo. Inseto: teu nome também é legião.

James Hillman comenta a violência de nossas atitudes em relação aos insetos e aos seus companheiros rastejantes: vassouradas contínuas em baratas; latas de inseticida gastas, muitas vezes, com um único inseto mais teimoso; o pavor materialista diante de um foco de cupim; a fuga desesperada diante de pequenos seres alados que irrompem ameaçadoramente pela janela aberta, mas que, na verdade, não oferecem quaisquer riscos à nossa integridade.

Toda esta agressão tem origem em quatro fantasias ameaçadoras que colocamos sobre os insetos: parasitismo, autonomia, monstruosidade e multiplicidade. Estas quatro fantasias desafiam e colocam em risco a visão de mundo unificada , repetida, controladora do eu da civilização ocidental, em especial na sua versão burguesa-moderna. Vida urbana e insetos são quase inimigos mortais. A aranha que penetra em nossa casa é implacavelmente caçada e eliminada; os apetrechos para-militares contra baratas buscam eliminá-las de uma vez para sempre. Combatemos os insetos, mas , no fundo, tememos suas metáforas, expressas nas quatro fantasias acima descritas, em especial a multiplicidade.
Imaginar os insetos numericamente ameaça a fantasia individualizada de um único e unitário ser humano. Caso os insetos predominem, nos tornamos meros bocados de matéria rastejante, saltadora e alvoroçada.. Seu próprio número indica insignificância e ausência de valor como indivíduos. Assim, usualmente, sonhos com insetos são interpretados como sinais de fragmentação e rebaixamento da consciência individualizada a um nível indiferenciado, meramente numérico ou estatístico. Desse modo, a invasão de insetos num sonho indica dissociação psicótica e a perda de controle centralizado. Erradicação, então, é "anti-psicótica". Embora, a fonte da psicose pode não encontrar-se na multiplicidade de
bugs, mas na unidade defensiva do erradicador.21

Baseando-nos na contabilidade de Teresa Rita Lopes, entomóloga do poeta, somos informados que ela encontrou em sua arca, logo abaixo do assoalho do eu, setenta e dois bugs. Muitos estavam ali só de passagem, deixando apenas pequenos rastros. Outros, porém, tinham ninho e tudo. Ela listou-os pacientementente por ordem de "entrada em cena".22

Não é à toa que o médium destas figuras teme enlouquecer. Descer ao porão sem equipamentos de dedetização, botas de borracha e máscara de tela é verdadeiramente amedrontador. Nosso poeta desceu nu.

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......................................................
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte,
Não 'stás morto, entre ciprestes.
......................................................
Neófito, não há morte.
23

Se confiarmos na opinião de Hillman que o problema não está na quantidade de bugs, mas na atitude do erradicador, poderemos compreender porque Fernando Pessoa não foi tomado pela loucura, embora a temesse: aceitou e acolheu a multiplicidade de aparições dando-lhes espaço e direito de expressão, fazendo delas — este é o ponto capital de todo o processo — não figuras de verdade, mas figuras de ficção. Seu temor à loucura não fez "içar à meio pau a bandeira da imaginação"24 como manifestou André Breton em seu surrealismo.

Vamos aprofundar esta relação entre loucura, ficção e imaginação.

Em seu livro Paranóia, James Hillman estudou o parentesco entre revelação religiosa e delírio paranóico. Descobriu que ambos se nutrem do mesmo alimento: a tentativa de se ajustarem a uma ordem invisível. Ambos possuem a certeza da existência literal desta ordem, uma certeza irremovível por quaisquer argumentos lógicos. Hillman chega à conclusão de que não há possibilidade de separar claramente as duas experiências. Se o que ocorre é uma revelação ou um delírio paranóico, não temos condições de saber com segurança. A confusão é ainda maior se levarmos em consideração o fato de inúmeros delírios paranóicos possuirem um caráter e um conteúdo religiosos.

Hillman estuda em seu livro três casos clínicos que apresentam delírios paranóicos. De maior interesse aqui é o caso do inglês John Perceval, internado entre 1831 e 1834, que anotou suas reflexões e as publicou no livro A Narrative of the Treatment Experienced by a Gentleman during a State of Mental Derangement: Designed to Explain the Causes and the Nature of Insanity. Título longo e expressivo para não deixar dúvidas quanto ao seu propósito.

Perceval ouvia vozes, tinha tormentos, ficava violento, tentava se matar, sentia desejos por outros homens e, para completar o quadro, apresentava uma série de delírios religiosos.

É sua noção de cura, contudo, que interessará mais a Hillman. O insano entende uma fala figurada ou poética como uma fala literal. Nas palavras de Perceval: "o espírito fala poeticamente, mas o homem o compreende literalmente".25 O pânico que muitos sentem no início de seus delírios paranóicos, o pânico que todos nós sentimos de enlouquecer, o pânico que as pessoas sentem em geral do psiquismo, no fundo, é o pânico do literalismo. O medo de Fernando Pessoa de enlouquecer pode, por conseguinte, ser lido como seu medo de deixar de ser poeta, seu medo de deixar de olhar poeticamente para o mundo e para suas experiências.

Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?
É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.
26

Para John Perceval o erro ocorre também quando o insano confunde um "espírito de humor" por um "espírito da verdade". As manifestações do espírito são lúdicas, alusivas, elípticas, parabólicas, enganadoras e imaginativas. Só quando repondemos ao espírito, às manifestações da alma, de forma igualmente lúdica e imaginativa, é que obtemos a "cura" das certezas paranóicas. O jovem poeta Fernando Pessoa escreve algo essencialmente igual à visão de Perceval.

A nossa ancia de verdade é grande, e porcerto o que quizeramos fôra, não esta doctrina do Limiar, senão a casa e o lar que há nelle.
De ahi a arte, feita para entretimento dos outros e nossa ocupação, dos que somos occupaveis d'esse modo. Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ella nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hypothese metaphysica nos ocorre, façamos com ella, não a mentira de um systema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novella — verdade em saber que é mentira, e assim não mentir. (...) e assim construi para mim esta (uma) regra de vida.
27

Este fazer da hipótese metafísica a verdade de um poema mostra Fernando Pessoa jogando com grande sutileza com os opostos e com o paradoxo. Nesta citação o jovem Fernando antecipa o que o maduro poeta escreverá: "o poeta é um fingidor".28

Entendendo a expressão hipótese metafísica como a manifestação qualquer de um conteúdo psíquico, temos duas possibilidades de trabalhar este conteúdo. Tomando-o literalmente caímos na mentira de um sistema, acrescido de todo um discurso para justificá-lo e de todo um controle para que não se descubram falhas neste sistema. A conseqüência é a ortodoxia e o dogmatismo. Para exemplificar esta posição temos o que Fernando Pessoa escreveu em 1931 acerca da Psicanálise.

O que desejo agora acentuar é que me parece que esse sistema e os sistemas análogos ou derivados devem por nós ser empregados como estímulos da argúcia crítica, e não como dogmas científicos ou leis da natureza.29

Por outro lado, se tomarmos este mesmo conteúdo e o trabalharmos metaforicamente, surgirá um poema, uma imagem, uma ficção que, pelo fato de não estar presa e endurecida em significados fixos e absolutos, abre-se ao jogo livre do excesso, ao jogo do suplemento, como assim o entende Jacques Derrida. Comentando este suplemento, Cristopher Norris escreveu:

O suplemento é aquilo que tanto significa a falta de "uma presença", ou estado de plenitude para sempre impedido de recuperação, e que compensa aquela falta colocando em movimento sua própria economia de diferença.30

Fernando Pessoa é definido de formas variadas por seus diversos críticos. Uns olham para o homem fracassado, outros para o místico. Todos o consideram um grande poeta. Proteiforme, escorregadio e incoerente, Fernando Pessoa é um mistério para si mesmo. Porém, se tivermos de descobrir uma unidade na diversidade de Fernando Pessoa, esta seria sua atitude poético-ficcional. Em nenhum momento de sua obra e de sua vida ele a abandona. Em carta a João Gaspar Simões disse que a chave de sua personalidade encontra-se no fato de ser um poeta dramático. Com esta atitude poético-ficcional, Fernando Pessoa impediu e impediu-se que fosse congelado num sistema de mentiras que se acreditam verdades. Se em certo momento afirma algo, em outro desmente o que afirmou, quer ortonimamente, quer heteronimicamente. O que Fernando Pessoa faz é desconstruir seu texto através da criação de outros textos de outros poetas-heterônimos, por exemplo, Alberto Caeiro, considerado por todos como mestre. É ele que desfaz a forte inclinação metafísica de todos os outros, como já estudamos. As setenta e duas pessoas que o visitaram eram gente, mas eram gente poética, gente ficcional, gente imaginal, como diria Henri Corbin. A antologia estava a salvo da loucura.

John Perceval nunca deixou de ter visões e ouvir vozes. "Pessoas falam em seus sonhos. A cura não consiste em suas erradicações",31 escreveu Hillman. A cura, como vimos, consiste em relacionar-se com estas pessoas através do jogo ficcional.

John Perceval viveu até os setenta anos. Casou-se e nunca mais deixou de se preocupar com o sofrimento dos loucos.

Por trás da paranóia existe, segundo Sigmund Freud, um desejo homossexual que é fortemente negado. O homossexualismo e a sensação de transformar-se em mulher são presenças marcantes na fenomenologia da paranóia. Mas se a paranóia, argumenta Hillman, é uma doença do significado, que se dogmatiza em verdade e literalismo, este desejo homossexual não deve ser interpretado apenas como desejo homossexual, como um desejo sexual por pessoas do mesmo sexo. Ocorre o que Hillman chamou de "dupla literalização ", ou seja, a resposta interpretativa do desejo literal é igualmente literal. Por que, então, não poetizarmos também o homossexualismo, ouvindo sua retórica, buscando suas metáforas? Hillman propõe vermos no homossexualismo, no desejo de ser mulher, no sentimento de fraqueza e submissão que acompanha a paranóia — que, em nossa cultura patriarcal são sentimentos associados à mulher — uma necessidade de comunidade, um interesse social.

