“O AMOR COMO PAIXÃO”: SOCIEDADE E RELAÇÕES ÍNTIMAS EM NIKLAS LUHMANN [1]

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Antônio de Salvo Carriço

Fábio Pimentel De Maria da Silva

Heloisa Helena de Oliveira Santos

Maurício Hoelz Veiga Júnior [2] 

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CARRIÇO,  Antônio de Salvo; SILVA, Fábio Pimentel De Maria da; SANTOS, Heloisa Helena de Oliveira ; Veiga Júnior, Maurício Hoelz. "O amor como paixão": sociedade e relações íntimas em Niklas Luhmann. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p.91-100, 30 mar. 2006. Anual. Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br
 

Resumo: Este artigo aborda as idéias de Niklas Luhmann presentes na obra “O Amor como Paixão”, onde o autor investiga a construção social do sentimento “amor” e sua “codificação” pela literatura. São expostos alguns dos pressupostos teóricos de Luhmann, sendo apresentada em linhas gerais sua teoria dos sistemas e meios de comunicação simbolicamente generalizados. O foco do artigo incide sobre a visão do autor acerca das relações íntimas e suas relações com a modernidade e a literatura, responsável pela disseminação do código “amor”.

 

Introdução

 O que Romeu e Julieta de Shakespeare, o Soneto de Fidelidade de Vinícius de Moraes e grande parte das canções feitas ao redor do mundo têm em comum? Embora sejam muito diferentes em vários aspectos, estas obras se assemelham pelo fato de abordarem o amor. E quem pode dizer que nunca foi tomado por aquela sensação estranha, indescritível, que, embora plasmada em vários momentos nas mais diversas expressões artísticas, nunca foi capaz de receber uma descrição que abarcasse a amplitude do que é o Amor em sua totalidade?

A história da literatura romanesca está cheia de exemplos de aventuras em torno do sentimento mais adorado e odiado pelos poetas. Diversas obras apresentam grandes casos de amores impossíveis, de lutas incessantes, intrigas, invejas e finais quase sempre felizes, onde o amor é o estopim de enredos surpreendentes. Estudados por diferentes autores nas mais distintas áreas [3], os romances merecem atenção diante de sua popularidade. Dentre eles, o sociólogo Niklas Luhmann é representativo no que se refere à análise deste tipo de literatura. Por meio de uma obra original, “O Amor como Paixão: Para a Codificação da Intimidade”, o autor apresenta uma abordagem interessante sobre o papel da literatura como disseminadora de comportamentos na sociedade. Luhmann utiliza os textos como objeto para construir uma análise sócio-histórica da codificação das relações íntimas, demonstrando como elas se desenvolveram até a contemporaneidade.

Diante destes fatores, pretendemos neste trabalho analisar a referida obra de Niklas Luhmann, “O Amor como Paixão: Para a Codificação da Intimidade”, de modo a entender a utilização da literatura romanesca como objeto de análise para fins de compreensão da sociedade de uma forma mais ampla. Visamos apresentar as principais idéias presentes no livro, em especial, a teoria do amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado e sua função no que tange às relações íntimas. Buscamos também desenvolver uma análise especificamente voltada para a compreensão do papel dos romances no desenvolvimento da sociedade moderna. A fim de explorar ao máximo a obra do autor, buscamos ainda esclarecer alguns dos seus principais pressupostos teóricos. Pretendendo enriquecer esta discussão, outras obras do autor serão trazidas, de modo que possamos ainda tornar mais compreensíveis suas teorias.

Luhmann é considerado um dos mais importantes teóricos sociais do século XX. No entanto, no Brasil, ele ainda é bastante desconhecido entre os cientistas sociais. Algumas obras já estão traduzidas para o português. A maioria está disponível em edições de língua espanhola, com exceção das últimas obras, publicadas apenas em alemão. Diante da complexidade do autor, do pequeno número de obras traduzidas para a língua portuguesa e da importância do reflexo de suas contribuições não somente nas Ciências Sociais, mas também em outras áreas de conhecimento, este trabalho pode ampliar as discussões na área de teoria sociológica, na medida em que visa apresentar as idéias de Luhmann, tomando como referência a obra acima citada. Acreditamos também que a obra de Luhmann pode contribuir àqueles que se ocupam da Sociologia da Literatura, na medida em que o autor recorre à exemplificação por meio de romances e outras fontes literárias, apresentando uma perspectiva inovadora da literatura como participante na formação da estrutura da sociedade, de modo que a literatura apareça como meio de disseminação de um código. Como destaca o autor: “... o romance se constitui desde o século XVII em factor didáctico e orientador nas questões do amor ... Podemos apenas verificar que as personagens dos romances se comportam segundo um código” (Luhmann, 1991a: 10).

