ESTADO E SOBERANIA: O "IDEALISMO DA SOBERANIA"

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Marcos Lutz Müller

Depto de Filosofia - UNICAMP

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1. Introdução: a soberania como "alma" do Estado e o ‘idealismo da soberania’. 

A relação entre os conceitos modernos de Estado e soberania é tão íntima e mutuamente constitutiva para a modernidade política quanto ela é central para o pensamento político de Hegel. Já para Hobbes a soberania torna-se a "alma", uma alma certamente artificial e, também, mortal, mas que é ainda concebida, segundo o seu conceito clássico, como o princípio que "dá vida e movimento ao corpo inteiro" daquele grande Leviatã, criado pelo artifício humano para a sua proteção e segurança. Também para Hegel a soberania, que é a expressão político-constitucional do momento lógico-conceitual da singularidade do Estado, é "o princípio vivificante" e a "alma" do todo ético-político. O conceito moderno de soberania alcança em Hegel uma das suas teorizações mais poderosas, não só porque ele o elabora na intersecção e no confronto das duas grandes vertentes da teoria da soberania moderna, a absolutista, hobbesiana, e a democrático-republicana, de Rousseau, relida, esta, em parte, com os olhos de Kant e Fichte, procurando uma solução de compromisso e uma mediação entre elas, mas, também, porque Hegel apreende, de maneira inaugural, o entrelaçamento entre a soberania moderna e o embrião das transformações capitalistas da sociedade européia, que ele descobre na Economia Política de A. Smith e Jean-Baptiste Say.

Por conseguinte, embora a soberania seja, primeiramente, a determinação fundamental do "Estado propriamente político" (FD § 267; § 273), no sentido estrito, institucional, ela também abrange e qualifica a dimensão ético-política do Estado, tomado no sentido amplo, que, como "efetividade da Idéia ética" (FD § 257), engloba as esferas da da família, sociedade civil e do próprio Estado político (FD §§ 257, 261 e 262). Por isso o próprio conceito hegeliano de sociedade civil e o núcleo da sua dinâmica, – a dialética entre a expansão sem-medida dos interesses particulares autonomizados (FD § 185) e a sua mediação necessária por um universal formal (nos seus diferentes níveis, o da abstração da necessidade, o da abstração do trabalho e da sua divisão, o da abstração do valor e o da regra formal jurídica), da qual resulta "um sistema de dependência omnilateral" entre os indivíduos (FD § 183), – tematizado inicialmente pela Economia Política precisamente no horizonte do todo político, contém uma teoria do controle e da regulação da sociedade civil pelo poder público soberano e, correlatamente, uma teoria da sua atuação imanente na sociedade civil, precisamente, no movimento de auto-superação categorial da sociedade civil em direção à esfera do Estado e da sua culminação no Estado político, precisamente porque é ele que funda a autonomia relativa daquela.

A questão da soberania é, hoje inseparável de uma análise das transformações profundas que a figura do Estado e a da soberania sofreram nos últimos trinta anos, principalmente com a mundialização da produção capitalista, com o surgimento das empresas transnacionais, da internacionalização dos circuitos financeiros e o esboço de formação de uma sociedade civil transnacional, que provocam uma erosão do poder público e a fragmentação das atribuições da soberania estatal, quando não o seu desmantelamento, freqüentemente executado, aliás, por um poder público obediente às injunções da concorrência capitalista, da divisão internacional do trabalho e do monitoramento das agências financiadoras internacionais. Não cabe aqui e foge à minha competência estabelecer os termos de um confronto entre uma análise conceitual e histórica do princípio da soberania, que moldou e acompanhou decisiva e tragicamente a modernidade política, mesmo quando ela foi instrumento de emancipação nacional, e um diagnóstico econômico-político das novas funções do Estado, da erosão, redefinição e re-instrumentalização das funções da soberania estatal, bem como do surgimento de outras instâncias e organizações mundiais de poder e de controle jurídico e policial, que estão a esboçar novas formas de soberania pós-nacional e, eventualmente, de uma soberania imperial.

Na medida em que o pensamento político especulativo de Hegel se constituiu, também, a partir do diagnóstico conceitual de um presente, situado a cavaleiro entre as grandes revoluções políticas e sociais do século XVII e XVIII, de um lado, e as primeiras transformações capitalistas entranhadas na modernidade política européia, de outro, cujas conseqüências nos engolfam, hoje, crescentemente, ele ainda surge como um interlocutor incontornável nessa difícil avaliação do conceito de soberania, precisamente pela consistência interna e pela densidade conceitual da sua reformulação especulativa do conceito, pela sua percepção aguda dos impasses do sistema das soberanias nacionais, e pelo teor crítico que pode ser extraído deste conceito central de ‘idealismo da soberania’. Com efeito, ele molda a organização político-constitucional do Estado soberano em seus poderes e funções, define o modo da sua atuação no interior da sociedade civil e aponta para a necessidade de instituições de um poder público transnacional, capazes de regular as tendências auto-destrutivas da mundialização capitalista, atuantes no interior de uma sociedade civil transnacional em vias de formação, no sentido da necessidade imperiosa da constituição política de instâncias do universal que a enquadrem e atuem à sua base.

