O IMIGRANTE PORTUGUÊS NO BRASIL: FIGURAÇÕES E CONFIGURAÇÕES DA IDENTIDADE CULTURAL

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Shirley de Souza Gomes Carreira

UNIGRANRIO 

 

IMPRIMIR

Resumo:
A situação específica do imigrante, assim como a do exilado, concorre para a formação de figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do sentido de pertencimento e pela tentativa de recuperar o que Marc Augé denomina "lugar antropológico".
Esta comunicação pretende analisar o processo de formação e representação da identidade cultural do imigrante, bem como o papel da literatura na construção do "locus" identitário.
Abordaremos, igualmente, as estratégias de exclusão e inclusão e a formação de estereótipos, focalizando especificamente o fenômeno da transculturação em um panorama que envolve a coexistência do discurso imperialista e a experiência contemporânea da transnacionalidade.

  

Abstract

The specific condition of the immigrant, as well as that of the exiled, contributes for either the formation of multiple identity constructions and representations due to the search for a sense of belonging and for the attempt to recover what Marc Augé has called anthropological place.

This presentation aims at an analysis of the process of formation and representation of the cultural identity of the Portuguese immigrant in Brazil, as well as the role of literature in the construction of the identitary "locus".

Similarly, it is our objective to deal with the strategies of exclusion and inclusion and the creation of stereotypes, focusing specifically on the phenomenon of transculturation within a panorama that involves either the co-existence of an imperialist discourse and the contemporary experience of transnationality.

 

Quem não soube

Quem não sabe

Emigrante

Que toda partida é potência na morte

E todo regresso é infância que soletra

Corsino Fortes (1)

 

A situação específica do imigrante, assim como a do exilado, concorre para a formação de figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do sentido de "pertencimento" e pela tentativa de recuperar o que Marc Augé denomina "lugar antropológico". Segundo Marc Augé (1994, 31), a investigação antropológica tem por objeto analisar o modo pelo qual os indivíduos interpretam a categoria do outro, conferindo-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia. O sentido de "pertencimento" vai além de um limite puramente físico, portanto, o "lugar antropológico" é a construção concreta e simbólica do espaço que o indivíduo reivindica como seu; que sintetiza todo o seu percurso cultural; que é, ao mesmo tempo, identitário, relacional e histórico.

Este ensaio pretende analisar o processo de formação e representação da identidade cultural do imigrante português no Brasil, bem como o papel da literatura na construção do locus identitário. Para tanto, faremos uma breve retrospectiva do movimento migratório dos portugueses para o Brasil, bem como procederemos à análise de personagens da literatura brasileira, mais especificamente de O cortiço, de Aluísio Azevedo, obra do período realista, a fim de demonstrar o modo pelo qual se criam e perpetuam os estereótipos.

 

Contemporaneamente, os estudos antropológicos têm constatado que os modelos teóricos de aculturação existentes tendem a ser substituídos por uma visão de interdependência entre o imigrante e a comunidade que o acolhe. Segundo essa perspectiva, pode-se observar que a herança lusitana não se esgota na questão lingüística, na arquitetura das cidades coloniais, na culinária e em outros traços que marcam a forte presença do português na cultura "brasileira", que, ao contrário do que se pensa, não se deve primordialmente à fase colonial, mas, em grande parte, às ondas migratórias posteriores; aos inúmeros portugueses que aqui encontraram uma maneira de construir o seu "lugar antropológico", em substituição à terra natal. A herança lusitana é na realidade parte de um fenômeno que somente no mundo contemporâneo encontra solo fértil para a sua investigação: a transculturação.