 

A teoria dos sistemas e os meios de comunicação simbolicamente generalizados

A teoria dos sistemas de Luhmann pretende ter alcance geral e ser aplicável a diversos domínios. Ela recebe aportes teóricos da cibernética, das neurociências, da biologia, e está em permanente diálogo com a teoria de sistemas elaborada por Talcott Parsons. Para Luhmann, como toda teoria, a teoria dos sistemas deve reconhecer a complexidade da realidade e servir como um instrumento para reduzi-la, disso dependendo sua validade.

A sociedade moderna se caracteriza por uma organização social baseada na diferenciação funcional, com um grau crescente de complexidade e individualização. A fim de explicar essa sociedade, o autor incorpora uma série de conceitos à sua teoria. A auto-referência, conceito proveniente da cibernética e com aplicações nas neurociências, é uma característica básica do sistema, já que é própria de todo sistema ser capaz de se diferenciar do ambiente que o cerca – do qual fazem parte outros sistemas. Juntamente com o conceito de auto-referência, o conceito de autopoiésis, elaborado por biólogos chilenos (Maturana), constitui a base da teoria dos sistemas. Os sistemas autopoiéticos são dotados da capacidade de realizar operações autoconstitutivas, ou seja, criar, a partir de si mesmos, as estruturas e os elementos de sua composição, reproduzindo-se dentro de um processo operacionalmente fechado.

Os sistemas auto-referentes se distinguem em três, com base em seus modos de operação autopoiética e nos modos como constroem seus espaços de operação e redução da complexidade. Os sistemas vivos têm como operação básica a vida, os psíquicos o pensamento e a consciência, e os sociais a comunicação. Cada um desses sistemas se diferencia em relação ao seu ambiente, formado pelos outros sistemas, e constrói seu modo de operação próprio.

O interesse de Luhmann volta-se para o estudo dos sistemas sociais, que compreendem a sociedade, as associações e as interações. Estes podem se diferenciar em subsistemas – direito, economia, política, religião, etc. –, cada um deles fechado operacionalmente e auto-referente, com um âmbito determinado de operação e de comunicações que delimitam seu ambiente e reduzem a complexidade de um modo especializado. A função dos sistemas sociais é reduzir a complexidade do mundo – que representa a unidade entre sistema e meio, e contém todos os sistemas e todos os meios – de modo a torná-la inteligível para os sistemas psíquicos. A redução da complexidade é feita, no interior dos sistemas sociais, por meio da comunicação. Esse problema traduz-se no enfrentamento da dupla contingência, que é explicada por Gabriel Cohn com referência ao conceito weberiano de "relação social": 

“Está em jogo o que se poderia chamar o dilema das condições iniciais da ação reciprocamente orientada. Numa situação envolvendo dois agentes que se preparam para agir cada qual conforme a ação do outro (cujas intenções não podem prever), cada agente tem de considerar as possibilidades abertas à sua própria ação e também à do outro. Daí a dupla contingência” (COHN, 1998: s.p.).  

A sociedade não é formada de “seres humanos”. Estes fazem parte de sistemas psíquicos, que têm a consciência e a linguagem como modo de operação próprio e que formam o ambiente da sociedade. Os indivíduos estão presentes na sociedade apenas como endereços da comunicação, que é o modo de operação dos sistemas sociais. Entre sociedade como sistema social e indivíduos como sistemas psíquicos existe um acoplamento estrutural, o que significa que estes são indispensáveis ao sistema social. Sem o concurso dos indivíduos, a sociedade teria de absorver níveis de complexidade incompatíveis com o seu bom funcionamento.