Esta posição lança nova luz às famosas inclinações homossexuais de Fernando Pessoa. Permite também o entendermos quando diz ortônima e heteronimicamente desejar ser muitos e sentir como todos: interesse social. Fernando Pessoa sempre se preocupou com o social. Sua obra tem um caráter essencialmente político, sendo isto uma diversidade na sua unidade. Este caráter político revela-se nos seus escritos Sebastianistas e na instituição do Quinto Império, que é para Fernando Pessoa o Império do andrógino, união do masculino e do feminino, "cheio de todas as subtilezas do domínio feminino e estruturações do domínio masculino".32

Estamo-nos aproximando de Dioniso, pois, se Dioniso é Deus de alguma coisa, ele é Deus das mulheres. Vamos, contudo, permanecer um pouco mais com os animais e seu magnetismo. Só que sairemos, agora, do multiplicado mundo dos insetos para o mundo das garras, músculos, dentes, saltos, mordidas, em resumo, àquilo que Gaston Bachelard denominou "complexo de Lautréamont".

Conde de Lautréamont é o pseudônimo do escritor francês Isidore Ducasse, nascido em 1846 e morto em 1870. Nestes vinte-e-quatro anos de existência, deixou um violento e longo livro intitulado "Cantos de Maldoror", admirados por Verlaine, André Gide e André Breton e estudados por Gaston Bachelard.

Complexo de Lautréamont é o complexo da vida animal com sua energia da agressão. Para Bachelard o tempo desta energia da agressão é um tempo simples, reto, sem obstáculos, tempo apossado pelo ser da agressão, ser que cria sofrimento, mas não o aceita. Contendo 185 animais diferentes, segundo estatísticas de Bachelard, o mundo dos Cantos é também caracterizado pela sua parcimônia quanto ao mundo vegetal, associado a imagens que conduzem mais ao reino da tranqüilidade e continuidade. A poesia de Lautréamont é, pelo contrário, caracterizada pela excitação e pelo impulso muscular.

Os Cantos são repletos de metamorfoses, inúmeras transformações animais. Neste momento de sua análise, Bachelard introduz uma importante distinção: há uma diferença qualitativa apreciável entre a famosa metamorfose Kafkaniana e as metamorfoses de Lautréamont. Enquanto Kafka demonstra uma "preguiça orgânica", um "enfado dos órgãos",33 Lautréamont demonstra, através das metamorfoses, uma multiplicação do querer viver exaltado por meio de animais caracterizados pelo movimento e ação agressivos. A maioria dessas agressões, contudo, trazem a marca da covardia: os animais, em geral, atacam os animais mais fracos e desprotegidos.

Emparelhando grande parte da poesia Pessoana com esta "preguiça orgânica" de Kafka, o que levaria Borges a estabecer idiossincrasias mútuas, podemos ver na procura de Fernando Pessoa pelo magnetismo uma necessidade de possuir este vigor animal que transborda na poesia de Lautréamont.

O mundo animal é escasso na antologia pessoana; até em Alberto Caeiro, poeta da natureza, ele é raro. Mesmo sendo um pastor, seus "como se" rebanhos são, na verdade, pensamentos que são sensações.34 Esta energia animal da ação pode ser encontrada em quatro momentos da obra. No Fernando Pessoa crítico literário e político, com toda a agressividade que a função muitas vezes exige. No desejo de cultuar Pã, através da tradução do hino escrito ao deus por Aleister Crowley. Na ânsia de conquista exemplificada pelos Reis na Mensagem. Por último, em especial, nas longas Ode Triunfal e Ode Marítima de Álvaro de Campos. Vamo-nos deter nestas últimas.

Embora não apareçam nelas explicitamente, os animais e suas respectivas energias podem ser inferidos. Na Ode Triunfal são substituídos pelas máquinas, indo em direção ao que Carl Gustav Jung escreveu: "Atualmente, animais, dragões e outras criaturas vivas são prontamente substituídas nos sonhos por estradas-de-ferro, locomotivas, motocicletas, aeroplanos e produtos artificiais semelhantes...", concluindo que "... isto expressa a distância que a mente moderna tem da natureza".35 Na Ode Marítima a energia animalesca aparece na violência das suas imagens.

Também em contraste com o resto da obra, que se caracteriza mais por um distanciamento e um isolamento, nestas odes Álvaro de Campos vai, com voracidade, em busca do mundo exterior dos acontecimentos, ou permite que este mundo penetre em seu âmago. Olha, com prazer, as pessoas e as coisas que constituem a vida.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao memos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-se passento
A todos os perfurmes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
36

O campo, o mundo dos sonhos, a angústia da morte são substituídos pelo frenesi barulhento da cidade, artificialmente habitada por homens, máquinas e construções e ansiosamente desejado, como o animal deseja sua presa.

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
37

A total qualidade de não-eu dos objetos impede que sejam sentidos como pertences subjetivos. São alcançados pelo olhar, mas um olhar que ainda vincula um distanciamento. Por isso Álvaro de Campos complementa: "Ah, o olhar é em mim uma perversão sexual!".38 De qualquer maneira, é um olhar que permite aproximar-se da gente ordinária, que não cria metafísica e não tem metafísica para ela criada. Gente que apenas vive. Gente que, muitas vezes, nem sequer chocolates tem.