É o conceito de ‘idealismo da soberania’, do que Hegel chama de "idealismo que constitui a soberania" (FD § 278 A), o que pretendo expor e discutir aqui. pois é este o elemento do conceito hegeliano de soberania que, mais plausivelmente, abriria janelas para uma possível interlocução de Hegel com o nosso presente e para a sua extrapolação na perspectiva de uma sociedade civil transnacional. O idealismo da soberania é, também, aquele aspecto do conceito hegeliano de soberania que mais fundamente lança as suas raízes no núcleo da lógica especulativa, na tese da idealidade do finito, segundo a qual o finito, precisamente devido à sua negatividade intrínseca, só tem a sua verdadeira efetividade no infinito que não mais se opõe ao finito, mas que se constitui, precisamente, no movimento da ultrapassagem do finito. O conceito de idealismo da soberania é, também, responsável pelo caráter forte que a soberania assume no Direito Público de Hegel, como afirmação da superioridade do interesse público sobre os interesses particulares e da soberania política interna sobre os direitos de propriedade privada. A tese lógica da "idealidade do finito" no interior do movimento do verdadeiro infinito se desdobra no plano político-constitucional em dois níveis: 1) ao nível da constituição política do Estado, essa idealidade perpassa os seus poderes e instituições, as suas funções, atividades e respectivas legitimações, nas quais ele se diferencia e, ao mesmo tempo, manifesta a sua infinitude, (FD § 262), 2) ao nível da constituição lato senso, isto é, do enquadramento da sociedade civil pela esfera público-política, essa idealidade perpassa as instituições sociais e as esferas particulares da sociedade civil, nas quais a racionalidade da constituição política se desenvolve e se torna efetiva, na medida em que, em contrapartida, estas, enquanto condições reais daquela esfera, se tornam "a base sólida do Estado [...] e os pilares da liberdade pública". O idealismo da soberania é, assim, para Hegel, não só o fundamento especulativo da indivisibilidade, própria ao conceito clássico da soberania, mas, também, a afirmação da unidade do Estado na sua diferenciação institucional e funcional (§§ 272, 276). O idealismo da soberania "é a idealidade de toda legitimação particular" e "constitui o momento da idealidade das esferas e das tarefas particulares", a afirmação "da situação constitucional, legal" em que o "fim do todo" ético-político tem primazia sobre aquelas (§ 278 A).

Embora Hegel elabore, indiscutivelmente, o seu conceito de soberania no horizonte do Estado territorial moderno, que exerce a soberania sobre um território determinado, pode-se legitimamente perguntar, se o núcleo teórico desse ‘idealismo da soberania’, enquanto expressão da primazia do político sobre o econômico-jurídico (no sentido do direito privado) e da esfera pública sobre a esfera social e a esfera privada, e da autoridade soberana sobre a propriedade privada, não extrapola o quadro clássico do Estado soberano nacional, aquele em que um povo cria uma história comum no interior de uma comunidade lingüística e no espaço de um território, organizando-se politicamente como nação soberana. Por isso, creio que o idealismo da soberania, enquanto núcleo especulativo do conceito hegeliano de soberania, contém uma potencialidade teórica que extrapola as teorias do Estado-nação, um conceito, aliás, que não comparece em Hegel; por isso, creio, o conceito de idealismo da soberania pode fornecer elementos ou apontar direções que ultrapassam o horizonte do Estado-nação, para pensar a urgência da criação de esferas e organizações públicas transnacionais, que venham a enquadrar e a restringir os particularismos da propriedade privada que se reproduzem no interior da própria sociedade civil transnacional em vias de formação.

 

2.  A "totalidade ética absoluta" e a soberania moderna. 

O conceito de soberania adquire o seu relevo e a sua centralidade no pensamento político de Hegel na perspectiva do desdobramento da tese fundamental do direito natural especulativo do jovem Hegel, que concebe o Estado moderno como "a totalidade ética absoluta [que] não é senão um povo" organizado politicamente. Esta totalidade ética é determinada, aristotelicamente, como uma "comunidade política", lógico-ontologicamente anterior ao indivíduo singular, e, platonicamente, como sendo a realização imanente da idéia do bem na comunidade ético-política, alcançada pela convergência do "viver para a coisa pública (politeuein) e do filosofar". (DN, 455, 141). Esta tese fundamental do direito natural especulativo vai fornecer a Hegel o horizonte teórico da sua crítica à fundação jusnaturalista do Estado no contrato, que parte do indivíduo singular, sem que ela recuse a emancipação moderna do indivíduo, fundada no "poder" da propriedade privada e na dissolução das formas tradicionais de eticidade. Quer dizer, esta incorporação do modelo platônico-aristotélico da pólis antiga enquanto pano de fundo e instrumento da crítica ao contratualismo moderno, já está, por usa vez, determinada modernamente pelo "sistema da propriedade e do direito (...) que fixa o ser singular e o põe absolutamente" (DN, 457, 143), isto é, por uma concepção do homem não apenas como cidadão que é livre pelo nascimento e/ou pelo seu status de proprietário, mas como um sujeito autônomo, consciente da infinitude do seu eu e da autonomia do seu interesse particular, e que só colabora para o bem comum provendo a seus fins particulares. (FD §§ 124, 187)

O ponto a destacar aqui, nestas teses bem conhecidas, é que esta "totalidade ética absoluta" do povo organizado politicamente, – apresentada inicialmente, no horizonte da recepção espinosana de Schelling, como a manifestação prática do Absoluto, – somente é uma totalidade concreta e positiva, se ela se diferencia internamente numa esfera público-política ("eticidade absoluta", conforme a terminologia do Direito Natural) e numa esfera econômico-jurídica ("eticidade relativa"), de tal sorte que esta última esteja integrada na primeira e subordinada a ela, mas sem que a esfera econômico-jurídica da propriedade privada perca a sua autonomia e legitimação relativa e a sua dinâmica própria. (DN, 454, 456-458; 140, 142-144) Mas esta subordinação que não elimina a autonomia, só é possível mediante o que Hegel denomina a "subjugação absoluta" ("absolute Bezwingung", DN, 448, 131-132) da esfera econômico-jurídica da propriedade privada pela esfera pública da vida política. Esta "subjugação" é entendida como um "nadificar/aniquilar" (Vernichten, DN, 447-448, 451; 130-132, 136) da realidade empírica e finita do econômico-jurídico, pela qual este é "reconduzido à indiferença" (indifferenziert ist), isto é, posto na ‘idealidade’ que ele adquire na infinitude da esfera público-política, com a qual ele é, assim, "reconciliado" (DN, 458, 145). Essa "subjugação", que é uma "aniquilação" da subsistência por si da realidade empírica do econômico-jurídico, impede que este se apodere inteiramente de todas as relações sociais e, assim, destrua a esfera pública, sem que com isso ele perca a sua autonomia relativa. Reconhece-se aí, nesta "subjugação absoluta" do econômico-jurídico pelo público-político, que precisamente instaura a sua ‘autonomia’ ou ‘subsistência por si’ (Selbständigkeit) relativa, o embrião do futuro conceito de "soberania interna" e o seu corolário especulativo, a "idealidade" de todas as instituições políticas e sociais em suas respectivas legitimações particulares.