A comunicação é para Luhmann a síntese de um processo de seleção que envolve uma mensagem, uma informação e a compreensão da diferença entre uma e outra. Segundo Armin Mathis:

"Alter diz: Está chovendo. Isto é a mensagem, que é resultado de uma seleção. Ele poderia ter dito outro coisa, ou poderia ter ficado calado. "Está chovendo", a informação, é também uma seleção, porque divide o mundo entre aquilo que foi dito, e aquilo que está excluído (está fazendo sol). Essa informação não é resultado de uma transmissão - como no entendimento comum da comunicação - que passou de um (que deixou de tê-la) para outro (que passou a tê-la), mas sim, produto da construção de uma seleção específica. A compreensão da diferença entre mensagem (Alter diz) e a informação (está chovendo) realiza a comunicação, que se torna um acontecimento de curta duração. Tudo o que aconteça em seguida, já não faz parte da unidade da seleção do ato comunicativo" (MATHIS, s/d.:10). 

Depreende-se daí que, ao mesmo tempo em que a comunicação reduz a complexidade através da seleção, aumenta a complexidade ao introduzir informação no sistema, resultando num paradoxo.

Para Luhmann, comunicação gera comunicação dentro do sistema social, permitindo a sua manutenção. Portanto, como a comunicação é um operação interna, não ocorre entre sistema social e ambiente, pois o sistema não recebe informação do ambiente.

A comunicação como acontecimento é altamente improvável por três motivos: (a) é improvável que a comunicação aconteça através da compreensão da diferença entre mensagem e informação; (b) é improvável que a mensagem atinja o destinatário; e (c) é improvável que a comunicação seja aceita. Existem meios para enfrentar essas improbabilidades. A língua pode reduzir o problema da compreensão, os meios de difusão podem viabilizar o alcance do destinatário e os meios de comunicação simbolicamente generalizados criar condições para a aceitação da comunicação.

Tais meios de comunicação simbolicamente generalizados consistem em "dispositivos semânticos que por si só proporcionam, apesar de tudo, o sucesso às comunicações improváveis" (LUHMANN, 1991a: 19). Eles têm como função motivar a aceitação da comunicação através do modo de selecionar. Fazem isso através da utilização de uma semântica baseada na realidade, como, por exemplo, o poder, o dinheiro e, no presente caso, o amor. O amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado tem a função específica de "possibilitar, cuidar e fomentar o tratamento comunicativo da individualidade" (IDEM: 14).

  

A improbabilidade das relações íntimas e o amor como meio de comunicação

 Pode-se falar do aumento das relações impessoais na sociedade moderna no sentido de que é possível estabelecer mais facilmente comunicações de sucesso, mesmo quando não conhecemos nossos interlocutores em profundidade. Luhmann aponta, contudo, que, diferentemente do juízo comum, a sociedade moderna não deveria ser reduzida a uma teia de relações impessoais; essa interpretação seria resultado de uma visão que privilegia os aspectos econômicos, os quais seriam, segundo o autor, apenas um dos possíveis fatores que comporiam as relações sociais. Na verdade, ao mesmo tempo em que a sociedade moderna é marcada, embora não exclusivamente, por um aumento das relações impessoais, também as relações pessoais são intensificadas.

Ou seja, por um lado nossa sociedade se caracterizaria por impessoalidade e diferenciação funcional; por outro, permitiria relações sociais onde um maior número de características individuais e particulares da pessoa tornam-se significativas, relações que o autor denomina de interpenetrações inter-humanas ou relações íntimas. A investigação de Luhmann parte, portanto, da constatação da coexistência, na sociedade moderna, de um nível crescente de relações impessoais e de uma intensificação das relações íntimas, que passam a ser reguladas por um código específico, capaz de aumentar a possibilidade de interação entre o alter e o ego nas relações íntimas.

A sociedade moderna apresenta então uma diferenciação crescente dos meios de comunicação simbolicamente generalizados, e uma também crescente autonomia dos sistemas. Os indivíduos se tornam diferenciados na medida em que participam dos diversos subsistemas de formas variadas. Assim, por exemplo, o sistema da economia se autonomiza cada vez mais em relação ao sistema da política (o que se comprova quando pensamos na diminuição da presença do Estado na economia, nas últimas décadas, no Brasil e no mundo). A própria burocratização do Estado, assinalada como uma das principais marcas da racionalização na modernidade, é um fenômeno em que se nota como o meio de comunicação "poder" fica cada vez mais isolado dos meios de comunicação de outros sistemas, como o dinheiro, meio de comunicação do sistema da economia. Devemos ressaltar, à luz dos exemplos imaginados, que a teoria social de Luhmann pode conduzir a uma controversa naturalização da proposta política liberal. 