A questão da identidade tem sido amplamente examinada a partir das discussões geradas pelos Estudos Pós-coloniais e qualquer pesquisa nesse sentido necessita tecer considerações a respeito da concepção contemporânea de identidade. Stuart Hall (1998, p.7), em sua análise da evolução do conceito de identidade, mapeia as mudanças de sentido causadas pelo que ele considera uma "crise" originada pela ação conjunta de um duplo deslocamento: a descentralização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos. Essa mutação desenvolveu-se desde a postura de sujeito do iluminismo, evoluindo para a concepção de sujeito sociológico, até atingir o que os teóricos definem como o sujeito pós-moderno. Do sujeito individualista do iluminismo, centrado, dotado das capacidades de consciência e razão, passou-se à noção de sujeito sociológico, que, pela primeira vez, reconhecia a importância de outros "eus", através dos quais os valores, sentidos e símbolos do mundo por ele habitado eram mediados. Houve, portanto, um salto da individualização para a interação. Embora o "eu real" permaneça, sua postura é terminantemente modificada pelo diálogo contínuo com o mundo exterior. Na pós-modernidade, surge um sujeito fragmentado, sem identidade fixa permanente, que é "formado e transformado continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam".

A questão da identidade assume uma feição particular ao derivar da condição da migração ou do exílio. Análises da relação do individuo migrante com o meio apontam para processos distintos que podem ser focalizados a partir dos conceitos de "imigração econômica" e "imigração de assentamento". No primeiro caso, os imigrantes constituem um grupo de trabalhadores estrangeiros que interpretam sua condição de vida e a sua relação com o meio como algo provisório. No segundo caso, à medida que a possibilidade de retorno ao país de origem torna-se mais remota, a relação puramente instrumental com a vida econômica do período imigratório inicial é extrapolada, estabelecendo-se um vínculo com os países receptores. Conseqüentemente, os processos de relação do imigrante com o país de adoção variam de uma total resistência aos costumes locais à completa assimilação.

Iolanda Maria Alves Évora (2001), em seu ensaio "A metáfora do nacional", no qual analisa a questão da migração e da identidade cabo-verdiana, aponta para o fato de que a permanência do imigrante mostra que a idéia do retorno deve ser compreendida muito mais como uma categoria que o prevê a nível fantasmático do que o retorno físico. O mito é para o imigrado um retorno sobre si, um retorno sobre o tempo anterior à emigração, pois, muito embora se possa voltar ao lugar de origem, não se pode voltar ao tempo da partida, nem ao indivíduo que se era no momento da partida (Sayad, 1998, p.17).

Os registros da imigração portuguesa apareceram no século XVIII e se tornaram mais regulares a partir do século XIX. Nos primeiros dois séculos de colonização vieram para o Brasil cerca de 100 mil portugueses, e uma média anual de 500 imigrantes. No século seguinte, foram registrados 600 mil e uma média anual de 10 mil imigrantes portugueses. O ápice do fluxo migratório ocorreu na primeira metade do século XX, entre 1901 e 1930, quando a média anual ultrapassou a barreira dos 25 mil.

Segundo Renato Pinto Venâncio (2000), em seu ensaio "Presença de portugueses: de colonizadores a imigrantes", na história da imigração portuguesa podem ser consideradas quatro fases: de imigração restrita (1500-1700), de transição (1701-1850), de massa (1851-1930) e de declínio (1960-1991). Cada uma delas caracterizou-se por um perfil específico de imigrante. Na fase de transição, começou, ainda que discretamente, a emigração de grupos oriundos de camadas sociais pobres. A partir de meados do século XIX, durante a fase de imigração de massa, o perfil do imigrante português sofreu uma radical transformação: entre os que chegavam predominavam os de origem pobre: pequenos proprietários rurais, rudes, originários do norte de Portugal, da região do Minho, que contribuíram para a formação da imagem negativa e preconceituosa do imigrante português, estigmatizando-o como uma pessoa intelectualmente pouco qualificada e alvo de um anedotário pouco condizente com a rica herança cultural que ele nos deixou.

Nos últimos anos do século XIX, o Rio de Janeiro começou a se tornar um pólo da colônia portuguesa: a cidade recebeu um fluxo contínuo de imigrantes lusitanos, especialmente após 1890 (Chalhoub, 1986, p.5). Ao enorme exército de mão-de-obra disponível formado por brasileiros, brancos pobres, mestiços ou negros recém-libertos, somaram-se os portugueses que fugiam da grave crise econômica que se abatera sobre a zona rural de Portugal a partir de então.