Este conceito do Estado, entendido no artigo sobre o "Direito Natural" como "totalidade ética absoluta", concebida como a manifestação prática da substância absoluta e infinita, é, posteriormente, refundido inteiramente a partir do conceito moderno de soberania enquanto poder público absoluto, permanente e inalienável, segundo o paradigma estabelecido por Bodin e Hobbes. A soberania moderna, concebida, assim, como a fonte primeira da competência legislativa e como o poder secular de decidir em última instância, passa a constituir o núcleo do poder público, do qual derivam os outros atributos da soberania. Em Hegel ela é o enraizamento último de todos os poderes e instituições do Estado no seu "si mesmo simples" (FD § 278), concebido "enquanto personalidade do todo" (FD § 279 A). Pouco se sabe sobre as etapas do longo processo que conduz da reformulação da "totalidade ética absoluta" do Direito Natural pelo moderno conceito de soberania até à sua formulação sistemática na Filosofia do Direito.

O momento teórico decisivo na formação do conceito hegeliano de soberania será a tese hobbesiana, de que só a organização política da multidão em Estado transforma essa multidão em povo, criando assim uma "unidade real", dotada de "uma só vontade", personificada na "pessoa artificial" do soberano, que representa, em Hobbes, o pacto de cada um com todos os outros e é, assim, dotada de um poder comum irresistível. Hegel não integrará em sua teoria, evidentemente, nem a teoria hobbesiana da autorização, nem, por conseguinte, o seu núcleo contratual, mas permanecerá de acordo com Hobbes em que a transformação da multidão em povo só se dá pela sua organização no todo político, cujo poder de autodeterminação última, a singularidade do conceito, constitui, logicamente, a personalidade do Estado, politicamente, a sua soberania interna. É, portanto, a personalidade do todo enquanto raiz da sua organização constitucional o que transforma "a massa informe", a "plebe" – esta "representação caótica do povo", em povo no sentido romano do "populus" e, assim, constitui a soberania. (FD § 279 A)

A equiparação rousseauniana da soberania com a vontade geral é o outro elemento decisivo na construção do conceito hegeliano de soberania estatal. Rousseau, apesar de contratualista, rompe, segundo Hegel, com os pressupostos empiristas comuns implícitos em todo o jusnaturalismo moderno (mesmo nas versões formalistas de Kant e Fichte), ao colocar a vontade em sua universalidade como fundamento e princípio do Estado. Com efeito, a vontade geral, posta como fundamento do Estado, é, para Hegel, um princípio racional "não só segundo a forma", mas também "segundo o seu conteúdo", porque, para Hegel, a relação ativa da universalidade do pensamento a si mesma constitui o cerne da universalidade do querer, de sorte que, assim, é o próprio pensamento que está na base do Estado (FD § 258 A). Por isso, a equiparação da soberania com a vontade geral, tomada em sua universalidade racional, representa, para Hegel, não só um passo decisivo no processo moderno de imanentização da soberania no interior da organização política, mas também, a introdução de um elemento de legitimação na origem da lei, contra a tese hobbesiana de que é a autoridade que faz a lei.

A crítica de Hegel ao contratualismo de Rousseau visa primariamente a subordinação lógica da vontade geral às vontades particulares enquanto contratantes, pois Hegel detecta aí o perigo da sua redução ao elemento meramente comum/comunitário (das Gemeinschaftliche), isto é, à vontade empírica de todos ou da maioria. Mas Hegel retoma e transforma a partir do seu conceito especulativo de vontade livre o núcleo da teoria rousseauniana da vontade geral: como o objeto sobre o qual a vontade geral delibera e estatui é, segundo Rousseau, ele mesmo universal, pois ele é o bem comum enquanto fim do Estado, a vontade geral, tem de ser geral não só no seu objeto, mas também na sua essência. Por isso, diz Rousseau, ela é sempre reta. Ora, precisamente a fim de evitar o perigo da redução da vontade geral à extensão empírica da vontade de todos ou à vontade da maioria é que Hegel reformula e radicaliza especulativamente esse teorema rousseauniano, segundo o qual a vontade tem de ser geral tanto no seu objeto quanto na sua essência, dizendo que ela só pode ser racional em sua essência se "ela é igualmente em si o que ela é para si" (FD § 258 A). Hegel argüi, portanto, contra Rousseau, que a vontade geral só pode sempre querer o bem comum e, para tanto, ser geral na sua "essência", se ela não resultar de um contrato entre vontades particulares, sendo, portanto, intrinsecamente racional, "racional em si e para si", sendo "Idéia da vontade racional".

 

3.  A Idéia de Estado ou o Estado enquanto Idéia. 

A Idéia de uma vontade livre intrinsecamente racional, "a vontade livre em si e para si", cuja forma universal se desenvolve imanentemente como conteúdo universal, e que para Hegel é o estatuto verdadeiro da vontade geral de Rousseau, remete à tese fundamental da Filosofia do Direito, desenvolvida por Hegel na sistemática enciclopédica como Filosofia do Espírito Objetivo: a de que o conceito de vontade livre, que constitui a determinação essencial do espírito subjetivo, o "espírito livre", que se quer livre nas formas da sua objetivação, tem em si o "impulso" de se dar efetividade através do processo da sua determinação completa em direção à Idéia de vontade livre ou "Idéia de liberdade". (FD §§ 1, 21, 27). Esta Idéia de liberdade é a totalidade sistemática do desenvolvimento de todas as determinações do conceito de vontade livre, graças à qual o conceito de liberdade se torna mundo objetivo, dotado de uma necessidade própria, permanecendo, ao mesmo tempo, a determinação essencial das autoconsciências singulares (cf. FD § 142). Ela assume, assim, como desenvolvimento completo das determinações do conceito de liberdade, a figura da Idéia ética, cuja efetividade constitui, especificamente, a Idéia de Estado. A idéia ética abrange, portanto, o conjunto das diferentes formas de realização comunitária da vida segundo o bem, na família, na sociedade civil e no Estado, sendo, por isso, "a Idéia de liberdade enquanto bem vivo" (ibid.). Daí que o enunciado inicial da Terceira Seção da IIIª Parte defina o Estado enquanto Idéia: "o Estado é a efetividade da Idéia ética" (FD § 257). Quer dizer, ele é a efetividade desta unidade, precisamente ética, da liberdade universal objetivada, "configurada em direção a um mundo" (E § 484), e da liberdade como essência das autoconsciências singulares, cujo agir efetiva as formas da vida segundo o bem, ao mesmo tempo que, em contrapartida, tem nelas o seu fundamento (cf. FD § 142).