Esta múltipla participação aumenta a possibilidade das relações impessoais e abstratas. Como conjugar esse processo com a já apontada intensificação das relações íntimas? Num mundo em que as relações sociais assumem cada vez mais a forma da impessoalidade, a individualidade corre riscos, já que as características pessoais não são tão relevantes. Para que a identidade individual seja mantida, torna-se necessário encontrar uma instância de confirmação para ela, isto é, um ponto de apoio em que ela possa se espelhar e se afirmar. O amor é o meio de comunicação que permite o diálogo entre a crescente individualidade proporcionada pela diferenciação e a conseqüente necessidade de um “mundo próximo”.

Contudo, assim como ocorre em todos os casos de comunicação, as relações íntimas também apresentam o problema da improbabilidade. De acordo com Luhmann, esta comunicação é ainda mais improvável diante da grande diferenciação presente nas características individuais daqueles em que a comunicação é estabelecida. Cada uma das partes elabora uma relação para com o mundo, na medida em que seleciona seus pontos de  vista particulares. As relações íntimas supõem a comunicação de mensagens altamente personalizadas, o que implica uma maior improbabilidade de tal comunicação.

Desta forma, esta comunicação se desenvolve de um modo específico: é necessário que a parte que recebe confirme ou recuse o projeto egocêntrico de mundo que o outro faz. Atribui-se a alguém este papel complementar de confirmação do mundo, embora se pressuponha que tal projeto seja único e particular. Esta confirmação se dá através do comportamento do outro: espera-se que ele atente constantemente para as características e para a vida da parte que comunica.  As relações íntimas em uma sociedade cada vez mais impessoal seriam possíveis porque o amante possui, em um mundo esquematizado por ele próprio, um papel de destaque como aquele que é amado por um outro, ou seja, ele acredita ser também o centro do mundo projetado pelo amado.

O autor não percebe o amor como um sentimento, mas como um meio de comunicação simbolicamente generalizado, responsável especificamente por possibilitar as relações íntimas. O amor como código não deve ser confundido com o sentimento amor. É, antes, o código do amor que possibilita o sentimento do amor. Um código age no sentido de reduzir a complexidade da realidade e possibilitar uma relação social, ou seja, possibilitar a comunicação, no sentido de reduzir sua improbabilidade. Ele nada mais é que uma base mais ou menos segura, a partir da qual as comunicações se tornam menos improváveis. A linguagem, por exemplo, permite uma chance de que se obtenha sucesso na comunicação, mais do que se simplesmente soltássemos sons ao acaso. No entanto, os códigos são reflexo das necessidades impostas pela realidade, e têm de se modificar para satisfazê-la. Na medida em que a sociedade tornava-se mais complexa, mais individualizada, tornou-se necessária a criação de um código que dissesse respeito às relações pessoais, que possuem um grau de improbabilidade ainda mais elevado. O amor, desta forma, seria o responsável pela comunicação da individualidade.

As relações sociais, como foi mencionado, são dificultadas pelo problema da dupla contingência, que atua com maior intensidade nas relações íntimas. O código do amor vem diminuir tal improbabilidade da comunicação. Na medida em que esse meio de comunicação permite que a individualidade seja confirmada no outro, ele estabelece confiança, o que facilita a comunicação. Esta confiança permite, por outro lado, a ampliação das interações e da informação gerada na relação íntima, o que aumentaria a complexidade mais uma vez. Luhmann utiliza a literatura amorosa para exemplificar a constituição do código do amor.

 

Literatura: disseminação do código e função dos romances

 E as inglesas, que procuram orientar-se por romances pré-vitorianos, têm até de esperar por sinais visíveis de amor para o matrimônio, antes de poderem descobrir conscientemente o que é o amor (LUHMANN, 1991a: 8).

Esta passagem mostra como a literatura pode ser útil à disseminação do código do amor. Os romances, em seus textos, apresentam uma linguagem, um modelo de comportamento e o próprio modo de sentir presentes nas relações íntimas, ou seja, eles ensinam ao leitor a comunicação da intimidade (principalmente às leitoras, pois o público leitor masculino só se constitui tardiamente). Assim, a literatura funcionou estruturando a própria sociedade em que se desenvolvia, num processo de ida e volta, dado que, ao mesmo tempo que regulava estruturando, estava inserida no contexto em que era produzida e onde se davam as relações que representava.