Segundo Hall (2003, p.28), a par dos variados motivos que geram a migração, dentre eles a pobreza, a falta de oportunidades e o subdesenvolvimento, cada disseminação carrega consigo a promessa de um retorno redentor; sonho esse acalentado pelos primeiros imigrantes portugueses que vieram para o Brasil.

A declaração de perpétua aliança e os acordos comerciais tornavam Portugal uma nação amiga, gozando de vantagens tributárias sobre as demais nações. Graças ao tratamento diferenciado para os produtos importados e à mobilidade que desfrutavam dentro do segmento urbano da sociedade de ordem escravocrata, os portugueses, na grande maioria donos de estabelecimentos de comércio varejista e armazéns de secos e molhados (Alvim, 1998, p.285), puderam acumular fortunas significativas. Em conseqüência, o imigrante português passa a ter uma dupla representação: na literatura portuguesa do século XIX, o português que retorna à pátria, enriquecido pelo ouro brasileiro é enaltecido, enquanto que, no Brasil, essa mesma condição é interpretada de modo invertido.

A concepção binária de diferença, fundamentada sobre a construção de uma fronteira de exclusão, depende da construção de um "Outro". Para o brasileiro de então, o português era usurpador das riquezas naturais, o explorador da gente pobre da terra; e essa visão mobilizou um sentimento antilusitano na população, enraizando o preconceito contra o colonizador. O imigrante era associado de modo pejorativo à acumulação e à usura, como se pode observar, por exemplo, na narrativa romântica de José de Alencar, em A guerra dos mascates, romance que se reporta a um episódio da história do Brasil: a Guerra dos Mascates; luta travada entre as cidades de Olinda e Recife, nos anos de 1710 e 1711, pelos pernambucanos proprietários de engenhos, empobrecidos pela decadência da atividade agroindustrial açucareira, que viam com desconfiança a prosperidade de Recife, onde residiam os mascates, como eram designados os comerciantes portugueses, com os quais foram obrigados a endividar-se, por meio de empréstimos feitos a altos juros, resultando forte animosidade.

O início da República em Portugal, em 1910, só fez aumentar a "debandada" para o Brasil. No entanto, ao invés de trabalhadores pobres e iletrados; os portugueses que começaram a aportar no Rio de Janeiro na década de 10 eram da classe média: vinham para se fixar no Brasil, trazendo um pequeno capital financeiro ou cultural e com o objetivo expresso de se tornarem empreendedores ou profissionais liberais.

À medida que a lusofobia aumentava, os imigrantes se viram levados a assumir a promoção e a preservação dos vínculos culturais com seu país de origem. Já que a distância forçada de sua terra natal não podia ser superada, restava-lhes tentar recuperar algo do seu "lugar antropológico" (Augé, 1994, p.33).

Essa necessidade de reconstruir a identidade lusa no Brasil levou ao desenvolvimento de estratégias de inclusão, destinadas a proporcionar condições de adaptação em um ambiente hostil.

A tentativa de manutenção da identidade cultural levou-os a formar pequenos grupamentos, sob a forma de agremiações, fundar revistas e estimular a interação da comunidade lusitana:

Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar permanentemente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado, o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de "tradição", cujo teste é o de sua fidelidade às origens.(Hall, 2003, p.29)

 

O reconhecimento da diferença requer que se penetre na sua lógica simbólica, em que a existência real da identidade supõe a afirmação oficial dessa diferença garantida jurídica e politicamente, porque a assimilação "encerra o principio da dominação de uma identidade sobre outra, da negação de uma identidade por outra" (Bourdieu, 1989,129).