O Estado enquanto Idéia é, portanto, na sua raiz rousseauniana, e, também, kantiana, vontade livre universal, mas "vontade universal substancial" (FD § 258, sublinhado MLM), porque posta na forma da objetividade. Mais precisamente, o Estado é a efetividade dessa vontade universal objetivada, que na sua objetivação institucional se sabe e se quer livre, isto é, que na sua objetividade está inteiramente perpassada pela forma subjetiva do querer universal, e que, por isso, na sua própria "universalidade substancial é para si mesma objeto e fim" (FD § 266). Mas, ao mesmo tempo, enquanto liberdade objetivada "como um mundo a produzir e produzido", ela adquire nessa substancialidade uma necessidade própria, que pode, também, bloquear ou desfigurar a efetivação da liberdade (E § 385). Por isso, se, por um lado, na sua própria efetividade substancial ela tem a forma da vontade racional, por outro, ela adquire a necessidade própria de um mundo. A vontade livre singular reconhece, assim, nesta "universalidade substancial" (FD § 266), que lhe apresenta a objetivação e a efetivação do conceito de liberdade, o conjunto das condições e das formas de realização da sua liberdade subjetiva; mas ela pode, também, encontrar faticamente nessa universalidade substancial que é, enquanto mundo, necessidade dotada de um coeficiente de alteridade, obstáculos e formas de distorção dessa liberdade.

Não cabe, aqui, explicitar ulteriormente estas teses especulativas fundamentais. Mas elas apontam para duas características teóricas importantes da teoria do Estado de Hegel.

Primeiro, a de que ela não pode ser lida como uma teoria geral do Estado, a modo do exemplo paradigmático de G. Jellinek, pois ela nem elabora um conceito abstrato e geral de Estado, a partir de elementos comuns presentes nos Estados empiricamente existentes, nem constrói um tipo ideal de Estado. Ela é uma teoria da "Idéia do Estado", do Estado enquanto Idéia, isto é, uma Darstellung descritivo-normativa das estruturas racionais do Estado, explicitadas sistematicamente como implicações necessárias e condições de efetivação do conceito de vontade livre, desse conceito que tem o poder de se efetivar e se efetiva, no presente histórico pós-revolucionário, como Idéia de liberdade.

Segundo, enquanto teoria da Idéia de Estado ela é, também, simultaneamente, uma teoria do Estado constitucional moderno, porque para Hegel é a modernidade política, que, "pela primeira vez, faz justiça a todas as determinações da Idéia [ética]" (FD § 182 Ad.), liberando a sociedade civil como uma esfera diferenciada e relativamente autônoma em face do Estado, que passa a ser a condição histórico-real da formação do moderno Estado constitucional. A organização constitucional do Estado, e, para Hegel, especificamente, a monarquia constitucional, torna-se a garantia da estabilidade política e da universalização dos direitos de liberdade afirmados pela Revolução Francesa (E § 539). Esta diferenciação e esta independização da sociedade civil em face do Estado são a garantia da não absorção e da não instrumentalização da esfera pública e da soberania interna pelos interesses particulares da sociedade civil, de sorte que ela possa ser o espaço de efetivação e universalização da "liberdade negativa" (FD §§ 5, 151), enquanto condição necessária, mas não suficiente, da "liberdade afirmativa" (FD § 151 Ad.).

Esta tese tem, claramente, uma premissa oriunda e tributária de uma reconstrução especulativa da História, de uma Filosofia da História Universal, segundo a qual só o mundo moderno comporta a efetivação da liberdade segundo a universalidade do seu conceito, e não somente segundo o arbítrio ou capricho subjetivo, porque só nele a Idéia do Estado "adquiriu a sua forma infinita" (FD § 273 A). Isto significa, para Hegel, "a formação plena (Ausbildung) do Estado em direção à monarquia constitucional", cuja "configuração" "é aquilo que está em causa na história universal do mundo" (ibid.) e na qual culmina a história constitucional, porque nela as três formas de Estado clássicas, a monarquia, aristocracia e a democracia, estão idealmente contidas como momentos totais.

 

4.  A constituição como organização racional do organismo político. 

A soberania é introduzida como a determinação fundamental da Idéia do Estado, concebida como um "organismo político", cuja organização racional define precisamente a "constituição política" do Estado. (FD §§ 267, 269) Constituição política é tomada, aqui, primariamente no sentido ontológico, como a estrutura racional do organismo político do Estado, e não no sentido de lei fundamental, embora o primeiro sentido não exclua o segundo, e a outorga de uma constituição pelo monarca seja uma das reivindicações políticas fundamentais do momento, à qual Hegel é inteiramente favorável. É preciso esclarecer aqui que o conceito de organismo político, que substitui no decorrer do século XIX o conceito de corpo político, predominante nos séculos XVII e XVIII, torna-se, e não só para Hegel, um dos conceitos centrais da discussão constitucional e da teoria do Estado no século XIX. Ele não é, em Hegel, uma metáfora naturalista, mas resulta da sua concepção especulativa da vida orgânica, enquanto forma de realização imediata da Idéia lógica (E § 216). Por isso, também, a estrutura lógico-conceitual Estado, enquanto efetividade da Idéia ética, é concebida como um todo orgânico, cujos membros e órgãos são, simultaneamente, "meios e fins uns para os outros", de sorte que a sua diferenciação e a sua aparente exterioridade são continuamente reconduzidas à unidade negativa para si do todo. (ibid.) Para além desse nível lógico-ontológico, o conceito de organismo opera, também, para Hegel, como uma bandeira política, pela qual ele marca a sua oposição ao mecanicismo das construções contratualistas e das concepções absolutistas do Estado, bem como às tendências jacobinistas e centralizadoras da Revolução Francesa, de um lado, e ao organicismo romântico, que culmina na sua crítica enfurecida à concepção patrimonialista de Estado de von Haller, fundada numa versão teológico-aristocrática do direito natural do mais forte (FD § 258 A), de outro lado.