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anônimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah! que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes a vida a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e
ama-o —
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inantigíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
39

Do fundo do mar da vida passamos para a profunda vida do mar, onde a distância vertical é substituída pela distância horizontal, onde navios vêm e vão, levando o velho e o familiar, trazendo o novo e o desconhecido. O mundo marítimo é retratado como pleno de ação e movimento, muscular e perigoso como os animais.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por quê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
40

Os navios, "simbólicas do desconhecido", tomando emprestada sua expressão, são as máquinas que permitem o encontro com o mistério, com a dor, com a saudade. O mistério é o mar. Em seu livro "A Metáfora em Fernando Pessoa", Maria da Glória Padrão diz que o mar em Álvaro de Campos "tem a força de um adversário com quem é obrigatório medir-se".41

Ela choca-se também com João Gaspar Simões quando este escreve que "esta Ode Marítima nunca teria existido se não fosse essa partida".42 A partida a que se refere o crítico é aquela da infância, aos oito anos, quando Fernando Pessoa junto com sua mãe embarcam para a África do Sul. Literária e metaforicamente, Maria da Glória Padrão, responde ao crítico:

Será necessário, num poeta de tão grande imaginação criadora como Fernando Pessoa, ir procurar as motivações da sua poesia a factos biográficos, pelo menos de um modo tão peremptório como o fez Gaspar Simões ao usar o advérbio "nunca"? Então, em que suportes biográficos vamos fundamentar a encosta e o rebanho de Caeiro ou as amadas, os rios e as rosas de Ricardo Reis?
Para se compreender a dinâmica do mar na poesia de Fernando Pessoa, todos os cais de que partiu ou de que não partiu e todos os portos a que não chegou, não é preciso estabelecer tais bases. A explicação é outra: as paisagens marítimas da sua poesia são experiências oníricas que, por sua vez, correspondem a outras tantas razões ora conscientes, ora inconscientes. Mesmo que o poeta tivesse ficado sempre no Largo de S. Carlos, nunca teria deixado de partir para as aventuras marítimas, nem teria deixado de cantar a solenidade platónica que o mar empreta ao mundo. Sem sair do espaço concreto da cidade de Lisboa, mesmo assim, ele partiria sempre para o universo dos seus mitos.
43

A ficção sobrepôs-se à realidade. A literatura superou a história. O fingimento venceu a verdade.

Álvaro de Campos continua louvando os cais, inclusive o Grande Cais Anterior de onde partimos, as praias longínquas, as praias próximas, ilhas distantes, mares diferentes, o medo de partir. Surgem, neste momento, os versos que mais contrapontos vão levantar à vida tranqüila, rotineira da cidade segura. Toda a Ode Marítima é uma grande metáfora da anim-ação corporal do mundo animal. Aqui não há, nem pode haver, abulia: o animal está sempre em prontidão.

Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos.
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água prós pulmões!
44

O sentido mais belo e mais vasto, querido Álvaro, é que ele foi, ele morreu. Com sua história, forneceu estórias para aqueles que, como nós que aqui ficamos, tenhamos algo a contar. O psiquismo precisa de ficções.

Para que o pavor e a coragem de enfrentá-lo sejam maiores, o heterônimo invoca os veleiros de madeira dos mares antigos.
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
45

Como um mar que se vai agitando, o desejo de experiências mais violentas vai aumentando devido ao crescente enfado da civilização e ao asco de ser rebanho de pastor. Os animais aparecem aqui como em nenhum outro lugar da obra, com suas garras, dentes, golpes, mordidas, sede de sangue.

Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gentes de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh!
Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh-Eh!
46

O entusiasmo com o gosto de sangue faz surgir os Piratas, em versos que escandalizaram muitos críticos. Piratas trazendo não apenas violência, mas uma concepção de vida totalmente oposta àquela descrita pelo estoicismo e epicurismo de Ricardo Reis. Em vez da paz encontrada no meio do caminho, a Ode Marítima descreve o caos dos extremos do caminho, pelo menos no ponto mais alto que atinge a onda antes de desfazer-se em espuma.

Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apressados foge pra loucura — essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
47
***
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p'los piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso — todas estas coisas duma só vez — pela espinha!
48
***
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!
49

