A DIALÉTICA HEGELIANA E O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO

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 Prof. Dr. David Ricardo Colaço Bezerra - UFPE

ISSN 1980-8372

REVISTA ELETRÔNICA ESTUDOS HEGELIANOS

Revista Semestral do Sociedade Hegel Brasileira - SHB

Ano 3º - N.º 04 Junho de 2006

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INTRODUÇÃO

      Este trabalho tem o intuito de interpretar a constituição de uma sociedade sob a luz da dialética hegeliana. Abrange, portanto, assuntos de Filosofia e Direito, no sentido de que se pretende compreender a essência de uma carta magna a partir das contradições inerentes a ela 

Faz-se primeiramente uma breve explanação sobre a fenomenologia do espírito. Depois se discute o problema relacionado à constituição formal e a constituição formal e à constituição material, observando-se o movimento dialético entre elas. Finalmente, empreende-se uma reflexão sobre como o desabrochar da verdadeira constituição contribui para a realização de uma verdadeira sociedade.

 

A DIALÉTICA HEGELIANA [1]  

            A não concordância de Hegel em colocar os princípios básicos na sua filosofia, em virtude de não trabalhar em termos de um sistema hipotético-dedutivo e sim em uma visão da realidade como um processo, ou seja, como um eterno operar dentro do sistema, não impede que se possa colocar, após uma compreensão sobre todo o sistema, determinadas afirmações que servem como balizadoras para a compreensão de toda a sua construção teórica da Fenomenologia do Espírito. Assim, pode-se declarar algumas idéias norteadoras: 

(a)    O Espírito infinito é a realidade;

(b)   A dialética é o modo de vida do Espírito infinito;

(c)    O elemento especulativo é o que caracteriza essa dialética. 

A realidade do Espírito é movimento, processo e não substância. O Sujeito põe-se a si mesmo, pois é pura atividade autoponente. Entretanto, esse eterno movimento não representa a corrida do ser em direção ao dever ser. Também não se resume à identidade originária do Eu e não-eu, finito e infinito, pois isso impõe uma região de não contato entre o Sujeito e o objeto, entre o Eu e o não-eu. 

O eterno movimento de se autopôr do Espírito é uma eterna superação do finito, de modo que o Espírito nega, à medida que ultrapassa, o finito que supera, que, por sua vez, já é uma negação. De forma que o processo se dá através da negação da negação, o infinito vive através de um eterno movimento de superação dos finitos. Assim, o Espírito infinito hegeliano é uma eterna igualdade que se concretiza nos diferentes finitos que supera, de modo que todos os momentos são indispensáveis para a vida do Espírito, pois nesse movimento o Espírito reflete-se em si mesmo, caminhando do “ser em-si” em direção ao “ser fora-de-si” e desdobrando-se no “ser para-si” ou “ser em-si e para-si”. 

A vida do Espírito se processa nesse contínuo movimento dialético através da tese, antítese e síntese. O primeiro momento é caracterizado pela auto-imposição da universalidade, é o universal intelectivo, abstrato, contraposto ao particular, mas, por isso, mesmo particular; o segundo momento é o racional negativo, que é marcado pela flexibilização do intelecto universal rígido, mostrando as contradições deste na eterna transformação de um oposto ao outro; o terceiro momento é o racional positivo ou o especulativo, que é justamente a suprassunção dos dois momentos anteriores, ou seja, a superação dos opostos, mas conservando-os. É através desses momentos que a razão chega ao ápice, atingindo o patamar do Absoluto. Neste sentido o real é racional e o racional é real. 

Apesar de ser contra uma introdução à filosofia, Hegel coloca na prática um tipo de introdução quando escreve a fenomenologia do Espírito, elevando de forma mediata a consciência ao Absoluto. Compreendendo que o Absoluto está presente desde o início, de modo que o Espírito absoluto não é somente um resultado final, mas também o que está por trás de todo o processo, do início ao final.

 

A CONSTITUIÇÃO FORMAL E A CONSTITUIÇÃO MATERIAL [2]  

Denomina-se de constituição formal o conjunto das disposições que adentram na Carta Magna. Neste conceito não se considera o teor da matéria que faz parte do Documento Maior; assim, mesmo que determinada norma não seja intrinsecamente constitucional, se ela perpassou o processo normal a fim de atingir o patamar de constitucionalidade, ela faz parte do conceito formal de constituição. 

Uma pergunta pertinente é: o que é que faz um dispositivo ser intrinsecamente constitucional? Ora, a característica de tratar de matéria que se reporte ao âmago da estrutura política de uma sociedade, a saber: forma de Estado, regime político, estrutura do poder e suas funções, direitos humanos e sociais. Normas que tratam desses assuntos pertencem ao que se denomina constituição material ou conceito material de constituição. 