Constituíram-se, então, dois eixos opostos: de um lado a visão antilusitanista, de outro a postura a favor do luso-brasilianismo. Os que pendiam para a xenofobia nacionalista apoiavam-se no estereótipo internalizado no imaginário do povo e alimentado pela literatura: a imagem negativa, focalizada na ganância enquanto característica moral, na aparência corpulenta como marca física e na rusticidade como dado de comportamento, conforme registra Nélson Vieira (1991). Os que se manifestavam a favor de um estreitamento de relações entre Brasil e Portugal, o faziam com base na afirmação de que a língua e os costumes eram fatores de identificação espontânea que facilitavam a formação de um bloco cultural, impedindo a descaracterização da população brasileira; além do que a criação de um bloco militar poderia ser capaz de enfrentar a ameaça latente vinda das nações do Norte em caso de guerra (Romero, 1902).

A literatura naturalista contribuiu enormemente para o fortalecimento do estereótipo. Em O mulato (1881), Aluísio Azevedo, descendente de portugueses e adepto das idéias antilusitanas, projeta na pessoa de Manuel Pescada as características do imigrante trabalhador, ambicioso e persistente que só pode despertar a desconfiança e a inveja nos vizinhos.

Críticos como Sílvio Romero, Afrânio Coutinho e Alfredo Bosi têm apontado o caráter documental da obra de Aluísio de Azevedo, ao retratar a sociedade da época, muito embora, conforme observa Bosi, a influência do darwinismo tenha sido preponderante, pois o universo ficcional de Azevedo está pontilhado de indivíduos em uma luta inglória contra o meio. Em uma outra perspectiva, é digna de particular atenção a análise de Suely Reis Pinheiro, em "Vozes da sedução, do picarismo e da negritude", na qual interpreta a criação romanesca do autor como uma tentativa de desarticular a hegemonia do colonizador. Para tanto, Aluisio de Azevedo confere ao negro uma aura de sedução irresistível e ao português os limites do estereótipo.

Em O cortiço (1890), romance naturalista de Aluísio Azevedo, o autor constrói três imagens do imigrante português (Jerônimo, João Romão e Miranda) que revelam faces diferentes do processo de aculturação.

João Romão é o protótipo do português ganancioso, cuja preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento com a própria aparência, a sujeição ao desconforto e a auto-imposição de um regime de trabalho que ultrapassa muitas vezes o limite físico. A trajetória da personagem constitui a metonímia do embate da raça com o meio, pois o seu pragmatismo está permanentemente em confronto com a indolência e a sensualidade do temperamento dos habitantes do país que o acolhe:

Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. (Azevedo, 1997,13)

A sua posterior "aristocratização", atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em sua aparência física, embora revele a ação do meio sobre o comportamento humano e se apresente como uma conseqüência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no pragmatismo da personagem, que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de ganhar títulos nobiliárquicos.

Jerônimo, por sua vez, percorre o caminho inverso. É, a principio, delineado como homem honesto, fisicamente forte, de caráter sério e bons costumes, admirado pela sua simplicidade e disposição para o trabalho. Assim que chega ao cortiço, mantém o comportamento saudosista do imigrante, a busca de fidelidade às origens, que se revela, por exemplo, por meio do hábito de sentar-se à porta, dedilhando os fados de sua terra natal:

Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância. E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido(...)(Azevedo, 1997, 48)

 

Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas de resistência à aculturação absoluta, ou assimilação, operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos.

Após conhecer Rita Baiana, uma mulata sensual, Jerônimo se torna um homem diferente. Abandona a esposa e a filha, trama o assassinato do amante de Rita, endivida-se, aproximando-se da imagem do malandro carioca.

Os primeiros sinais da transformação dão-se justamente na esfera onde naturalmente se opera a resistência, pois logo Jerônimo passa a rejeitar a culinária de sua terra, perguntando à mulher porque não experimenta fazer "uns pitéus à moda de cá" (Azevedo, 1997,76), e deixa a guitarra de lado, exceto para tentar tocar as modinhas que Rita Baiana cantava.

O abrasileiramento de Jerônimo traduz a perspectiva naturalista de sujeição aos imperativos do ambiente, que traduz, igualmente, um completo processo de assimilação.