A constituição política é, assim, a organização racional do Estado, concebido especulativamente como uma figuração efetiva da Idéia, que, como tal, se articula internamente segundo as determinações lógicas do conceito de vontade livre: a universalidade imediata auto-referencial, a sua particularização em diferenças que se tornam determinações efetivas, e a singularidade como negatividade infinita, isto é, como relação infinita da negação a si mesma, que constitui o ser-vivo singular como indivíduo, ao reconduzir as diferenças e determinações à universalidade. (Cf. E § 216) Dessa articulação dialética das determinações do conceito Hegel deriva, então, a sua teoria da divisão, ou mais exatamente, da diferenciação dos poderes: à universalidade corresponde o poder legislativo, à particularidade, o poder governamental, e à singularidade, o poder monárquico.

A organização constitucional do organismo político, é concebida, assim, ativamente como a sua auto-organização: ela consiste no "processo" da sua diferenciação interna em poderes, nas sua respectivas funções e atividades, que só são "determinações efetivas sólidas" desse organismo (FD § 270) graças à sua recorrente dissolução e conservação na "idéia do todo", precisamente por serem momentos ideais desse todo. (FD § 276) A idealidade da constituição política resulta, assim, de dois níveis dessa autodiferenciação "conceitual" do organismo político: 1) da já mencionada autodiferenciação do organismo político nos diferentes poderes, através dos quais, devido à estrutura lógico-conceitual desses poderes, a universalidade substancial do Estado se "pro-duz/traz à tona" (hervorbringt) de maneira necessária", exatamente porque ela se auto-pressupõe à sua produção ou emergência (hervorgehen) (FD § 269 e Ad.); resulta 2) da estrutura conceitual interna dos próprios poderes enquanto momentos totais do todo, isto é, do fato de que cada poder é, respectivamente. em relação aos dois outros, uma totalidade que os contém em si, de sorte que estes atuam no seu interior do momento totalizador como momentos subordinados. Graças a esta estrutura, eles se contêm alternativamente como momentos e se totalizam enquanto diferentes pelo "modo de relacionamento" (Verhältnisweise) diferente dos dois outros respectivos momentos internos nele contidos, de sorte que nessa sua implicação recíproca enquanto momentos totais eles constituem "um só todo individual" (FD § 272).

 

5.  O conceito especulativo de soberania: o ‘idealismo da soberania’ e a idealidade das instituições políticas e de "toda legitimação particular". 

O conceito especulativo de soberania é a expressão política, 1) dessa simultânea autodiferenciação e auto-resolução dos poderes, das suas funções e atividades, autodiferenciação e resolução estas que constituem a idealidade desses poderes, funções e atividades, enquanto momentos totais do todo, que, por integrarem, cada um, alternativamente, os outros dois em si, definem a racionalidade da constituição enquanto organismo político, e, 2) da derivação desses poderes a partir da "idéia do todo" e da sua simultânea confluência na relação negativa do todo a si mesmo, a qual constitui, como momento da singularidade, a "raiz última" desses poderes e funções. (FD §§ 276-278) A "unidade substancial" enquanto "determinação fundamental do Estado político", emerge, portanto, da idealidade desses momentos totais (FD § 276), que só têm realidade verdadeira, – "efetividade objetiva" (FD § 269) – enquanto são simultaneamente "dissolvidos e conservados [...] na Idéia do todo", e enquanto "derivam" da relação negativa do todo a si mesmo. Esta auto-relação negativa do todo a si – "a singularidade como negatividade infinita" (E § 216) – constitui a subjetividade desses poderes e funções, "o seu ser-si mesmo simples" (FD § 276). Por isso, a solidez e a verdade dessas determinações diferentes não está na sua rigidez e na sua tendência a "subsistir e ser para si", mas na sua constante dissolução no todo, que garante, precisamente, a fluidez da vida e a unidade substancial do organismo através da "idealidade" dos momentos diferentes.

Esta é a armação especulativa da reformulação hegeliana da soberania moderna. É, provavelmente, a recusa por Hegel tanto da soberania monárquica fundada na autoridade divina, quanto das diferentes formas de fundação contratual da soberania, – seja daquelas formas que derivam uma soberania popular diretamente de um acordo entre as vontades contratantes, inspiradas por Rousseau, seja das que, partindo de um pacto de sujeição, derivam alguma forma de soberania monárquica, vinculada constitucionalmente, ou ligada a uma representação parlamentar de tipo fiduciário, – o que leva Hegel a deslocar a questão da soberania para um outro patamar conceitual e normativo. Ele desvincula a questão da soberania das concepções que a tratam primeiramente a partir da pessoa ou da assembléia de pessoas que seriam os seus portadores e/ou detentores, para concebê-la como a propriedade fundamental, como a própria "personalidade do Estado" (FD § 279 A).

Assim como o conceito, na sua articulação lógica, é a alma do organismo vivo, entendido como a forma de realização imediata da Idéia lógica (E § 216), analogamente a soberania é a alma do organismo político do Estado, cuja organização racional é a constituição Ela consiste, como vimos, 1) na idealidade dos poderes e das suas funções e atividades, que nem subsistem separados por si (FD § 276, 278), nem são "propriedade privada" dos indivíduos que as executam, como no Estão patrimonialista, mas que, no Estado constitucional moderno, estão vinculadas a eles "de maneira exterior e contingente", mediante a demonstração pública da aptidão para o seu exercício (FD § 277); 2) no enraizamento último desses poderes e funções na unidade substancial do Estado, constituída pela sua "subjetividade", – que é o seu "si-mesmo simples" (einfaches Selbst) (FD §§ 276, 278), – entendida não como uma entidade coletiva ou um sujeito meta-empírico, mas como o poder de autodiferenciação interna da vontade substancial universal, que está na base do Estado como Idéia, e que, enquanto "se sabe e se quer", define o "espírito de um povo" organizado constitucionalmente. Esta é a construção especulativa da "soberania interna" do Estado. (FD § 278 A).

A inovação categorial desta tese, que define a soberania como a personalidade do Estado, permaneceu muitas vezes encoberta pelo fato de Hegel tratar da soberania na rubrica sobre o "poder do príncipe", vinculando-a imediata e inseparavelmente com o princípio monárquico, a partir do argumento que a raiz última dessa idealidade da diferenciação político-institucional do Estado, a sua subjetividade constituída pela negatividade infinita da singularidade, só existe num sujeito numericamente um, no príncipe. Assim a soberania como propriedade fundamental do todo político existe unicamente e de forma imediata no monarca, enquanto "um indivíduo", que incorpora institucionalmente a individualidade do Estado e o elemento da decisão em última instância. Mas é legítimo, também do ponto de vista da lógica especulativa, distinguir a "negatividade infinita" própria da singularidade lógico-conceitual, que constitui a subjetividade do todo, da singularidade imediata, que constitui esta subjetividade enquanto ‘um’ sujeito, enquanto este indivíduo.