A literatura aparece como uma forma bastante eficaz, para Luhmann, de disseminar o código do amor, pois este pode, ao contrário de outros meios de comunicação simbolicamente generalizados como o dinheiro e o poder, ser tratado com relativa abertura. Por meio da literatura, dos acontecimentos que se dão nos textos, o autor é capaz de desenvolver esta história do amor como codificador das relações íntimas. Para isso, faz referência às alterações nos comportamentos das personagens ao longo dos textos cronologicamente distintos, comportamentos que variam segundo as variações do código “amor”. Ao narrar situações onde o amante passa por incontáveis dificuldades para alcançar seu objetivo – o objeto amado, num primeiro momento, e o próprio amor, depois – o romance passa ao seu leitor um padrão de comportamento que se instala na sua personalidade, condicionando seu comportamento [4].

Se o amor deve ser visto não como um mero sentimento, mas como um meio de comunicação simbolicamente generalizado, então cabe investigar de que maneira esse código é constituído. Luhmann escolhe a literatura para empreender essa investigação. A literatura que tem como tema o amor reflete tendências do sistema de relações íntimas e exerce influência sobre esse mesmo sistema, realizando um movimento de dupla direção. Esse movimento é descrito por Luhmann da seguinte maneira:  

“ (...) as representações literárias, idealizantes e mitificantes do amor não escolhem ao acaso os seus temas e pensamentos diretores, reagindo antes deste modo à sociedade e respectivas tendências de mudança; refletindo, não de uma forma absoluta, os quadros de circunstâncias reais do amor, ainda que apresentados sob forma descritiva, resolvendo contudo problemas a aparecer, apresentando precisamente necessidades funcionais do sistema social sob uma forma utilizável pela tradição” (IDEM: 22).   

E a realização desse movimento não é algo que escapa ao senso comum: a literatura previne aqueles que se encontram dentro dos jogos amorosos reais. Na sedução, por exemplo, quem seduz aprende a seduzir, mas quem é seduzido, também aprende a saber quando está sendo seduzido, e aprende a se comportar num caso como este. Ou seja, a sedução atinge um nível novo de institucionalização – “de codificação”, na linguagem de Luhmann: “Já no século XVII se toma como certo: a dama leu romances e conhece o código, o que faz aumentar a sua atenção. Ela está avisada – e corre perigo por essa mesma razão” (IDEM: 36), e, neste caso, “pode ser perigoso o próprio ato de prevenir e o cônjuge é aconselhado a não prevenir a sua mulher contra os sedutores” (IDEM: 77). 

                Luhmann escolhe como ponto de partida de sua análise a França do século XVII, para ele o lugar e momento de formação de um código do amor apaixonado. Aí teria se operado o nascimento de um código de amor específico, nitidamente distinto daquele que prevaleceu na Idade Média, centrado na idéia de “serviço” e na veneração respeitosa da amada, como convinha a uma sociedade aristocrática rigidamente estratificada. Esse código do amor cortês foi extensamente veiculado pela lírica amorosa medieval, da qual aliás ele era apenas uma parte, já que essa literatura, espelhando a rigidez das divisões estamentais, também codificava o amor sensual e desligado da idéia de perfeição moral atribuída às mulheres nobres - as mulheres dos estratos mais baixos também eram cantadas por trovadores e poetas, porém de forma menos sublime, e às vezes mesmo mais vulgar. Essa lírica amorosa medieval não resiste ao processo de diferenciação funcional que substitui a estratificação como critério básico de organização social. No século XVII, a performance do amante não é mais vinculada à noção de um serviço prestado a uma mulher nobre, mas à decisão individual de amar (mesmo que seja para ceder ao sentimento involuntário da paixão). Assim, também a inacessibilidade da mulher não é mais garantida por um controle social externo (e estamental), e sim pela decisão da amada, o que se reflete na literatura pela classificação das mulheres em “précieuses” e “coquettes” (entre mulheres mais ou menos resistentes à sedução). Essa transição do amor cortês para o amor “passion” é um dos casos da diferenciação de sistemas que marca a passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna (por utilizar como material de referência para sua análise a literatura francesa, Luhmann permanece com o termo “passion”). O nosso caso especial consiste na autonomização semântica de um sistema (o sistema da intimidade), que passa a utilizar um meio de comunicação – o amor como “paixão” – que não mais se confunde com outros meios de comunicação, pertencentes a outros sistemas, como o poder como meio de comunicação do sistema político, o dinheiro como meio de comunicação do sistema econômico, a amizade como um meio de comunicação complementar de um sistema de relações íntimas, e a perfeição espiritual como um meio de comunicação do sistema da religião.