São versos assustadores, sem dúvida, que nos fazem lembrar do desejo de se controlar a imaginação, pois ela não nos coloca apenas diante de imagens sublimes, mas também diante de imagens grotescas e agressivas. A saída racionalista desta questão foi considerar o primeiro tipo de imagens, as sublimes, como úteis passatempos embelezadores, qual pequenos jarros de flores colocados às janelas. Quanto ao segundo grupo de imagens, as grotescas e intoleráveis, seu surgimento foi associado a perturbações psíquicas. Porém, no nosso entender, o que estes versos buscam transmitir não dista muito dos sublimes versos da "Mensagem", único livro publicado em português por Fernando Pessoa. São uma mesma moeda: de um lado imagens nobres, do outro imagens ignóbeis. Ambos os lados nos levam a entrar em contato com a energia da ação da qual estamos falando, opondo-se à mesmice e à repetição da vida moderna, tal qual Fernando Pessoa e companhia a concebiam. Não devemos esquecer que, graças à Nova História, com sua possibilidade de dar direito à voz a quem antes não podia falar, os feitos dos barões assinalados, em suas andanças conquistadoras pelo mundo e louvados na Mensagem, não permitem uma distinção clara às ações dos piratas. Os piratas roubavam o roubo dos Reis. Aqueles entraram para a história como malfeitores. Estes, como conquistadores. Para evitarmos idealizações precipitadas, não devemos esquecer também que Fernando Pessoa não condenava o colonianismo português. Fechando os olhos às atrocidades cometidas, nem imaginando as que estariam por vir, julgava que a posse das colônias ultramarinas portuguesas não fosse necessária para a glória cultural e espiritual do Portugal Renascido, mas suas perdas poderiam diminuir o país aos olhos das outras nações. Nações européias colonianistas, com certeza.

Retornando à Ode Marítima. De que modo a Psicologia Arquetípica nos pode ajudar a compreender seus versos? Através de James Hillman, Thomas Moore e Lyn Cowan, teremos importantes contribuições ao assunto.

Como mencionamos, a patologia é vista de uma maneira muito específica por Hillman. Para marcar esta diferença, cunhou o termo patologizar, para expressar a habilidade autônoma da psique de criar doenças, morbidez, desordem, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto de seu comportamento, e de experimentar e imaginar a vida através desta perspectiva deformada e aflita.50

A intenção de Hillman é a de mudar nossas maneiras de avaliar as imagens e comportamentos que são difíceis de digerir pela perspectiva adaptativa do eu. Com a mudança do termo, o
patologizar, ele tenta um novo começo na avaliação dos sofrimentos. Ao invés de vê-los como errados e pecaminosos, devemos descobrir sua necessidade. Todo esforço encontra-se em dar validade primária a estas experiências e imagens.

Um dos objetivos destas imagens patologizadas (e não patológicas) é fornecer uma nova perspectiva à nossa vida comum, principalmente se este estilo comum de vida estiver vazio de experiências que toquem profundamente a alma. Por isso, Álvaro de Campos, continuando sua Ode, escreveu:

Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr'aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir de acordo com meu delírio!
Arre! por andar semprte agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina — todos nós o somos — do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
51

António Quadros, em seu livro "Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e Génio", cita um estudo de Eduardo Lourenço que percebe nesta corpórea pirataria, "sentimentos reprimidos de pederastia passiva".52Leitura, a nosso ver, demasiado literal, que é a tônica da maioria dos críticos quando abandonam a literatura em busca da pessoa. De nossa parte, não consideramos a escolha sexual de Fernando Pessoa como tendo qualquer participação importante em sua obra. Ao invés de uma tensão entre homossexualismo e heterossexualismo, o poeta e sua obra oscilam entre envolvimento e solidão, independente deste envolvimento ser com uma mulher ou com um homem, embora concordemos que neste último caso as dificuldades seriam maiores. Em nossa época denominada pós-moderna as minorias conquistaram o direito de exporem seus pontos de vista. Mulheres, negros, inválidos, loucos, pobres, judeus, muçulmanos, latinos, índios, homossexuais, verdadeira legião de excluídos, têm o direito de se expressar, contribuindo para uma visão de mundo mais múltipla, variada e sofisticada. Estas contribuições deslocam a fala que pretende ser hegemônica, em geral associada ao homem branco, europeu, cristão, católico, racional, burguês ou aristocrata. A contribuição de Fernando Pessoa para o alargamento de nossa consciência passa pelo homem fracassado, sofrido, derrotado, neurastênico, solitário. Não há uma contribuição homossexual nos seus escritos. Além do mais, se formos nos prender aos versos, fica fácil provar que Álvaro de Campos era bissexual e não homossexual. Se é certo que andou com rapazes, "aquele rapazito que me deu tantas horas felizes",53 também é certo que desfrutou dos prazeres com mulheres, pelo menos aquela vez que o velhaco comissário o pegou com a sueca, "e o resto ele adivinha".54Portanto, ao invés de lermos, nestes versos, sinais e sintomas do homossexualismo de Fernando Pessoa, achamos mais interessante perguntar a que servem estas imagens, quais são suas intenções ficcionais, dando respostas imaginativas aos produtos da imaginação, como recomenda Hillman.

Em vez de homossexualismo, podemos ler, nos ferozes e animalescos versos da Ode Marítima, não um homem penetrando um outro homem, mas a ação do masculino penetrando violentamente a passividade do feminino com a intenção de despertá-lo. Este é torturado, como a Psique do conto, em função do Amor. São imagens fortes, mas seu efeito é transformador.