Por isso considero correta e heuristicamente produtiva a interpretação de Klaus Hartmann, segundo a qual a concepção da soberania como personalidade do Estado é, em princípio, "indiferente" à sua vinculação imediata com o princípio monárquico, mesmo que Hegel argumente que a personalidade só existe como pessoa individual; e ela é, segundo Hartmann, mais indiferente ainda, em relação à designação dessa pessoa pelo princípio dinástico da hereditariedade, ainda que, para Hegel, o próprio conceito de singularidade imediata da pessoa enquanto ‘este’ indivíduo já contenha a "determinação da naturalidade", isto é, a sua destinação à função de monarca "em virtude do nascimento" (FD § 280). Esta ‘indiferença’, ou mesmo, independência da soberania, enquanto personalidade do Estado, da sua incorporação no monarca (princípio monárquico) e, também, da sua designação hereditária (princípio dinástico), acontece, com efeito, como aponta Hartmann, em Estados constitucionais com representação parlamentar e, também, em Estados fundados na soberania popular, que podem delegar a soberania a um órgão do Estado, ao qual é atribuída a função de decisão em última instância.

Mas também é inegável, em face da coerência interna da argumentação hegeliana, que esta é uma hipótese que explora possibilidades conceituais que o contexto imanente da teoria só autoriza parcialmente, pois, para Hegel, é precisamente a ausência de fundamentação, tanto do fato de existir uma instância de decisão última da vontade soberana (o mero "ápice da decisão formal", cujo "lado objetivo" em todo regime constitucional está fundado na lei, FD § 280 Ad.), quanto da escolha do monarca enquanto indivíduo, o que precisamente constitui a "majestade do monarca" (FD § 281). Hegel estiliza a "unidade inseparável" dessa dupla "imediatez, interna e externa", a de que haja uma instância de decisão final e a de que cabe à sucessão hereditária indicar o indivíduo que encarna esta instância, como a garantia mais eficaz da "unidade efetiva do Estado", pois ela subtrai essa unidade à esfera do arbítrio e à luta das facções políticas. Neste ponto não parece haver dúvida quanto à convicção monárquica pessoal de Hegel, fundada, além disso, no "institucionalismo forte" da sua teoria, pois ele via no princípio dinástico o obstáculo mais eficaz contra o "destroçamento do poder do Estado" (FD § 281), que o exemplo contemporâneo da divisão da Polônia lhe mostrava. Por isso, também, inspirando-se no constitucionalismo monárquico de Benjamin Constant, ele coloca "a majestade própria do monarca, enquanto subjetividade que decide em última instância, acima de toda responsabilidade pelas ações do governo" (FD § 284).

 

6.  A dupla manifestação do ‘idealismo da soberania’ na soberania interna e na soberania externa. 

O cerne especulativo da soberania enquanto "personalidade do todo político" (FD § 279 A), é, assim, "o idealismo que constitui a soberania" (FD § 278), que exprime a fluidez e a recondução à unidade da diferenciação interna da vida orgânica, entendida como a forma imediata da Idéia (E § 216). É o mesmo idealismo, de resto, que atua, diz Hegel, no princípio especulativo fundamental de toda a sua filosofia (FD § 278 A), o princípio da ‘negação auto-referencial’, que preside à lógica do conceito de vontade livre, e que se articula mediante a relação negativa da universalidade imediata a si mesma, graças à qual esta se particulariza em diferenças e se determina à singularidade. Ora, assim como a singularidade constitui "a verdadeira subjetividade do conceito", assim também a relação negativa do todo político a si mesmo através da idealidade dos seus poderes e instituições é o que constitui a verdadeira subjetividade do Estado, a sua soberania interna.

Ora, é precisamente dessa relação negativa e infinita do Estado a si, constitutiva da soberania, que resulta a sua individualidade e, ao mesmo tempo, a sua relação de exclusão a outros Estados, igualmente individuais. Daí que a pluralidade de Estados não seja, para Hegel, meramente um dado histórico ou geográfico, mas uma implicação ontológica da individualidade enquanto é ela "um uno excludente", isto é, enquanto a individualidade é "um momento da própria Idéia de Estado" (FD § 259 Ad.). Com isso Hegel mostra que a pluralidade dos Estados está implicada na Idéia de Estado, e que, por isso, a soberania moderna é, necessariamente, ao mesmo tempo soberania interna e externa. Assim, a pluralidade dos Estados soberanos é derivada da relação negativa e infinita que define a soberania interna enquanto subjetividade do Estado individual.

Esta derivação da pluralidade dos Estados, que parte da auto-relação negativa da totalidade ética a si mesma, já está presente no artigo sobre o Direito Natural: ela é, como mostrou Bourgeois, um desdobramento, no campo ético, de uma tese da Filosofia da Natureza de Schelling, no sentido de que o todo orgânico só sai da sua indiferenciação e se organiza em suas diferenças internas, a fim de constituir a sua identidade como indivíduo, na medida em que essa identidade é, imediatamente, diferença de si. Quer dizer, a diferenciação interna do organismo é, imediata e simultaneamente, a diferenciação de si como indivíduo em face de outros indivíduos. Nos termos da Filosofia do Direito, a negatividade da soberania interna, assumida como diferença própria, aparece necessariamente como relação de negatividade externa entre Estados igualmente soberanos. Numa palavra, a negatividade da soberania interna, enquanto idealidade das diferenças institucionais políticas e sociais finitas, é, logicamente, uma relação de excludência recíproca entre diferentes soberanias.