Romances “de segunda ou terceira classe” são tomados como referências para compreender o papel que a literatura exerceu como codificadora do amor “apaixonado”. Outra fonte de suma importância são as coleções de máximas e os tratados de costumes, espécie de ancestrais dos livros de auto-ajuda. Contudo, Luhmann acentua que os romances teriam exercido com mais eficácia que estes últimos a função de transmissão do código, já que era mais fácil assimilar o código quando apresentado implicitamente, por trás de uma narrativa. Lembremos também que foi somente a popularização da técnica de impressão que permitiu esse tipo de codificação do amor. Tais referências constituem, para Luhmann, material mais representativo, já que estas obras teriam tido uma difusão muito mais ampla do que os romances que vieram mais tarde a se tornar “clássicos”.

Vimos que o meio de comunicação “amor” – responsável pela conservação de um sistema de relações íntimas – teria se organizado, segundo Luhmann, a partir da idéia de “paixão”. Uma característica constante do código amoroso que se estrutura a partir do século XVII teria sido, portanto, a idéia de que o amor envolve um sofrimento involuntário. Embora seja tolerado como se fosse uma doença, ainda assim o amor recebe uma distinção especial – um “lugar de honra” – em virtude do papel específico que exerce dentro do âmbito do sistema social (a conservação do subsistema de relações íntimas). A auto-submissão do amante ao que ele representa como sendo a vontade do amado passa a ser o sinal característico do amor. Por outro lado, o empenho do amante se dirige a uma conquista, e por isso o amor aparece como algo paradoxal. Por ser paradoxal, quase esquizofrênico (“auto-submissão cativante, sofrimento desejado, cegueira que vê, doença desejada, prisão preferida, doce martírio”), o amor leva ao desregramento – não seguir nenhuma regra passa a ser a sua única regra - e o excesso passa a ser o padrão de comportamento do apaixonado. Uma “retórica do excesso” é desenvolvida, até para provar ao amado a probabilidade da constituição daquela comunicação “altamente improvável” que é o amor: 

“Uma distância mais ou menos marcada face à raison e à prudence faz parte da semântica e das exigências para representar o amor. Assim sendo, não se fornece uma boa imagem da passion sempre que se mostrar que se consegue dominá-la. A imposição do excesso simboliza por seu lado a diferenciação plena, precisamente uma violação dos limites impostos, sobretudo pela família, ao comportamento”. (IDEM: 84). 

Esse excesso só consegue ser suavizado pela “galanteria”, que é a imposição de uma forma – também veiculada literariamente - ao desregramento amoroso, tornando-o mais “civilizado” e palatável. Mais tarde, o amor passa a ser dito “indescritível”, como aquilo para que não se consegue reunir palavras. Essa valorização do amor o absolutiza, dando-lhe caráter de fundamento sem fundamentação, isto é, dotando-lhe de uma força justificadora que dispensa a justificação de si mesma. É deste modo que o amor consegue se diferenciar como um meio de comunicação específico, próprio de um sistema que não precisa recorrer a outros meios de comunicação, como o dinheiro, o poder, ou a honra estamental. Assim, “os pais cometem um erro quando não consultam o amor, antes de decidirem sobre o casamento de seus filhos. E no que diz respeito às diferenças entre estratos sociais, surge como argumento decisivo do amor o fato de este tornar iguais os amantes, abolindo as diferenças sociais entre eles” (IDEM: 126).