É importante ressaltar que a área de interseção entre estes dois conceitos de constituição não é vazia, ou seja, normas que pertencem à constituição material também fazem parte do conceito formal de constituição se pertencem à Carta Magna. 

A constituição vista de um ângulo formal deriva do positivismo lógico, ou seja, toda análise é feita a partir da letra da Lei Maior, não se questionando o conteúdo do que está lá, nem do que poderia está lá. Essa perspectiva leva a uma universalização lógico-hipotético-dedutiva-abstrata que repele os questionamentos que não são solucionados pelo seu método, carente de conteúdo, o sistema constitucional é esvaziado de sentido. De modo que, as lacunas do ordenamento jurídico são escondidas ou negadas veementemente por meio de seu afastamento e sua caracterização como pseudo-problemas. Assim, a constituição formal corresponde ao primeiro momento da dialética hegeliana, o momento intelectivo, o ser universal abstrato. 

A constituição formal é a constituição pura; ora, se é pura é desprovida de qualquer de-terminação, em última instância é nada, é vazio, logo não pode ser a verdadeira constituição. Neste estágio, a constituição é unilateral, obedecendo ao princípio da identidade, as normas estão separadas do que pretendem tratar e referem-se à realidade de modo funcional, o problema entra no mundo jurídico na força do raciocínio abstrato, quando entra, e resolve-se nesse mundo, e só nesse, mundo abstrato que amoldou o que pode captar do problema real e resolveu de acordo com as premissas da formalidade. 

Neste momento de formalidade pensa-se a constituição em-si, ou seja, reprimindo toda a alteridade e toda independência de qualquer objeto que não se coadune com suas hipóteses de trabalho. 

A constituição material coloca em evidência as contradições da constituição formal, mostrando que o intelecto abstrato deixa de fora vários aspectos da vida, dos problemas constitucionais enfrentados a todo o momento na realidade de uma sociedade. Desse modo, o não-ser aparece como uma negação da finitude do conceito formal. Neste momento aprofunda-se o conceito de constituição a partir de uma reflexão sobre ela considerando-se seus aspectos materiais, sem menosprezar as características formais, pois a verdadeira constituição material remove e conserva as diferenças, resultando em igualdade nos opostos e oposição na igualdade. 

A contradição aparece explicitamente aqui como o motor do movimento dialético na compreensão da constituição. Essa contradição é constituída na distinção entre Constituição e Lei Constitucional, a primeira correspondendo à constituição material e a segunda à constituição formal. A estrutura política de uma sociedade fica em grande parte fora da Carta Magna, quando se considera que a dinâmica do poder não pode ser esquadrinhada em uma rígida redoma. As normas constitucionais enclausuradas em seu formalismo não se amoldam a dinamicidade dos fatos de matéria constitucional. 

Aqui começa-se a vislumbrar a Constituição como verdadeiramente ela é. A autoafirmação da constituição formal começa a confrontar-se com as autoafirmações dos problemas constitucionais reais que vão surgindo no processo de sua autorealização. E para que ela continue viva deve acolher as diferenças que põem-se a borbulhar em sua superfície. O outro, isto é, a constituição material passa a ser importante para a própria sobrevivência da constituição formal, que se não adequar irá morrer. 

Neste movimento inicia-se uma tomada de consciência de que o entendimento de uma constituição formal-material é que levará a compreensão da verdadeira natureza da Constituição, ou seja, a unificação da constituição pensada com a dinamicidade do que materialmente ela é. Neste momento compreende a Constituição como Razão. Tem-se, agora, uma flexibilidade na constituição formal (que agora é formal-material) que permite a interpretação jurídica de outras realidades não-formais. 

Essa flexibilidade dá a constituição formal a capacidade de adaptar-se ao movimento dos problemas constitucionais que vão surgindo, que por sua vez, são resultantes da vida social em eterna mudança. Assim, a Carta Magna terá a propriedade de viver em conformidade com o caminhar da sociedade a que se propõe regular. De modo que a rigidez que atravanca os processos e resulta em decisões legais, mas não legítimas, não tem mais terreno para se proliferar. 

Nesta ocasião a Razão Constitucional se realiza em conformidade com as necessidades sociais transformando e criando instituições dentro da própria organicidade do seu movimento. O entendimento da constituição formal leva necessariamente à constituição material e, o entendimento da constituição material leva necessariamente à compreensão da constituição formal. Aqui acontece a aparição do Espírito constitucional, que só vingará se for em uma sociedade livre.

 

O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO E A SOCIEDADE LIVRE  

Entende-se aqui a liberdade da sociedade como a igualdade de oportunidades entre os indivíduos. A dificuldade da obtenção dessa deste tipo de igualdade, deve induzir a sociedade a desenvolver procedimentos que induzam o seu caminhar na direção de um modelo eqüitativo. Ora, isso é imprescindível para que realmente se chegue ao Espírito da Constituição. 