Para Hillman a atividade do patologizar, leva-nos ao reconhecimento da atividade autônoma do psiquismo, como uma outra personalidade que nos habita, fornecendo outras maneiras de pensar o mundo. Tentamos seguir a alma aonde quer que ela nos leve, tentando aprender o que a imaginação está fazendo em sua loucura.55

O patologizar possui também uma função ficcional, literária. Através da linguagem deformada e exagerada por ele criada, o psiquismo toma tais proporções que passa a incomodar, gerar culpa, reflexões, ameaçando nossa sanidade, afligindo-nos com o ataque às nossas fantasias de normalidade e aos nossos padrões objetivos.

As imagens patologizadas da Ode Marítima remetem-nos a experiências descritas comumente como sádicas e masoquistas. Sade, segundo Thomas Moore, com suas inversões sexuais, suas torturas e humilhações, revela o lado sombrio do Amor, onde aflição e dor possuem a função de preparar uma alma inocente para as complexidades da vida.

A mitologia de Sade pode ser vista, portanto, como um exemplo particular da necessidade da alma do patologizar. Sade desafia nossos valores usuais, freqüentemente confinados pelos perímetros da consciência e os fáceis heroísmos da virtude comum, nos convidando a considerar algumas alternativas sombrias. Nisto ele serve à alma ao invés do ego. Ele fala em favor do mistério oculto e reprimido contra as normas conhecidas e testadas da civilização, outra razão para nos referir a ele como o "Divino Marquês".56

Por outro lado, as mortificações sofridas pelo narrador do poema, interpretadas, como vimos acima, como pederastia passiva, podem ser entendidas, segundo Lyn Cowan, como um modo de terapia, uma maneira de servir a algum outro princípio, para ser re-moldado e re-construido.

O que a Psicologia Arquetípica enfatiza, através da idéia do patologizar, é o fato do psiquismo produzir estas imagens de excessivo sadismo e masoquismo por serem meios de expressão legítimos e profundamente eficazes. Estamos lidando com ficções. O problema encontra-se, para James Hillman, não nas imagens em si, mas em como trabalhamos estas imagens. Mesmo que Thomas Moore chame nossa atenção para o fato de que "não é possível traçar claros limites entre imaginação e vida",57ou entre metáfora e literalismo, o único caminho construtivo é aceitar as imagens criadas pela imaginação e prestar atenção à sua retórica, prestar atenção ao que a imaginação diz.

A Ode Marítima, contudo, não termina com a carnificina dos piratas. Satisfeito com a energia animal que as imagens forneceram, passo a passo vai havendo uma tranqülização. Em harmonia com nossas reflexões, e em harmonia com a tese pessoana de que a verdade não pode consistir senão em ser tudo, Álvaro de Campos, continuando seu grande poema, passa a sentir não mais o prazer do agressor, mas a dor dos agredidos. "O vermelho anoiteceu".58 Com este verso, marca a ruptura que o leva a sentir ternura e remorso por todas as vítimas.

Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranqüilo em casa).
59

Tomado por sua "imaginação higiênica", o poeta maravilha-se novamente com a vida marítima moderna, limpa e cheia de saúde. Com pessoas, mistura de pessoas de várias raças, viajando a negócios e a passeio. Tudo muito humano e simples. Volta a imperar a tristeza e a solidão, marca essencial da antologia, a unidade na diversidade, como quer Jacinto do Prado Coelho.

Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha....
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...
60

Quando associa o fato de ser um poeta dramático ao seu "diagnóstico" de histero-neurastênico e, mais especificamente ainda, com o fato de ser homem, pois no homem a histeria explode para dentro, Fernando Pessoa está dizendo que aquilo que criou permaneceu no campo da ficção. Esta é a segurança buscada pelo poeta. Disse ainda mais. A neurastenia impede que estas ficções se transformem em realidade, que sejam concretizadas e literalizadas. Não é preciso, no entanto, ser neurastênico para obter a segurança desejada, basta ser poeta, ou seja, trabalhar ficcionalmente as imagens.

Mesmo quando Álvaro de Campos se intromete no namoro de Fernando Pessoa, exigindo que Ophélia se separe do poeta, não podemos falar de literalização (nem de homossexualismo, como o fato é também interpretado). Álvaro de Campos encarna princípios, formas de ser e de viver, concepções de mundo que impedem a aceitação do relacionamento amoroso, pois sua continuidade levaria ao casamento e este a uma série de modificações no estilo de vida que Fernando Pessoa parece não foi capaz ou desejoso de efetuar. Mesmo gostando muito de sua bebé-anjinho.

A histeria interior de Fernando Pessoa permitiu que ele explodisse em inúmeros seres ou deixou que os inúmeros seres o explodissem; a neurastenia exterior impediu que esta explosão saísse da esfera do literário. Profundamente lúcido disso, Fernando Pessoa escreveu, numa das passagens que acreditamos ser uma das mais esclarecedoras do processo de criação do poeta:

A confecção destas obras não manifesta um qualquer estado de opinião metafísica. Quero dizer: com o escrever estes "aspectos" da realidade, totalizados em pessoas que os tivessem, não pretendo uma filosofia que insinue que só há de real o haver aspectos de uma realidade ou ilusiva, ou inexistente. Não tenho, nem essa crença filosófica, nem a crença filosófica contrária. Adentro do meu mester, que é literário, sou um profissional, no sentido superior que o termo tem; isto é, sou um trabalhador científico, que a si não permite que tenha opiniões estranhas à especialização literária, e que se entrega. E o não ter nem esta, nem aquela, opinião filosófica a propósito da confecção destas pessoas-livros, tão-pouco deve induzir a crer que sou um cético. A questão está num plano onde a especulação metafísica, porque não entra legitimamente, escusa de ter estes, ou aqueles caracteres. Como o físico não tem metafísica no seu laboratório, e a não tem o clínico nos diagnósticos que faça [?] não porque a não possa ter, mas porque (...) assim o problema metafísico meu não existe, porque não pode, nem tem que existir adentro das capas destes meus livros de outros.61

Como seu ofício é literário, os heterônimos são pessoas-livros, "livros meus de outros", e não gente de carne e osso, embora o fato de serem ficção não diminua sua importância e sua autonomia.

O ofício literário impede as imagens de explodirem para fora. A alquimia, ofício "científico" dos séculos XVI e XVII, mas que hoje sabemos que era um trabalho metafórico usando materiais e substâncias concretas, possui uma imagem surpreendente que nos ensina a permanecer no ficcional. Os alquimistas acreditavam que toda imagem possui um impulso irresistível a concretizar-se, procedimento que eles denominaram coagulação. Esta força muscular da imagem foi representada como um leão. O trabalho alquímico ou filosófico — pois os alquimistas se consideravam filósofos, que buscavam a pedra filosofal, a pedra que não era uma pedra, expressão inequívoca de sua atitude metafórica — consistia, então, em preservar o leão (a imagem) ao mesmo tempo que lhe era tirada a possibilidade de ação (literalização). Isto era feito cortando-se suas quatro patas, o que o impediria de agir (ver figura 6). O leão privado de suas patas transforma-se em succus vitae (suco vital) que os alquimistas entendiam como uma capacidade de reflexão. James Hillman diz que este procedimento alquímico pode ser também percebido nas imagens onde leão e Santo aparecem lado a lado: o Santo acalma o leão, enquanto que o leão desperta o Santo com seu rugido. O rugir dos heterônimos despertou a alma de Fernando Pessoa. Mas o trabalho poético do poeta arrancou-lhes as "patas", impedindo que deixassem de ser ficções.

Faz parte da genialidade e do ofício literário de poeta jogar metaforicamente as categorias psiquiátricas de histeria e neurastenia, especialmente porque a psiquiatria é uma ciência, por definição, literalmente presa ao corpo. Sabemos, agora, graças ao seu trabalho alquímico-poético, que histeria é a capacidade dramática de criar personagens; e que neurastenia é a capacidade de impedir a literalização destes personagens e de suas falas. Histero-neurastênico é, portanto, o nome psiquiátrico que Fernando Pessoa dá ao seu modo de poetar. Seu auto-psico-diagnóstico constitui um dos momentos geniais da sua obra.

Para James Hillman o fim da análise é a conquista da consciência Dionisíaca. Um dos meios que a alma encontrou, em nossa época moderna, para obter tal consciência, foi a histeria. Ela forçou a consciência racional a direcionar seu foco de interesse para outras questões até então desconsideradas e abandonadas por ela. A imagem da mulher (e, também, ela, fisicamente) teve um papel preponderante neste processo. Sobre ela, a mente racional, com a qual associa-se o masculino, colocou os atributos de fraqueza, inferioridade, inconsistência, fala ambígua, retórica, metáfora, ficção, mentira. Paul de Man comentou em seu artigo "A Epistemologia da Metáfora" as opiniões que John Locke teceu acerca da linguagem. Para o filósofo inglês, as palavras, embora necessárias, continham em si um grande perigo. Ao se intrometerem entre a percepção e a verdade, poderiam desviar completamente o entendimento graças ao poder figurativo que as palavras possuem. Este poder figurativo, encantatório, Locke comparou com a mulher. Escreve Paul de Man:
Como uma mulher, a quem se assemelha ("como o sexo frágil"), a retórica é algo desejável, contando que seja mantida em seu devido lugar. Fora dele, entre os assuntos sérios dos homens ("se formos falar das coisas tal como são"), é um escândalo desagregador — como a aparição de uma mulher verdadeira em um clube de cavalheiros, na qual ela só seria tolerada como um quadro, de preferência nua (como a imagem da Verdade), emoldurada e pendurada na parede.
62

Hillman chama a atenção para um ponto interessante. No Malleus Maleficarum, o manual de caça às bruxas da Inquisição, publicado em 1494, a palavra femina é derivada de fe (fé) e minus (menos). Sua intenção é mostrar que a mulher tem menos fé que o homem. Diríamos de outra maneira. A mulher tem menos fé nos dogmas, por isso não se pode confiar nela. É claro que esta mulher nada tem a ver com a entidade biológica e social de mesmo nome. Essa mulher é, na verdade, uma figura de linguagem para os homens.

Através da histeria, no final do século passado, as mulheres (e os homens) puderam expressar seus descontentamentos, suas queixas e pronunciar seus desejos. Sigmund Freud, ao criar um espaço de liberdade para este discurso, acabou descobrindo uma outra linguagem, uma outra fala aquela da razão consciente. Acabou descobrindo, também, a fala de uma outra, permitindo que heterônimos surgissem, povoando seu consultório e a alma de seus pacientes de pessoas diferentes.