                Uma questão muito interessante discutida por Luhmann é o porquê de ter sido o amor, e não a amizade, o código que passou a reger com predominância as relações íntimas na modernidade. Neste ponto é possível vislumbrar com precisão a força da teoria dos meios de comunicação de Luhmann: o sistema da intimidade só pode se conservar através de um meio de comunicação que seja “plenamente diferenciável” dos meios de comunicação utilizados em outros sistemas. A amizade, ao se apoiar no critério da virtude, partilha de características comuns a outros meios de comunicação (ex.: a moral, a religião, os deveres públicos). O amor, pelo contrário, conseguiu atingir sua diferenciação plena, isto é, ser um meio de comunicação que basta a si mesmo: ama-se porque se ama, não sendo necessário recorrer a nenhum outro critério externo (como beleza, dinheiro, perfeição moral, etc). Além disso, a especificidade do meio de comunicação “amor” se deve em grande parte à sexualidade, ausente das relações de amizade e capaz de comunicar sentimentos estritamente individuais que são necessários à “constituição de um mundo próximo”, reclamada pela individualização crescente.

Luhmann também aborda o tema do casamento em sua obra, mostrando como essa instituição mudou sua relação com o amor ao longo do tempo. Se no século XVII o excesso e desregramento do amor se contrapõem a uma instituição ainda baseada em critérios rígidos de estratificação social - e não destinada a comunicar a individualidade -, ao longo do século XVIII e principalmente na época romântica a intensificação da diferenciação funcional faz com que o amor ganhe em importância na sua função de garantidor da individualidade. Sua generalização o leva a se associar cada vez mais ao casamento, chegando mesmo a se tornar a sua condição. Ao fazê-lo, o amor perde aqueles elementos que o caracterizavam como “passion”, e passa ser regrado e estável. Ao mesmo tempo, a vida íntima passa por uma notável transformação: a diferenciação do código do amor em relação aos outros códigos, estruturantes de outros subsistemas da sociedade, faz com que a vida familiar passe a ser dominada por um “sentimentalismo” (como apontam as vertentes “sentimentalistas” na literatura anglo-saxônica), distinguindo-se do código do poder que rege a política e que se refletia, na família, na rigidez da autoridade patriarcal. Assim, a mulher – e mais tarde também os filhos, podemos dizer - progressivamente deixa de exercer uma função de mera submissão na estrutura familiar.

O amor, portanto, atua como meio de comunicação de modos diferenciados ao longo do tempo: enquanto no século XVII a possibilidade de comunicação da individualidade era restrita, devido ao fato de a sociedade ainda se estruturar segundo critérios estamentais de estratificação, nos séculos seguintes a substituição dessa estratificação por uma diferenciação funcional cada vez mais complexa e inclusiva “dá asas” à expressão da individualidade, que atinge um ponto extremo no amor romântico.

No que diz respeito ao século XX, Luhmann aponta que o amor está perdendo sua marca distintiva de comunicação de uma individualidade bastante diferenciada. Isso ocorreria porque, após se tornar uma condição para o casamento à época do romantismo e ter também se difundido para a massa da população (lembremos que inicialmente o amor ocorria nas camadas aristocráticas), o amor também se tornou o modelo para os encontros mais casuais, perdendo sua “força” inicial. Isso tem efeitos perigosos para o casamento, já que essa instituição depende do amor enquanto meio de comunicação daquilo que é estritamente individual. Se o amor passa a não mais exercer essa função plenamente, tendo se “rotinizado”, então há o perigo de que o casamento, baseado nesse tipo de comunicação, perca sua estabilidade. O ideário do amor romântico estaria em declínio, apesar de continuar ser veiculado na literatura de entretenimento - e no cinema. Além disso, “parece que o trabalho de profunda reflexão sobre o código introduz já a mudança radical” (IDEM: 203).

 

Considerações finais

Estamos diante de um texto que pode ser considerado um desmistificador do amor, posto que, sem dúvida, ao percebermos o caráter de construção social de algo que o senso comum nos faz perceber como um dos sentimentos mais belos, é inevitável nos sentirmos desiludidos. Por outro lado, a perspectiva sociológica apresentada oferece um momento único de compreensão de uma teoria complexa referente a algo que, em muitos momentos, ainda aparece como inerente à natureza das pessoas.