Esta é a razão pela qual Hegel recusa a perspectiva de um Estado mundial, que para ele implicaria a contradição de ter de ser um único Estado e, ao mesmo tempo, de só poder ser um enquanto uno excludente de outros. Assim, a lógica especulativa da soberania moderna, fundada nessa individualidade estatal constituída pela relação infinitamente negativa do todo político a si mesmo, concebido como um uno excludente (FD § 321), apreende e enuncia com implacável perspicácia o fundamento trágico da história da soberania moderna. A fraqueza ou a parca efetividade das instituições mundiais que procuram representar uma universalidade pública transnacional, bem como a fragilidade do Direito Internacional Público perante as vontades particulares soberanas mais fortes ou hegemônicas, de um lado, e a erosão da soberania interna e da sua legitimidade pelos circuitos da acumulação financeira, regida pelos interesses privados de organizações transnacionais particularistas, que não representam os interesses da humanidade ou da maioria dos Estados soberanos, de outro, testemunham, ainda hoje, a importância e a ambivalência da soberania moderna no sistema internacional de Estados. Por isso, em perspectiva histórica, se, por um lado, a formação de uma soberania interna promoveu a emancipação política dos povos, ela também se tornou, por outro, uma instituição de legitimação da opressão interna dos mesmos e de expansão hegemônica dos particularismos nacionais.

Por isso a guerra é, para Hegel, não apenas uma contingência exterior da soberania moderna, mas uma ‘necessidade formal ou relativa’, que pertence, como a paz, à própria natureza da relação entre os Estados soberanos. Daí a sua conhecida e freqüentemente mal interpretada recusa do projeto kantiano de uma paz perpétua: no horizonte da modernidade política, constituída visceralmente pela soberania, Hegel não vê como o Direito Público Internacional possa se impor e sobrepor, com força imperativa, aos particularismos das soberanias estatais. O conceito de soberania adquire nesta perspectiva um novo relevo, na medida em que Hegel interpreta a diferença entre a situação de paz e a situação de necessidade constringente (Notstand), seja esta interna (estado de urgência ou de exceção), seja externa (a guerra), como dois modos diferentes de manifestação do idealismo da soberania. A situação de paz e a situação de necessidade constringente não são senão duas maneiras de aparecimento (Erscheinung) da idealidade finita não só das instituições políticas (na esfera da constituição política), mas, também, da que perpassa as instituições sociais e os direitos baseados na propriedade privada na esfera da sociedade civil. Enquanto na situação de paz as instituições políticas e sociais subsistem nas suas determinações sólidas e a sua idealidade permanece latente, a situação de necessidade constringente, interna ou externa, não só faz aparecer, mas torna efetiva essa idealidade das diferentes instituições, revelando-as como momentos finitos da infinitude negativa da soberania interna, "em cujo conceito simples o organismo [político] conflui" (FD § 278 A). Nesta situação, diz Hegel, "aquele idealismo [da soberania] chega à sua efetivação própria" (ibid.).

A verdade e o significado profundos dessa continuidade entre a idealidade das instituições políticas e dos interesses particulares da vida civil na soberania interna, de um lado, e a idealidade que a situação de guerra põe e torna efetiva, de outro, mostra-se para Hegel no caso dos povos que, não tendo sido capazes de se organizar constitucionalmente numa soberania interna, acabaram sendo subjugados por outros povos: como diz Hegel, "a sua liberdade morreu no temor de morrer", quer dizer, temendo "suportar a soberania interna" ou não conseguindo organizá-la, também não se empenharam com suficiente energia pela sua soberania externa.

 

7.  A divisão da Idéia de Estado nas esferas ideais da sua finitude como manifestação da soberania interna. 

Mas além desta dimensão especificamente política do ‘idealismo da soberania’, em que se revela a idealidade das instituições políticas e a continuidade profunda entre a soberania interna e a soberania externa, há uma terceira dimensão desse idealismo, que não se refere mais estritamente à organização constitucional do Estado político e à relação indissolúvel entre a soberania interna e a soberania externa, mas ao modo da sua atuação nas instituições sociais e nas esferas de realização autônoma dos interesses particulares da sociedade civil. O Estado enquanto Idéia ética e "espírito de um povo", isto é, "enquanto lei que penetra e perpassa todas as relações desse povo" (FD § 274) e como o universal abrangente de todas as relações jurídicas, morais, familiares, sociais e políticas, que define a constituição lato sensu da totalidade ético-política, desenvolve e efetiva a "racionalidade [da constituição política] no âmbito das esferas da família e da sociedade civil" (FD § 265). Esta atuação do Estado "nas esferas do direito privado, do bem-próprio (Wohl) privado, da família e da sociedade civil" se apresenta de duas maneiras: "por um lado, ele é uma necessidade exterior e o poder superior a elas" (FD § 261), que assegura a subordinação dos interesses privados ao interesse público, e aparece como força imperativa e como direito coercitivo em face dos interesses particulares e das corporações, que querem instrumentalizar o Estado para seus fins próprios; "por outro lado, ele é o fim imanente dessas esferas" (FD § 261), que assegura a efetivação da "liberdade concreta" (FD § 260), isto é, a união da vontade livre universal, objetiva, e da vontade livre singular, subjetiva, que é, igualmente, "a união da liberdade e da necessidade" (FD § 265). Esta interpenetração recíproca da liberdade substancial e da liberdade subjetiva, da liberdade e da necessidade, constitui a racionalidade do Estado moderno e "a efetividade da liberdade concreta" (FD § 260).

"O vigor e a profundidade prodigiosos" do "princípio dos Estados modernos", consiste, então, precisamente, em criar uma esfera pública, que, elevando, em princípio, todo indivíduo à qualidade universal da cidadania, permite à sua liberdade subjetiva uma realização para além da esfera ética restrita da família e do entrelaçamento cego dos interesses particulares no "sistema de dependência omnilateral" da sociedade civil, no qual o indivíduo tem de se inserir para assegurar a sua conservação como "um elo da cadeia dessa conexão" (FD §§ 183,187). Liberando o indivíduo dos vínculos éticos tradicionais e dos horizontes culturais particularistas dos seus interesses imediatos, a universalização da cidadania possibilita ao indivíduo uma liberdade subjetiva independente do Estado e até mesmo contra ele. Embora Hegel não conheça a figura de direitos subjetivos públicos que se possam fazer valer processualmente contra o Estado, a atuação do Estado como "fim imanente" na sociedade civil, assegurando "a unidade do seu fim-último universal (Endzweck) e do interesse particular dos indivíduos" (FD § 261), não exclui teoricamente esta possibilidade. Nesta perspectiva o idealismo da soberania interna revela o sentido ao mesmo tempo republicano e liberal que ele adquire em Hegel, pois é precisamente esta atuação imanente da soberania interna, enquanto fim imanente das esferas de interesse e das instituições da sociedade civil, que confere ao Estado o "vigor" que ele alcança como unidade do interesse público e do interesse particular dos indivíduos. A "liberdade concreta" designa esta universalização da cidadania assegurada pela soberania interna, que permite à liberdade individual o desenvolvimento pleno dos seus interesses particulares bem como "o reconhecimento do seu direito", desde que ela assuma a ultrapassagem passagem necessária e a ‘suspensão’ (Aufhebung) desses interesses no interesse universal (FD § 260).