Miranda é o típico português ambicioso que, no entanto, prefere enriquecer por meios mais brandos, como pelo casamento com uma brasileira cujo dote era o que garantia a sua loja de fazendas por atacado. A manutenção da situação econômica atingida era mais importante do que seu orgulho de homem, posto que, apesar de saber-se traído, não ousava separar-se dela:

Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa. (Azevedo, 1997,16)

 

A recepção do português pela população citadina era permeada pela animosidade. Além de serem vistos como concorrentes em potencial, dada a monopolização lusitana em certos ramos de trabalho, havia sempre aqueles que, não tendo conseguido integrar-se na economia urbana, acabavam por reproduzir traços da economia de subsistência, tornando-se prestadores de serviços, como é o caso de Jerônimo, em O cortiço.

O imaginário em relação aos portugueses foi-se delineando a partir dessas características, conforme afirma Gladys Ribeiro:

Os portugueses foram os bodes expiatórios responsabilizados pelas crises econômicas da República iniciante. Eram considerados culpados e acusados de explorarem a população cobrando aluguéis extorsivos e juros alucinantes sobre dinheiro emprestado, bem como roubando nos pesos e medidas nas vendas, freguês, botequins, quiosques e casa de pasto. Caracterizados como intermediários, pesavam-lhes sobre os ombros a carestia e a vida surrada das camadas populares. (Ribeiro, 1990, p.13).

 

A divulgação dessas idéias era comum tanto na imprensa como na expressão literária. A denominação de "galego", atribuída aos portugueses, aparece no discurso jornalístico num sentido pejorativo (Alencastro e Renaux, 1990, p.312), difundindo-se como um xingamento que fazia as delícias do povo brasileiro.

Os estereótipos apresentam algumas características que auxiliam sobremaneira a formação e desenvolvimento da opinião pública: são persistentes; podem permanecer por gerações; são elaborados por um grupo para definir-se ou definir outro grupo; apresentam uma imagem idealizada do próprio grupo; apresentam a esquematização, onde as qualidades de um objeto são reduzidas a uma só; englobam todos em único conceito, bem como têm função compensatória de frustrações, responsabilizando sempre o outro pelo próprio fracasso.

Criar estereótipos, alterar e induzir opiniões requer instrumentos de persuasão. A persuasão tem na propaganda sua melhor arma de ação, pois a propaganda pode ser definida como uma técnica que manipula as representações, os estereótipos e influência as ações humanas, as atitudes das pessoas. A postura antilusitanista teve, portanto, na imprensa e na literatura as suas grandes aliadas.

Os mecanismos que normalmente são considerados de inclusão, e que se verificam na maioria dos países, não se aplicaram aos imigrantes portugueses por motivo óbvios. Nos EUA, por exemplo, os critérios de assimilação que abrem o caminho à classe média americana, e que, segundo Salins (1997), têm-se mantido inalterados ao longo dos anos, se apóiam sobre três pilares: o domínio do inglês, a conquista nos estudos e o sucesso econômico.

Na fase da grande onda migratória portuguesa para o Brasil, nenhum desses critérios poderia ser considerado como fator de adaptação. Primeiramente, pelo fato de que, tendo sido colônia portuguesa, o fator lingüístico como diferença inexistia, muito embora o sotaque ainda permaneça como referencial do estereótipo. Em segundo lugar, o nível cultural do povo brasileiro em geral era baixíssimo, com exceção de uma minoria socialmente privilegiada, não havendo, portanto, a possibilidade de se colocar o brasileiro como modelo. Por último, era justamente o sucesso econômico dos imigrantes portugueses que gerava o comportamento xenofóbico dos brasileiros.

Houve, então, por parte dos antilusitanistas a necessidade de fortalecer os mecanismos de exclusão pelo estereótipo, pela visão negativa do imigrante português: um indivíduo suarento, de tamancos, com sua indefectível camiseta branca, um farto bigode e bolsos cheios de dinheiro.

Um exemplo disso, também observável em O cortiço, é a recomendação de Jerônimo à mulher de que passe a tomar banho todos os dias, uma vez que o clima no Brasil era diferente do de Portugal. Aluísio Azevedo busca marcar essa oposição ao descrever Rita Baiana, dizendo que "toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas" (Azevedo, 1997, 50).