Procuramos enfocar um aspecto fundamental dessa teoria: dada a crescente diferenciação funcional da sociedade moderna e a conseqüente ampliação de relações impessoais, consolidou-se um código que, ao possibilitar as relações íntimas, tornou-se o principal meio de afirmação da individualidade. Para que o argumento de Luhmann ficasse claro, buscamos assinalar o papel da literatura na disseminação desse código: as mudanças na sociedade se refletem em mudanças no código “amor”, sendo acompanhadas por alterações nos comportamentos das personagens dos romances e nas recomendações dos tratados e das máximas. Assim, operam-se alterações na semântica do amor para que ele possa acompanhar o processo evolutivo do sistema social, tendo sido a literatura o principal instrumento de constituição desse código. Para que todo esse processo se tornasse um pouco mais compreensível, nos pareceu conveniente apresentar um breve esboço dos pressupostos teóricos de Luhmann, sem os quais se perde a essência de uma ambiciosa e vasta discussão.

Por meio de um texto impressionantemente rico, o autor disserta sobre as modificações e adaptações que o meio de comunicação “amor” teve de realizar em sua semântica a fim de se adaptar às demandas da complexidade do sistema da intimidade, que ele simplifica e, ao mesmo tempo, ajuda a criar.

Vimos como na teoria de Luhmann o amor é considerado como um meio de comunicação simbolicamente generalizado, que serve à realização de comunicação no sistema das relações íntimas. Para compreender como esse meio de comunicação se elaborou no processo de diferenciação funcional e constituição de sistemas autônomos a partir da modernidade, Luhmann recorre à literatura, que não só recebe influxos da sociedade ao representar as relações amorosas, mas também contribui para constituir essas próprias relações, disseminando os comportamentos codificados nos personagens e nas máximas escritas sobre o tema. Assim, se, por um lado, a diferenciação funcional típica da modernidade coloca problemas para a semântica do amor, o próprio código “amor” pode, por outro lado, servir de auxílio à plena diferenciação do sistema de relações íntimas. Romances amorosos e tratados de costumes oferecem exemplos para ilustrar as grandes tendências identificadas por Luhmann, podendo-se identificar através deles as transições entre diferentes concepções de amor ao longo do tempo.

Sem dúvida, “O Amor como Paixão” é uma obra instigante e de referência. Luhmann percebe o “amor” não como mero sentimento, e sim como uma representação que resulta de um processo social de codificação, analisado segundo as sutis concepções teóricas do autor. Um texto difícil, mas que merece atenção (e muitas leituras...). O que se pode concluir deste livro? Certamente que amar ou não amar não é a questão.

 

Notas:

[1] Este trabalho foi desenvolvido por sugestão do Prof. André Botelho, no decorrer de seu curso Tópicos Especiais de Sociologia I (Sociologia da Literatura), ministrado no primeiro semestre de 2005. Agradecemos a ele e ao mestrando do PPGSA Antonio da Silveira Brasil Jr. pelo apoio fornecido durante a preparação do artigo. 

[2] Todos os autores são graduandos do curso de Ciências Sociais da UFRJ. Antônio Carriço é do 3º período. Fábio Pimentel é do 9º período. Heloísa Santos é bolsista PIBIC/ CNPq, sob orientação da Profª. Mirian Goldenberg do NESEG e cursa o 7º período. Maurício Veiga Júnior é bolsista PIBIC/ CNPq, sob orientação da Profª. Glaucia Villas Bôas e do Prof. André Botelho, ambos do NUSC, e cursa o 3º período. 

[3] Ver, por exemplo, CANDIDO, Antônio. O discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades; MORETTI, Franco. Atlas do Romance Europeu, 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003. Respectivamente, sociólogo/ crítico literário e geógrafo. 

[4] Podemos traçar uma analogia com Franco Moretti, que diz que o estabelecer de uma história coerente entre diferentes regiões foi fundamental na construção dos Estados nacionais. Ocorre um processo semelhante no que tange o amor. No momento em que, apesar de toda a improbabilidade das relações pessoais, se constrói um romance, ou seja, uma narrativa coesa, fica subentendida a possibilidade de que essas relações ocorram. Desta maneira, a própria existência de um romance seria já uma manifestação da existência de um código.

 

Referências Bibliográficas:  

COHN, Gabriel. (1998) "As Diferenças Finas: de Simmel a Luhmann". In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 3,  n. 38. São Paulo, outubro.

LUHMANN, Niklas. (1991a) O Amor como Paixão. Para a Codificação da Intimidade. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 

___. (1991b) Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica. 

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