Esta abrangência da sociedade civil e da família pelo Estado no sentido lato, que garante a integração da vida social e política e preserva a substância dos interesses privados no interesse universal (FD § 270), só é possível graças ao que Bourgeois chama de "concretização política da essência ontológica da Idéia absoluta" na Idéia de Estado. Assim como a Idéia absoluta realiza a forma mais alta da sua liberdade na livre decisão de ‘exteriorizar-se" (sich entäussern), e, assim, se "despojar’ da sua própria liberdade infinita em direção à alteridade da natureza e como natureza (E § 244), de maneira análoga a Idéia do Estado moderno, – este "deus mortal" na linguagem de Hobbes, ou o "divino-terreno efetivo", na linguagem de Hegel, – revela o "vigor e a profundidade" do seu poder soberano na sua liberdade de entregar (entlassen) a diferença particular a uma alteridade "autônoma" (selbständig), que pode expandir-se até à oposição, precisamente porque ela já está sempre, pela sua idealidade finita, reconduzida à "unidade substancial" (FD § 260).

Por isso, como elucida Bourgeois, enquanto o Estado antigo impede a liberdade pessoal do indivíduo e a determina somente por um estatuto de cidadania particularista ligada ao seu nascimento livre, e, enquanto o Estado cristão moderno desvincula o indivíduo de tal maneira do cidadão que ele é inteiramente privatizado, de sorte que o Estado só pode ser concebido como um artefato construído pelo acordo dos indivíduos contratantes isolados, o Estado moderno, pela universalização do princípio da cidadania, libera o indivíduo na sua liberdade subjetiva da cidadania estatuária antiga, permitindo o desenvolvimento pleno da sua "particularidade subsistente por si" (FD § 185), sem que ela destrua a atuação da soberania interna como "fim imanente" e "poder superior". Portanto, por esta sua estrutura ontoteológica, a Idéia de Estado lato sensu, enquanto espírito de um povo e espaço público da soberania interna e da cidadania, confere aos indivíduos singulares, na sociedade civil, "o direito à liberdade subjetiva", ao desenvolvimento autônomo e à satisfação da sua particularidade.

 

Este sentido ontoteológico da Idéia de Estado, enunciado no § 262, contrapõe à dialética ascendente da gênese (Entstehung) conceitual do Estado no movimento imanente de auto-superação da sociedade civil em direção a ele, a dialética descendente da sua divisão nas esferas ideais da sua finitude, a família e a sociedade civil, a partir das quais ele retorna, então, a si como "espírito efetivo infinito para-si", que se auto-pressupõe como fundamento da reconstituição ética das relações sociais atomizadas. A tese do artigo sobre o Direito Natural, segundo a qual a "totalidade ética absoluta’, que define o Estado no sentido lato, só se torna concreta e efetiva mediante a sua diferenciação interna numa eticidade absoluta e numa eticidade relativa, pela qual esta última é novamente "reconduzida à indiferença" e assim "reconciliada" com a primeira (DN, IV, 458; 145), é, aqui, reformulada nos termos de uma filosofia do espírito objetivo, que só na Idéia do Estado se torna plenamente efetivo e infinito, precisamente mediante o seu retorno a si a partir da idealidade da sociedade civil e da família enquanto esferas finitas ideais, nas quais ele se divide a si próprio, para entregá-las à sua autonomia relativa. É conhecida a crítica demolidora a que Marx submete essa tese da subjetivação da Idéia do Estado e do seu retorno a si a partir da sua auto-cisão, identificando nela o "misticismo lógico" e o "falso positivismo" da dialética especulativa. Mas esta teses pode, também, para além dos seus pressupostos ontoteológicos, ser perspectivada e lida em chave normativo-utópica, interpretando-se o idealismo da soberania na relação do Estado com a sociedade civil e com a vida privada como a primazia fundadora da universalidade da esfera público-política sobre a particularidade daquelas.

Aqui a tese do idealismo da soberania pode mostrar a sua atualidade heurística: assim como a idealidade dos interesses e legitimações particulares da sociedade civil implica a sua superação categorial em direção à esfera pública da soberania, que, pela sua infinitude, é a condição da autonomia relativa e da dinâmica própria do econômico, do social e do jurídico, impedindo que eles venham a destruir o espaço e a condição da sua autonomia verdadeira, que é a soberania interna do poder público, analogamente é imperioso pensar a superação categorial desta sociedade civil transnacional, em vias de formação no bojo da mundialização capitalista, em direção a instituições públicas transnacionais, que se constituam politicamente como esferas de universalidade atuantes na base da dinâmica antagônica desta sociedade civil transnacional. A concepção especulativa de soberania revela, aqui, um potencial critico e normativo em face desta unificação do mundo promovida pela subsunção real do saber e do conjunto das formas de vida na concorrência capitalista, pois se há virtualidades universalistas na mundialização capitalista, que transcendem legitimamente o particularismo das soberanias estatais nacionais na perspectiva de uma unificação da humanidade, ainda que a contrapelo, no sulco da formação de uma sociedade civil transnacional, esta mundialização o faz, atualmente, no mais das vezes, instrumentalizando a soberania do Estado para desmantelar o espaço público da antiga soberania nacional e para bloquear a formação de espaços públicos transnacionais, que são, por enquanto, a única condição que pode impedir, como diria Hegel, que o "desenvolvimento da particularidade subsistente por si", entregue exclusivamente à sua lógica, se auto-destrua pela destruição do "seu conceito substancial" (FD § 185).

Endereço do Autor:

UNICAMP/IFCH - Departamento de Filosofia

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Barão Geraldo - Campinas/SP
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