O movimento em favor do fortalecimento do luso-brasilianismo encontra eco na Comissão Luso-brasileira, a partir de quando começa a difundir-se a noção de uma comunidade lusófona, que teve em João do Rio um dos seus mais ativos defensores.

Muitos dos primeiros imigrantes e, com certeza, seus descendentes passaram pela experiência da conformação identitária dual, fundamentada, ao mesmo tempo, na sociedade de origem e na "adotiva", posto que, ainda ligados pela herança ancestral a Portugal, experimentavam um modus vivendi tipicamente brasileiro.

Aos primeiros imigrantes se somaram os seus descendentes, intensificando tensões, crises e conflitos e ao mesmo tempo significados, vivências e horizontes, que foram impondo, ampliando e multiplicando as experiências de "transculturação" (Ianni, 1996).

Para Fernando Ortiz (1983), antropólogo cubano que cunhou o termo "transculturação", a América só pode ser compreendida por meio de uma reavaliação séria do processo de mestiçagem de raças e culturas que se sobrepõem a qualquer outro fenômeno histórico.

Deste modo, os modelos teóricos de aculturação existentes, unidirecional, bidimensional e interativo, tendem a ser superados por uma visão que vá além do paradigma linear dicotômico, consistindo em uma perspectiva que privilegia o enfoque multidimensional e interdependente, dentro de uma dinâmica de mudança e desenvolvimento constantes.

Nessa breve análise da participação das mídias na formação e conformação identitária dos imigrantes portugueses no Brasil; não podemos deixar de mencionar o fato de que, no mundo contemporâneo, a representação da diferença via "etnização" ou "racialização" das dinâmicas migratórias continua a provocar um esvaziamento da percepção do pluralismo cultural, bem como o fortalecimento de estereótipos que, via de regra, não atingem só o imigrante, mas também operam como forças discriminatórias dentro de um mesmo território nacional.

Exemplificamos sem ter a necessidade de ir muito longe. A Revista Veja,(2) de 25 de agosto de 1999, mencionava o fato de que o Brasil é visto pelo estrangeiro como um país hospitaleiro, onde o imigrante é bem recebido e adapta-se com facilidade bem maior dos que os brasileiros do norte e nordeste, que sofrem de maneira muito mais dura o peso do preconceito regional. Os imigrantes portugueses contemporâneos que o digam, pois já vai longe o tempo em que o retrato mais bem acabado do imigrante português no Brasil se resumia a um senhor bigodudo, de camiseta e tamancos, atrás de um balcão de botequim ou padaria. Nos últimos anos, segundo o Ministério da Economia de Portugal, têm sido significativos os investimentos de empresas portuguesas no Brasil. E o velho estereótipo vai sendo substituído por empresários que já ocupam a quinta posição na lista dos maiores investidores em solo brasileiro.

O Brasil é um país de imigrantes, construído sobre a confluência de múltiplas diferenças. A tão propalada imagem de um país receptivo ao estrangeiro tem sido interpretada de formas diversas: ora como submissão a uma nova forma de colonialismo imposta pela globalização, ora como um reflexo de um país que se reconhece multicultural. Claro está que, vez por outra, incidentes envolvendo cidadãos brasileiros, não especificamente em solo lusitano, mas no exterior em geral, reacendem o nosso velho ímpeto nacionalista, pendendo para uma reação xenofóbica freqüentemente transitória. Nada, porém, que não possa ser resolvido com um breve olhar sobre as nossas raízes ou, no caso de nossos "patrícios", com uma forma de revanche verbal que o brasileiro conhece muito bem, e que volta e meia retira do baú: uma boa "piada de português".

 

NOTAS

1 FORTES, Corsino ( 1980).

2 Revista   de  circulação nacional, com grande penetração no mercado e com um  público-alvo de classe média que se interessa por questões  sociais, políticas e econômicas.

 

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