Dioniso, embora fálico e homem, é um Deus próximo das mulheres. Um deus andrógino, homem-mulher. A consciência Dionisíaca torna-se, conseqüentemente, uma consciência andrógina. Como vimos, para Fernando Pessoa, o Quinto Império é o império do andrógino, e, portanto, o Império da Consciência Dionisíaca, que combinaria todas as polaridades associadas ao gêneros. Sadismo-masoquismo, ativo-passivo, vida-morte, razão-ficção, superior-inferior, sucesso-fracasso, passam a habitar legitimamente homens e mulheres.

O fim da análise é também seu término. Prevalecendo a atitude misógena da cultura racional patriarcal, continuaremos a avaliar tudo isso de que até agora estamos falando como inferior em valor e importância. A nova consciência andrógina, Dionisíaca, nascida da crescente luta dos vários grupos de oprimidos e estrangeiros da vida, deve encontrar um espaço de manifestação positivo em nossa sociedade. Talvez já estejamos vivendo esta mudança, sob o nome de pós-modernismo. Porém, uma discussão aprofundada deste tema foge às intenções deste trabalho. Para Hillman a

Consciência Dionisíaca compreende os conflitos em nossas estórias através de tensões dramáticas, mas não através de opostos conceituais; somos formados por agonias e não polaridades.63

Dioniso é, portanto, o Deus do drama, do teatro. Abrir-se à consciência Dionisíaca significa abrir-se a uma experiência cuja lógica é a ficção, onde a identidade circula por um número grande de personagens, máscaras sem um rosto fixo por detrás.


1 Ellenberger, Henri. El Descubrimiento del Inconsciente, pág. 115.

2 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 59.

3 Frase dita por Ponce de Leão, quando Pessoa o visitou em sua casa. Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 43.

4 Lopes, Teresa Rita. Pessoa por Conhecer, vol. I, pág. 46.

5 Pessoa, Fernando. Citado em Lopes, Teresa Rita. Pessoa por Conhecer, vol. I, pág. 45.

6 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 263.

7 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 512.

8 Pessoa, Fernando, Obra Poética, pág. 181.

9 Pessoa, Fernando. Citado em Lopes, Tereza Rita. Pessoa por Conhecer, vol. I, pág. 32.

10 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 464.

11 Maringone, Gilberto. Barão de Itararé, in: Teoria e Debate, abril de 1995, págs. 31-36.

12 Berry, Patrícia. Hamlet's Poisoned Ear, in: Spring 1982, pág. 210.

13 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, págs. 275-276.

14 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 273.

15 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 53.

16 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 235-236.

17 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 59.

18 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 156.

19 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 504.

20 Estamos utilizando o Dicionário Inglês-Português de Antônio Houaiss.

21 Hillman, James. Going Bugs, Spring, 1988, pág. 59.

22 Lopes, Teresa Rita. Pessoa por Conhecer, vol. I, págs. 167-169.

23 Pessoa, Fernando. Obra Poética. Poema intitula-se Iniciação.

24 Breton, André. Manifestos do Surrealismo, pág. 36.

25 Hillman, James. On Paranoia, pág. 13.

26 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 545.

27 Pessoa, Fernando. Citado em Lopes, Teresa Rita. Pessoa por Conhcer, vol. II, pág. 114.

28 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 164.

29 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 64.

30 Norris, Cristopher. Deconstruction, pág. 37.

31 Hillman, James. On Paranoia, pág. 16.

32 Pessoa, Fernando. Citado em Quadros, António. Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e Génio, pág. 259.

33 Bachelard, Gaston. Lautréamont, pág. 17.

34 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 212.

35 Jung, Carl Gustav. Letters, vol. II, pág. XLVI.

36 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 306.

37 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 308.

38 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 309.

39 Pessoa, Fernando. Obra Poética, págs. 309-310.

40 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 315.

41 Padrão, Maria da Glória. A Metáfora em Fernando Pessoa, pág. 94.

42 Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa, págs. 59-60.

43 Padrão, Maria da Glória. A Metáfora em Fernando Pessoa, págs. 83-84.

44 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 319.

45 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 319.

46 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 324.

47 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 325.

48 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 325.

49 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 326.

50 Hillman, James. On the Necessity of Abnormal Psychology: Ananke and Athene, pág. 1.

51 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág.327.

52 Quadros, António. Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e Génio, pág. 148.

53 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 356.

54 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 303.

55 Hillman, James. Re-Visioning Psychology, pág. 74.

56 Moore, Thomas. Dark Eros, pág. 10.

57 Moore, Thomas. Dark Eros, págs. 8-9.

58 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 329.

59 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 331.

60 Pessoa, Fernando. Obra Poética, pág. 335.

61 Pessoa, Fernando. Obra em Prosa, pág. 84.

62 Man, Paul de. A Epistemologia da Metáfora, pág. 21.

63 Hillman, James. Healing Fiction, pág. 40.

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