Todo o processo para o verdadeiro entendimento do Espírito da Constituição mostra que uma suprassunção da constituição formal e da material, a fim de que uma possa se autorrealizar na outra, deve contemplar uma flexibilidade para a inserção da materialidade constitucional, ou seja, a própria estrutura política da sociedade. Ora, como se pode ter o reconhecimento do um no outro se ainda é vislumbrada uma realidade de senhor e servo? 

A própria interpenetração dos conceitos constitucionais implica na resolução dos verdadeiros conflitos materiais no âmbito formal, e isto só se realizará se os verdadeiros problemas dos indivíduos que compõem a sociedade também sejam contemplados pelo sistema constitucional. 

Deste modo, a identidade do sistema constitucional é um puro devir de sua própria atividade. A ordem, a segurança jurídica, o sentido e o conteúdo constitucional devem ser contemplados no eterno movimento do Espírito da Constituição, que aparece nessa suprassunção da formalidade e materialidade constitucional. Desse modo, a Constituição não deve ser tomada de forma rígida, estática, pelo contrário, é uma interpretação fluida das normas pertencentes à constituição formal que permite uma melhor percepção de suas contradições, remetendo a uma compreensão reflexiva e o enlace dialético da constituição material. 

O movimento dialético da Constituição de uma sociedade é o movimento do formal em direção aos problemas constitucionais que permeiam a realidade física dos indivíduos e a sua volta para-si, já preenchida de todo conteúdo resultante da reflexão produzida pela negação da negação. Desse modo, é só com uma sociedade eqüitativa que o verdadeiro Espírito da constituição pode desabrochar e o seu perfume ratificar esse autoafirmação do Espírito nessa sociedade livre. 

A falta de eqüidade econômica ou as discrepâncias sociais de toda ordem são inibidores da autorealização do Espírito constitucional, pois não há possibilidade da efetivação da constituição para-si se não há uma verdadeira saída da formalidade em direção ao outro, e essa verdadeira saída não acontece quando os verdadeiros problemas da materialidade constitucional não são captados para serem resolvidos, e eles não são captados quando não há oportunidade de colocação desses problemas por parte da sociedade como um todo. Assim, o próprio reconhecimento do outro como essencial é comprometido por uma falta de capacidade de interpretação da vida que pulsa na sociedade.

 

CONCLUSÃO  

A constituição de um país, ou a lei maior de uma sociedade, contém duas características fundamentais para a sua existência, a material e a formal. O aspecto material de uma constituição é aquele referente à estrutura e à dinâmica política de um local. Por outro lado, a formalidade está no fato de uma norma pertencer ou não ao corpo constitucional, pertinência esta que necessita da tramitação em todos os ritos do ordenamento vigente.

 Tem-se, então, a constituição formal e a constituição material, que podem ser interpretadas como a tese e a antítese em um processo, onde a síntese se concretiza na aplicação do direito constitucional à realidade efetiva. A forma isolada é vazia, a vida constitucional nasce da forma juntamente com o conteúdo político da constituição, ou seja, juntamente com o arcabouço estrutural social sobre o qual cada constituição é edificada, mas só no momento de sua aplicação. Assim, o efetivo espírito constitucional é a síntese do encontro do processo pelo qual passam todos os preceitos constitucionais, com as forças do contexto do caso particular que está sendo tratado por, pelo menos um, preceito.

 A visão dialética, no sentido hegeliano, do sistema constitucional, possibilita um modelo conceitual dinâmico, que abrange tanto a existência de uma segurança jurídica, que se dá através da forma; como também a existência de uma dinamicidade da constituição, ou seja, de uma adeqüação da norma ao problema específico a ser considerado. Esse problema carrega consigo elementos das forças da realidade prática. No momento em que se vai julgar tal realidade é que germina o espírito da constituição, desabrochando na medida em que o caso vai sendo desenvolvido, desenvolvimento este que se efetiva por meio do embate entre a constituição formal e a material, finalizando com a suprassunção das duas, na ocasião da coisa julgada.

   

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  

BONAVIDES, P.. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed.. São Paulo: Malheiros, 1999. 

HEGEL, G.W.F.. Fenomenologia do Espírito – Parte I. 2ª ed.. Petrópolis: vozes, 1992. 

HEGEL, G.W.F.. Fenomenologia do Espírito – Parte II. 2ª ed.. Petrópolis: vozes, 1992. 

KOJÈVE, A.. Introdução à Leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002.

 

[1] Esta seção foi baseada em HEGEL (1992) e KOJÈVE (2002).

[2] Esta seçào foi baseada em BONAVIDES (1999)

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